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1 – A COLONIALIDADE COMO CONDIÇÃO HISTÓRICA DE INTELIGIBLIDADE DO GÊNERO-SEXO: subjetivação cívico-disciplinar como

III COLONIALIDADE COMO CONDICIONANTE DA RACIONALIDADE DISCIPLINAR: O CONTROLE DE CORPOS NAS MODERNIDADES

III. 1 – A COLONIALIDADE COMO CONDIÇÃO HISTÓRICA DE INTELIGIBLIDADE DO GÊNERO-SEXO: subjetivação cívico-disciplinar como

colonialidade de gênero

Como já elaboramos, o exercício do poder tem viés produtivo que, ao tempo em que sujeita indivíduos produzem-nos como subjetividades. Esse processo de subjetivação caminha por investidas pedagógicas, médicas e jurídicas para aparar as arestas do desejo que desvia os corpos desejantes dos fins do trabalho. Foucault compreende esse processo como constitutivo da modernidade industrial. Ao ver do presente trabalho, aposta-se que essa investida do poder foi antes testada nas modernidades periféricas e que a partir desse teste o poder disciplinar foi levado para o continente europeu, onde foi disseminado de forma menos destrutiva.

Nas modernidades periferias, o poder disciplinar incorporou a colonialidade como forma de contextualizar a sua dinâmica e exercer-se de forma eficaz. Na análise em tela, a colonialidade de gênero especificamente, uma vez que, através da manutenção do sistema moderno/colonial de gênero, a diferenciação sexual reafirmaria a verdade do sexo e reiteraria os termos do pacto cisheterossocial das sociedades modernas capitalista. As violências recairiam, então, sobre corpos bestializados, abjetos, em defesa da cisheteronormatividade eurocêntrica. Os corpos inscritos com os marcadores binários de sexo-sexualidade-desejo-gênero passariam a ser por eles produzidos e traduzidos nestes termos, os termos dados pela colonialidade. Determinados corpos valeriam mais que outros, determinadas práticas seriam autorizadas em detrimento de outras inferiores, os usos dos corpos seriam programados e as alternativas para usos contra-hegemônicos caberiam intervenção. O corpo e seus usos constituem tanto a fábrica quanto o campo de batalha entre as subjetividades e a disciplinarização colonial.

(...) os efeitos podem ser produzidos mantendo a cadeia histórica de significados sobre o humano que, aqui, identifico na “colonialidade do ser” como a colonialidade dos corpos por uma linguagem articulada de sexo, gênero e raça. Isso significaria que a “concessão” de humanidades se produziria como o que chamo de distribuição diferencial de humanidade (GOMES, 2019, P. 28)

O poder disciplinar incorpora a colonialidade e passa a ditar a inteligibilidade dos corpos a partir de suas condicionantes raciais, sexuais e de gênero. Reiteram-se, por

meio da diferença sexual colonial, as linhas divisórias entre corpos imperiais e corpos colonizados, corpos normais e corpos anormais e, ao fazê-lo características são eleitas como aquelas que identificam os corpos humanos a partir da negação de humanidade às outras anti-identidades: essa é a lógica colonial da cisheteronormatividade, reiterar sua própria axiologia autoritária. Limites são dados aos usos dos corpos a partir dessa operação. Funções sociais são fixadas e o acesso ao poder político é condicionado pelas normatividades históricas constantemente reiteradas do pacto cisheterossocial.

A função da colonialidade é reiterar os termos da diferença colonial e encontrar, a partir da reiteração dos termos da cisheteronormatividade, as formas de vida passíveis de intervenção as disciplinas. A cisheteronormatividade, produto do sistema moderno/colonial de gênero dá todo o substrato instrumental para a disciplinarização dos corpos, a depuração dos hábitos, da fixação das fronteiras do corpo. O contato com o colonizador trouxe aos hábitos sexuais dos indígenas, com o avançar da invasão portuguesa no Brasil, a culpa, a moralização pelo pecado, a sodomização e a homossexualização do prazer anal, o condicionamento do prazer ao casamento e aos papeis de gênero. Ou seja, toda uma gama de perdas de experiências públicas que a burguesia européia, detentora do aparelho financeiro-militar, preferia relegar ao âmbito privado durante o processo colonial. Tal opção pelo enclausuramento do sexo parece constituir os primeiros fundamentos do capitalismo e da globalização

É possível enxergar nesse processo indícios do acoplamento de técnicas que se consolidarão como dispositivo e que vinculará o reconhecimento de existências como vidas aos usos hegemônicos dos corpos, no trabalho, no sexo, na vida pública, na família, etc. O processo de classificação sócio-racial, que marcou o contato entre colonizadores e colonizados, também teve papel fundamental na colonização dos corpos. Pela racialização, os povos originários foram produzidos como inferiores e, portanto, dependentes da ação do colonizador para europeizar seus corpos com roupas, seus hábitos com a moral judaico-cristã, sua economia com a aplicação do mercantilismo.

