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II UM CORPO SOCIAL VIGILANTE: AS REDES DE SABERES E PODERES NA INSTAURAÇÃO-MANUTENÇÃO CIVIL-MILITAR DA DITADURA

Da centralidade soberana da Lei à difusão de redes e dispositivos disciplinares produzidos em torno da Norma, a capacidade de gestão das vidas nos regimes capitalistas tornou-se objeto de protagonismo nos regimes econômico-normativos modernos. Exemplificadamente, a ditadura encarna bem essa afirmação. O golpe de 1964 não pode ser interpretado de forma a-histórica, transcendental a uma série de ocorrências sequenciais que, por fim, justificaram a tomada aparentemente legítima dos meios democráticos pelos peões do capital financeiro, ou seja, os militares. O golpe deve ser lembrado tal como ele é, uma efeméride que deve ser disputada em sentidos a fim de melhor compreendê-lo. Reconhecendo-o como tal se viabiliza uma análise dos processos, atores e circunstâncias político-históricas que conduziram à instauração de um regime de exceção por tanto tempo no Brasil.

Inicialmente é mostra-se fundamental que sejamos honestos com a História. Fazê-lo pressupõe produzi-la e reproduzi-la a partir de fontes e vieses críticos, sempre desconfiados dos enunciadores que buscam estabilizar narrativas como blocos monolíticos incontestáveis. O presente trabalho não buscará contestar os livros de história, os discursos políticos negacionistas ou senso-comum acrítico produzido pelo capitalismo naturalizador de ideologias que o reafirmam. Apesar de ser algo que deveria ser feito em sua completude, este capítulo pretende elaborar o golpe e a ditadura como o produto final, capilarizado de redes complexas de microvigilâncias que se articularam em um tecido de autoritarismo que permitiram a anatomopolítica do poder disciplinar com mais contundência nessa efeméride.

A produção discursiva do “Outro”, aquele significante vazio que funcionaria como espantalho para a produção e manipulação retórica do “inimigo social”, teve papel fundamental na busca de se atribuir certa legitimidade às formas autoritárias de governar no período. A suposta ameaça comunista que se reproduzia no continente

latino-americano, após o sucesso da Revolução Cubana (1953-1959), graças à propaganda e às políticas imperialistas dos Estados Unidos naquele momento bipolarizado ainda em guerra fria com a antiga União Soviética, gestou uma abstração representacional inócua inserida em um discurso instrumentalizável por aqueles capazes para tanto. O pânico moral em torno não do comunismo, mas do comunista, a subjetividade/corpo individualizado, alimentava um medo social panóptico em que se possibilitava desconfiar até mesmo das pessoas que julgavam que se conheciam: vizinhos, familiares, colegas de trabalho.

Essa sensação de medo público generalizado produzido pela manipulação de um significante vazio como inimigo do corpo social, da ordem e da soberania, encontrou terreno fértil em um Brasil que se encontrava em profunda crise econômica, momento este em que a busca por um culpado é prioridade. Com a chegada de João Goulart, o “Jango”, à presidência do Brasil em 1961 as chamadas “reformas de base” começaram a ser as novas bandeiras do governo. Em um Brasil fortemente capturado pela influencia e dependência econômicas dos Estados Unidos, a discussão sobre efetivar uma reforma agrária e dar fim aos conflitos fundiários tão recorrentes foi imediatamente não interpretada, mas produzida como insurgência de levantes comunistas principalmente pelos grandes meios de telecomunicações. Atribuir o golpe e a manutenção do regime exclusivamente a um fator ou outro obscurece o complexo processo estratégico de tomada do poder por parte da real autoridade em todas essas histórias: o capitalismo financeiro e sua investida capitalista globalizada. No sentido de crítica ao entendimento que a ditadura consistiu na tomada do poder político por parte de uma individualidade ao invés de setores economicamente capazes da sociedade, afirma Carlos Fico:

Trata-se de um pressuposto básico para firmar-se uma interpretação que se baseia em pesquisas ainda incipientes: o entendimento do regime militar como o da trajetória de surgimento, ascensão, auge e decadência do setor conhecido como linha dura. Terá sido o fracasso de Castelo de pôr cobro aos anseios punitivos de militares radicalizados que fomentou o crescimento do que então se chamava de “força autônoma”, que se autonomeara verdadeira guardiã dos princípios da “revolução”, e que se tornaria, paulatinamente, um grupo de pressão muito eficaz (capaz, por exemplo, de reabrir a temporada de punições com o Ato Institucional nº 2, em 27 de outubro de 1965) e, posteriormente, institucionalizar-se-ia como as famosas “comunidade de segurança” e “comunidade de informações”. Castelo foi complacente com as arbitrariedades da linha dura, não teve forças para enfrentá-la e permitiu, assim, que o grupo de pressão fosse conquistando, paulatinamente, mais espaço e poder. Essa evolução é essencial para bem caracterizar diversos outros episódios do período, pois informa que o projeto repressivo baseado numa “operação limpeza” violenta e longeva estava presente desde os primeiros momentos do golpe. Assim, o Ato Institucional nº 5 foi o amadurecimento de um processo

que se iniciara muito antes, e não uma decorrência dos episódios de 1968, diferentemente da tese que sustenta a metáfora do “golpe dentro do golpe”, segundo a qual o AI-5 iniciou uma fase completamente distinta da anterior. Trata-se de reafirmar a importância, como projeto, do que se pode chamar de “utopia autoritária” isto é, a crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, “subversão”, “corrupção”) tendo em vista a inserção do Brasil no campo da “democracia ocidental e cristã”. (FICO, 2004, p. 33)

O autoritarismo institucional da ditadura não emanou unicamente daqueles militares que repentinamente usurparam a Presidência da República. Mas sim de uma atuação interrelacional, de certa maneira concertada até determinado momento, de setores politicamente conservadores que, apesar de encabeçarem o golpe de 1964, não teriam a capacidade individualizada de mantê-lo vigente. Com o endurecimento do autoritarismo, um momento mais à frente na progressão da ditadura, a chamada “linha dura”36, abandonando Castelo Branco pela sua inaptidão de servir aos seus anseios, articulou uma nova rede de poderes, de certa forma autônoma, no aparelho burocrático- militar que, constituindo-se como um “grupo de pressão” que direcionaria heterogeneamente o projeto de “utopia autoritária” que imperava como paradigma do modus operandi dos militares adeptos ao golpismo.

Mais que uma sequência de atos desconexos que teriam afundado o Brasil mais e mais fundo nos “porões da ditadura”, o processo de produção e reprodução do autoritarismo institucional só teria sido possível com a produção e reprodução do autoritarismo social, e vice-versa. A forte influência política econômica do empresariado brasileiro no impulsionamento da capilarização autoritária mostra-se condição sem a qual a instauração e manutenção do ideário violento ditatorial não seria possível. Segundo Dreifuss, tal empresariado, fortemente ligado ao capital financeiro norte-americano, “(…) organizou grupos de pressão e federações profissionais de classe, escritórios técnicos e anéis burocrático-empresariais, com o objetivo de conseguir que seus interesses tivessem expressão a nível de governo” (DREIFUSS, 1981, p.104) compondo parcela civil relevante no golpe militar de 196437.

36 Para compreender de forma mais aprofundada como se deram as fases pós-golpe de 1964 até o momento do recrudescimento do autoritarismo institucional recomenda-se o texto CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , n. 25, p. 83-106, Nov. 2005 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

44782005000200008&lng=en&nrm=iso>. access on 20 Dec. 2019.