Corpos bestializados demandam intervenção urgente e, tal intervenção justificará toda uma série de medidas de extermínio em prol da constituição, ali, de um novo continente europeu. Tem-se ai o protótipo da sociedade moderna ocidental. Nem que trabalho forçado, extermínio, estupro de mulheres indígenas fossem necessários, estariam justificados pela suposta “vontade de Deus”:

(...) a criação de uma matriz normativa de gênero, entendida como uma forma de negativa de humanização a determinados corpos é um produto da colonialidade e tem, em si, um componente racial: a criação da norma do gênero como domesticidade e reprodução como ideal de “cultura”, “civilidade”, “racionalidade”, que coloca a branquitude como ideal, que forma um ideal de gênero oposto a práticas, comportamentos, vivências, corpos, experiências “selvagens”, “naturais”, “irracionais”. (GOMES, 2018, p. 78)

Um “Deus” que nos dias de hoje ganha outros nomes como direitos humanos, democracia, desenvolvimento para tentar justificar violações sistemáticas e generalizadas de direitos humanos, como no caso do exemplo já citado, das investidas neocoloniais de Israel na Palestina e a intervenção bélico-militar norte-americana pro invasão do território palestino. Tudo isso sob o manto da retórica democrática ocidental liberal. De toda, forma é preciso encarar o exercício do poder moderno a partir da colonialidade para se desencobrir o seu caráter racializado, generificado e sexualizado. Os autoritarismos contemporâneos também usam de deslocamentos de categorias de diferenciação, seja sexual ou racial, na busca de hegemônica econômica, política e cultural.

Nessa perspectiva, acredita-se que toda forma de autoritarismo na modernidade ocidental traz em si a face oculta da modernidade, qual seja, a colonialidade. Como já elaboramos, democracia e autoritarismo não são formas de Estado flutuantes, mas formas de exercícios de poder cristalizadas em uma forma estatal em constante tensão. Existe uma latência autoritária em cada democracia e em cada regime autoritário existe uma latência democrática. Não existe poder sem resistência. Nessa lógica, se os Estados Modernos se edificaram entre práticas democráticas ou autoritárias, em ambas as formas de exercício de poder o espectro da colonialidade dá as condições históricas de possibilidade para exercício desse mesmo poder. Tendo isso em vista, a aposta deste trabalho é que a forma autoritária de exercício do poder tem como pressuposto indissociável a violência colonial permanente.

Por tal razão, identificar as estratégias utilizadas pelo poder para reafirmar seus termos é uma forma de resistir aos seus efeitos deletérios. No caso da ditadura civil- militar, a reificação de marcadores sociais e a articulação destes na produção tanto de uma identidade quanto uma anti-identidade cívico-disciplinares justificou a sua instauração, ampliação e perpetuação por meio da mobilização discursiva dessas identidades para fins de gestão das vidas a partir da razão estatal moderna/colonial, a governamentalidade.

Raça, gênero, sexualidade, bem como classe, etnia e religião, dentre inúmeras outras classificações são variáveis deslocáveis no jogo econômico-político do poder, o relevante aqui, para além da crítica anti-identitária que se busca realizar, é compreender que o produto dessa diferenciação cívico-disciplinar é a constituição daqueles corpos que terão suas vidas estimuladas, controladas, incitadas e aquelas vidas que restarão relegadas às omissões deliberadas do Estado Moderno/Colonial, seja ele na sua forma monárquica, republicana, ditatorial ou democrática. A colonialidade está para a modernidade na proporção em que o autoritarismo reafirma a democracia.

O que quero sugerir aqui é que a colonialidade usa a raça e o sistema sexo/gênero em seu processo de desumanização. Ou seja, nem a raça sozinha promoveu essa forma de inferiorização dos sujeitos, nem o gênero sozinho produz hierarquizações, estereótipos ou relações de dominação: a raça e o racismo, junto à ideia de que alguns sujeitos possuiriam sexo e outros gênero, como quem opõe natureza e cultura, que criaram a ideia de não-humanos racializados (GOMES, 2018, p. 78-79)

No caso das políticas identitárias cívico-disciplinares da ditadura, a invocação dos mitos fundacionais da nação, a reiteração contínua de lemas, propagandas e enunciados em um mesmo sentido como a defesa das famílias, do crescimento econômico, da ameaça subversiva pelos comunistas, da soberania brasileira, constituíram também um passo importante nas estratégias governamentais. Pela afirmação dos símbolos nacionais, indivíduos que se aproximavam da representação axiológica do “cidadão de bem” (homem, branco, hétero, cisgênero, viril, nacionalista, conservador, inserido no mercado de trabalho formal, etc.) organizavam-se ao entorno dessa discursividade e coligavam-se de forma coerente a partir de pequenas identificações com a ideologia autoritária.

Ao fazê-lo, reiteravam os termos da axiologia autoritária que compunha a abstração representacional das identidades cívico-disciplinares e se confirmavam como população. Ao se confirmarem, passam a integrar esse estatuto de inteligibilidade jurídico-epistêmico de cidadãos, viabilizada pela percepção virtual de que essa população supostamente coesa, na realidade, era o que a ditadura afirmava como “povo”, como “nação”. Logo, que deveriam ser defendidos. Tem-se ai o simulacro de legitimidade da ditadura: a reificação de categorias jurídicas clássicas do antigo poder soberano para fins disciplinares governamentais.

“Povo” e “nação” constituíam marcadores de coerência utilizados para especificação da população, uma especificação elaborada a partir das condicionantes

históricas modernas coloniais. Acredito que, para ler Foucault e analisar modernidades periferias deve-se necessariamente compreender termos como especificação e individualização a partir dos pressupostos da diferença colonial. É o único modo de não ser ideológico no sentido de encobrir o verdadeiro teor das relações de poder ao sul do equador. Nessa mesma crítica à formação moderna do sentido que se tem hoje sobre “povo brasileiro”, Camilla Gomes afirma que a não observância desse processo de diferenciação sócio-racial ignora aquilo que chamamos aqui de dispositivos disciplinares sobre os quais:

(...) sub-repticiamente se criou uma normatividade não normativa, uma cadeia de significados que está nos textos – jurídicos, políticos, literários – ainda que não expressos e que, talvez justamente por não escritas tenham conseguido “passar” como dados ou naturalizados. (GOMES, 2018, p. 87)

Ainda nessa crítica à produção identitária do regime a partir de uma representação artesanal de cidadania patriótica, a discursividade que viabilizar a reprodução axiológica autoritária é, além de linguagem, de textos e propagandas, uma prática. A identidade cívico-disciplinar se faz, mais do que se fala. E ao conduzir indivíduos e a população a um sentido unidirecional, ela os produz a partir de seus próprios valores. Mais que mera enunciação linguagem, o discurso foucaultiano é um aparelho complexo de formação de sentido e produção de inteligibilidade e, por suas próprias formas operacionais, edifica ao tempo em que é edificado “pelos corpos e nos corpos dos que sustentaram tal linguagem e sobre os quais ela foi sustentada. (GOMES, 2018, p. 91).

A ditadura interpretada como uma grande oficina, corretora de subjetividades a partir de assujeitamentos, de incitações discursivas regidas pela racionalidade de Estado moderna/colonial. A produção subjetiva por meio da disciplinarização dos indisciplinados, normalização dos anormais, docilização dos bestiais, na busca de se ver literal uma representação paradigma é forma de atuação histórica da diferença colonial. Nessa manobra, pela negativa de identificação com o paradigma hegemônico, a afirmação de anti-identidade cívico-disciplinar de “invertidos” e “anormais”, é um pressuposto de existência dela própria. Não existe o “homem direito” sem o “invertido”, não há “normal” sem o “anormal”. O processo de classificação sócio-racial colonial se reproduz no período do regime civil-militar, mas agora a partir de um paradigma também cívico-disciplinar de masculinidades, feminilidades e sexualidades:

(...) principalmente como essas categorias são antes produzidas em conjunto e em relação uma com a outra, como formas de preencher os significados do humano na colonialidade, criando humanos e não-humanos, humanos e menos humanos, em uma distribuição diferencial de humanidade como atribuição de sentido aos corpos por meio das linguagens de raça, sexo e gênero. (GOMES, 2017, p. 9)

Sendo assim, se aposta no exercício do poder disciplinar moderno/colonial pelo aparelho ditatorial, ao produzir e reproduzir uma identidade cívico-disciplinar edificada nos termos da colonialidade, como autoritarismo na forma da violência colonial permanente. O controle, a vigilância, a observação para extração do saber, parece ter como finalidade a inserção dos observados em um regime discursivo para viabilizar o exercício de um poder, uma gestão, uma governamentalidade ditada pela colonialidade.

CAPÍTULO III

I O BIOPODER E O GIRO BIOPOLÍTICO DA SOBERANIA: A DECISÃO

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