37 Como afirma Heloísa Starling: “Também foi determinante a existência de um núcleo civil e militar – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) – com papel decisivo em dois aspectos: o primeiro consistiu na preparação e execução de um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo, que incluía custear uma campanha de propaganda anticomunista, bancar diversos tipos de manifestação

A produção de uma ditadura sem rosto, sem cor, sem classe, sem gênero e sem sexualidade, apolítica, parece constituir um instrumento discursivo obscurecedor alinhado à política de amnésia institucional inaugurada com a Lei de Anistia de 1979. Criando-se uma estrutura dissociada das redes de saberes e poderes localizadas permite- se a reprodução dessas mesmas redes disciplinares subjacentes a um regime edificado sob a égide de um suspeito Estado Democrático de Direito. Tal como afirma a crítica foucaultiana, o poder disciplinar subjaz de forma perniciosa as estruturas clássicas da soberania, dando substrato normativo à aplicação da lei. Tal modus operandi parece identificar um caminho a se seguir quando se elaboram alguns dos pilares justransicionais, por exemplo, as reformas institucionais e os mecanismos de não- repetição. O Direito Soberano já foi deslocado de sua autonomia clássica pela hegemonização do regime político-econômico capitalista rumo às disciplinas normalizadoras que lhe fazem as vezes sem revelar-se. Nessa mesma lógica, não elaborar de forma crítica que a transição jurídico-democrática brasileira não rompeu radicalmente com as estruturas disciplinares do panoptismo social, pedra angular da ditadura civil-militar, em razão de diversos fatores, inclusive da Lei de Anistia de 1979, denota uma imensa ingenuidade política por parte da nossa sociedade que se constituiu como democrática e assim pretende manter-se.

A instrumentalização da legalidade de forma autoritária pelos agentes do regime, do mais baixo ao mais alto escalão das Forças Armadas, viabilizou tanto a instauração quanto a manutenção da exceção brasileira. As redes de exercício de poderes, como já trabalhado a partir da perspectiva foucaultiana, têm como composição imprescindível a extração, produção e manifestação de saberes. Do inquérito ao exame, do poder soberano ao poder disciplinar, as estratégias de gestão e manutenção da ordem política e social vigente retornam às técnicas de saber-poder, dentre elas a que parece encarnar com mais concretude o estado de anomia, qual seja, a tortura. Como afirma Carlos Fico, “(…) hoje podemos afirmar, baseados em evidências empíricas, que a tortura e o extermínio foram oficializados como práticas autorizadas de repressão pelos oficiais- generais e até mesmo pelos generais-presidentes.” (FICO, 2004, p. 36). A tortura, como técnica de saber-poder, extraía a verdade dos corpos afligidos, incluindo-os no processo

pública antigovernistas e escorar, inclusive financeiramente, grupos e associações de oposição ou de extrema-direita. O segundo traçou estratégias de planejamento e de diretrizes para subsidiar um novo projeto de governo e de desenvolvimento para o país, aberto ao fluxo do capital internacional e com vocação autoritária.” (STARLING, 1986, p. 169). Para uma melhor compreensão do tema vide dissertação de mestrado da Prof.ª Heloísa Starling: STARLING, Heloisa Maria Murgel. Os senhores das

de formação daquela verdade que ali se produzia. O torturado e o torturador, quase que numa perversa relação simbiótica, encontravam-se imersos nas estruturas hierarquizadas dos dispositivos disciplinares amparados pela nova legalidade autoritária que se produzia naquela efeméride.

O panoptismo social foi de extrema importância para a manutenção do regime ditatorial. Isso pois, além de sustentar um medo público discursivamente produzido, ensejava na presença estatal mesmo quando esta não se encontrava ali. A produção de subjetividades dóceis pelos dispositivos disciplinares pressupõe um momento em que a presença institucional não se faz mais necessária pela naturalização da Norma como único meio possível de vida. Os processos de veridicção, de “dizer-a-verdade”, têm importância angular nessa forma de governamentalidade pela manutenção de uma sociedade disciplinar. Pois tal “verdade” produzida a partir das capciosas técnicas de saber-poder será tida como paradigma de inteligibilidade das formas e meios de vivências naquele contexto localizado.

Os articuladores do regime ditatorial, compreendendo a necessidade de subjetivar de forma generalizada a vigilância das vidas, passaram a adotar como estratégia as chamadas por alguns autores como “comunidades de informações”, para além da política. Tais comunidades consistiam em uma política de patrulhamento cotidiano inclusivo. Toda a sociedade, ou seja, aqueles corpos e subjetividades alinhados à identidade autoritária produzida como “povo”, os “cidadãos de bem”, consistiram em ramificações daquilo que é ideologicamente é chamado de “poder- central”, exercendo seu dever difuso de vigília dos corpos e das vidas. As práticas de espionagem, utilizando-se de infiltrados, delatores e informantes, materializavam na realidade localizada brasileira o panoptismo social de Foucault:

A distinção que hoje se pode fazer entre a espionagem (ou “comunidade de informações”) e a polícia política (ou “comunidade de segurança”) também tem colaborado para esclarecer outros estereótipos. De fato, tornou-se comum afirmar-se a existência de certa homogeneidade dessas instâncias repressivas, que comporiam os “porões da ditadura”. Embora fossem todas articuladas, tinham suas diferenças e funcionavam segundo parâmetros diferenciados. Penso que só o estudo conjunto dos pilares básicos da repressão (espionagem, polícia política, censura da imprensa, censura de diversões públicas, propaganda política e julgamento sumário de supostos corruptos) permite compreender que, a partir de 1964, gestou-se um projeto repressivo global, fundamentado na perspectiva da “utopia autoritária”, segundo a qual seria possível eliminar o comunismo, a “subversão”, a corrupção etc. que impediriam a caminhada do Brasil rumo ao seu destino de “país do futuro”(…) Tal projeto forjou-se na fase dos primeiros IPMs de 1964, a partir do descontentamento dos integrantes da então “força autônoma” (embrião da linha

dura) com a morosidade das punições aplicadas por Castelo Branco durante a primeira “Operação Limpeza”(FICO, 2004, 36)

O processo de recrudescimento do autoritarismo institucional propiciado pelo verniz de legalidade advindo dos Atos Institucionais teria viabilizado tanto juridicamente quanto politicamente a institucionalização da prática de controle que passou e ver no Estado autoritário, e sua ideologia, a autoridade para o exercício da gestão desse corpus vigilante. Como afirma Carlos Fico, a polícia política já consistia em um costume institucional brasileiro. O que diferencia o período ditatorial de 1964- 1985 das outras experiências autocráticas brasileira foi a sistematização das redes de inteligência e espionagem como redes de saberes que viabilizariam, por meio de técnicas difusas, o exercício do poder, do controle, sobre tais corpos, subjetividades e vidas. O Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, sistema “DOI-CODI” 38, seria então o lócus para o exercício dessa vontade de saber da autoridade difusa para o exercício localizado, minucioso do poder sobre os governados.

A vitória definitiva da corrente [linha dura], representada pela decretação do AI-5, fez com que a espionagem passasse a atuar a serviço dos setores mais radicais, divulgando as avaliações que justificavam a escalada e a manutenção da repressão. Porém, mesmo com o “endurecimento” do SNI a partir de Médici, o órgão e suas representações nos ministérios civis (as divisões de segurança e informações, então remodeladas e fortalecidas) persistiram como produtores de informações, não se envolvendo diretamente nas “operações de segurança”, eufemismo que designava as prisões, interrogatórios, torturas e extermínios, praticados pelo “Sistema Codi-Doi”, pelos órgãos de informações dos ministérios militares (Cie, Cisa e Cenimar) e pelos departamentos de

38 Sobre as diferenças práticas entre o sistema de inteligência antes e após o golpe de 1964 afirma Carlos Fico: “À diferença dos aparatos repressivos preexistentes, em que as unidades de força militares ou policiais guardavam autonomia de ação entre si, este [o Sistema Nacional de Inteligência] pretendeu consolidar uma estrutura única e coesa, como uma rede inextricável, cujas ações eram coordenadas a partir de um núcleo central, o Serviço Nacional de Informações - SNI. Criado em 1964, este organismo subordinou rapidamente todos os outros órgãos repressivos, como os centros de informações das três armas, a polícia federal e as polícias estaduais. Para integrá-los e harmonizar suas ações, criou-se o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, DOI-CODI, uma instituição tornada oficial em 1970, que aglutinava representantes de todas as demais forças policiais. Dotada de recursos financeiros e tecnológicos, suas atividades eram estrategicamente planejadas e orientadas pela lógica da disciplina militar, com vistas a enfrentar o que seus próprios agentes entendiam como uma guerra revolucionária. (…) o período posterior ao AI-2 e, sobretudo, à implantação do Sistema Codi-Doi (1969 em diante). Como se sabe, esse sistema implantou uma polícia política bastante complexa no país — que mesclava polícia civil, polícia militar, militares das três forças e até mesmo bombeiros e polícia feminina — e foi responsável pelos principais episódios de tortura e extermínio. Representou a vitória completa da antiga “força autônoma”. As turmas de busca e interrogatório faziam o trabalho sujo que a “utopia autoritária” pressupunha. Assim, em função de suas necessidades intrínsecas, essa polícia política atuava com grande liberdade de ação, até mesmo porque não poderia ser de outra forma, sob pena de perder oportunidades, quebrar o sigilo de operações secretas etc. Mas não se deve confundir a independência operacional com que trabalhava a polícia política com uma suposta autonomia em relação aos oficiais-generais. A tortura e o extermínio eram aceitos pelos comandantes e governos militares, como hoje já se comprovou.” (FICO, 2004, 34-35)

ordem política e social estaduais. Portanto, é fundamental destacar que, se o anseio punitivo que caracterizava a linha dura não surgiu repentinamente em 1968, como reação à opção de parte da esquerda pela chamada “luta armada”, de fato, a partir do AI- 5, as diversas instâncias repressivas já existentes passaram a agir segundo o ethos da comunidade de segurança e de informações ou com ela entraram em conflito. No primeiro caso, está a censura de diversões públicas; no segundo, a propaganda política. (FICO, 2004, 36-37)

O panoptismo social, racionalidade que passa a guiar o modus operandi da sociedade disciplinar, inclui na sua vigilância a perseguição quase que erótica da depuração dos espíritos; através dos hábitos, comportamentos; dos corpos, enquanto objetos de um processo anatomopolítico de reificação. A perseguição pelas práticas desviantes tornou-se um pressuposto da cruzada moral que buscava expandir o projeto utópico-autoritário. Tudo aquilo que demandava a presença, a atenção, a energia vital dos corpos consistia em um atentado à ordem produtivista capitalista que, imediatamente, produzia novas formas de fixar esses corpos na sua linha de produção.

A ocorrência de crimes de “vadiagem” bem como a valorização de documentos oficiais vinculados ao exercício de um trabalho regular, por exemplo, a carteira de trabalho assinada, como marcador dignificante de determinada vida tornaram-se corriqueiros nos grandes centros urbanos. Com tais políticas de moralização-pelo- trabalho o aparelho estatal-burocrático estendia-se, capilarizava-se, e passava a abranger localidades que antes não justificavam sua presença. As censuras cumpriam um papel importante nessa cruzada em defesa do trabalho, do desenvolvimento nacional e, claro, da política heurística de defesa da “moral e dos bons costumes”:

Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura da imprensa distinguia-se muito da censura de diversões públicas. A primeira era “revolucionária”, ou seja, não regulamentada por normas ostensivas.22 Objetivava, sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada, através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações recebiam. A segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos músicos e a outros artistas. Era praticada por funcionários especialistas (os censores) e por eles defendida com orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva tradição de defesa da moral e dos bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira. Durante a ditadura houve problemas e contradições entre tais censuras. A principal foi a penetração da dimensão estritamente política na censura de costumes — justamente em função da mencionada vitória da linha dura caracterizada pelo AI-5. (FICO, 2004, 36)

O Direito tem presença constante nesse lento processo de metástase por parte da ditadura. Sua instrumentalização, desvio e subversão se davam cotidianamente assentadas na legitimidade do ideal golpista e na perseguição delinquente à concretização da “utopia autoritária”. A legalidade autoritária, simulada como forma

jurídica de uma “revolução constitucional” deformada, justificava-se socialmente pela onipresença do medo público, do pânico moral, em torno das subversões que pareciam se alastrar cada vez mais. Conjugado aos aparelhos repressivos que o executavam, foi alinhado às representações espetacularizadas de corpos e subjetividades subversivas à normatividade disciplinar e, por tal razão, repreensíveis pelo subserviente Direito

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