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4 A INSTITUCIONALIDADE NORMALIZADORA E AS TENSÕES DA CRÍTICA QUEER COMO DESOBEDIÊNCIA EPISTÊMICA – Da violência

COGNOSCIBILIDADES OUTRAS

I. 4 A INSTITUCIONALIDADE NORMALIZADORA E AS TENSÕES DA CRÍTICA QUEER COMO DESOBEDIÊNCIA EPISTÊMICA – Da violência

epistêmica à invenção discursiva das alteridades

Guacira Lopes Louro (LOURO, 2018, p. 27) identifica que a categorização da homossexualidade e do sujeito homossexual é fruto do séc. XIX. Após as revoluções sexuais na França, Inglaterra e Estados Unidos na década de 60, as idéias em prol de uma liberalização das práticas sexuais tomou conta da mídia, da literatura e da vida dos indivíduos. Nesse momento, ao desafiar a norma, fortalecia-se a norma. Na década de 70, no Brasil, em pela ditadura militar (1964-1985), a homossexualidade como orientação sexual legítima começa a ser construída, produzida discursivamente e com isso, os moldes uniformizados são desafiados. Na década de 80 a epidemia do hiv/aids deixa claro o espaço de morte social que a comunidade LGBT+ foi colocada quando suas vidas são patologizadas e colocadas como não passíveis de luto público: “a distribuição desigual do luto público é uma questão política de imensa importância(...). Era importante declarar e mostrar nomes, reunir alguns resquícios de uma vida, exibir e confessar publicamente as perdas” (BUTLER, 2018, p. 65).

Ao final do séc. XIX e início do XX, então, tem-se a insurgência da necessidade de implosão das categorias atribuídas às sexodissidências até então: a necessidade caminhou para uma política pós-identitária que observasse transversalidades e atravessamentos, inclusive no que tange às formas de violências e articulações de opressões. Nesse momento as teorias queer vêm com toda a potencialidade de subverter a, até então, crosta ultrapassável de cisheteronormatividade institucionalizada e subjetivada na modernidade. Porém, mais longe que Foucault, tal normatividade autoritária já tem sua semente identificável quando do próprio surgimento da modernidade dusseliana, em 1492, com o encobrimento das alteridades e binarização de todas as relações sociais, políticas, econômicas de poder, saber e do próprio ser.

Althusser e Michel Foucault podem ter identificado o momento em que a sexualidade passou a ser aparentemente do interesse dos aparelhos de Estado, contudo, a manutenção de uma ordem cisheteronormativa tem origem muito anteriormente aos processos de industrialização do século XVIII: a episteme da colonialidade é “cristalizada e reproduzida permanentemente pela matriz estatal republicana” (SEGATO, 2014, p.106). Como afirma com maestria Enrique Dussel sobre a chegada dos colonizadores e o início do processo de invasão, “aquele mítico 1492 foi sendo diacronicamente projetado sobre todo o continente com um manto de esquecimento, de barbarização, de ‘modernização’” (DUSSEL, p. 103, 1993).

Da noção dusseliana de encobrimento das alteridades, Santiago Castro-Gómez vai além para discutir das formas como a modernidade/colonialidade impuseram-se sobre o ocidente de forma violenta tanto fisicamente quanto simbolicamente. Como será explorado mais profundamente ao longo da dissertação, o caráter dualista e excludente que rege as relações de poder modernas passa a produzir subjetividades fundamentadas em saberes construídos em torno da racionalidade científica iluminista européia. A pluralidade, a diversidade, as dissidências, a hibridez e as incoerências são excluídas do projeto moderno que se afasta cada vez mais da “contingência das formas de vidas concretas” gerando também subjetividades e identidades ahistóricas. Ao ver do autor, a modernidade/colonialidade se estruturou em torno de dispositivos de poder que produziam alteridades “mediante uma lógica binária que reprimia as diferenças” (CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 169).

O que não se compreende muitas vezes é que nos processos de invasões da América Latina os europeus não chegaram com o ímpeto de “descobrir” uma nova terra, um novo povo, uma nova cultura. Os europeus chegaram acreditando que estavam nas Índias Orientais. Por tal razão, não se vislumbrou nesse processo de colonização uma comunicação intercultural, mas sim um enquadramento daqueles povos originários em toda sua diversidade ao padrão construído e dispersado no continente europeu: o de selvagens, inferiores, sem alma, necessitados da tecnologia e do desenvolvimento que egoisticamente os colonizadores atribuíam a si mesmos. Não foi uma repressão da diversidade. O que aconteceu não foi somente um encobrimento da diversidade pela visão de mundo eurocentrada, homogenizante, universalizada, mas a invenção de uma alteridade e a subjugação dos colonizados a tais moldes.

Nesse momento a racionalidade moderna se forma: ego versus alter, eles versus nós, construindo-se sob uma lógica binária exclusiva: homem ou mulher, branca ou

preta, rica ou pobre, lícita ou ilícita, deter os meios de produção ou pertencer aos meios de produção, atingindo inclusive a esfera do desejo: tenho o eu e o outro, sendo este último o qual deve recair meu desejo. Tem-se aí a matriz da racionalidade moderna/colonial: a instauração da sistemática binária que se reproduz até hoje se utilizando do mesmo maquinário. Como afirma Rita Segato, “na modernidade colonial (...) o contrato sexual é disfarçado pelo idioma do contrato cidadão” (SEGATO, 2014, p.118).

O “sistema moderno colonial de gênero” diz respeito à sistemática de utilização homogenizante de categorias, hierarquizando-as em prol da manutenção da heterossexualidade normativa fundamental à epistemologia hegemônica capitalista moderna e suas imposições categorizantes quanto raça, classe, gênero e sexualidades (LUGONES, 2014, p. 935).

Logo, pode-se identificar na racionalidade moderna/colonial binária o fundamento da cisheteronormatividade que Althusser vai atribuir às institucionalidades que atuam exclusivamente em defesa da reprodução das relações de produção capitalistas. A matriz moderna/colonial, institucionalizada agora na forma republicana, “debilita autonomias, (...) gera dependência e oferece com uma mão a modernidade do discurso crítico igualitário” através de seus aparelhos de Estado, ao mesmo tempo em que “introduz os princípios do individualismo e a modernidade instrumental da razão liberal e capitalista, conjuntamente com o racismo que submete os homens não-brancos” (SEGATO, 2014, p.110) aos processos de vigilância e normalização em defesa do interesse da sociedade capitalista, branca, cisgênera, heterossexual, patriarcal e suas abstrações que ensejam reconhecimentos e cidadania com a criação dos Estados nacionais.

Qual o local das teorias queer em todo esse processo de homogenização pela normalização edificada sobre a matriz moderna/colonial binária de onde advém a racionalidade das institucionalidades hoje? A racionalidade hegemônica da modernidade é linear, cartesiana e não concebe deformidades na sua abstração universalizada de sujeito. O reflexo disso nas sexualidades e nos gêneros diz respeito à capacidade de compreender a dissidência sem uma pretensão de normalização para atribuição de reconhecimento. Como afirma Judith Butler, a compreensão de gênero apta à assimilação sócio-política, decifrável, é aquela da qual é possível extrair coerência e linearidade entre o quadrinômio sexo, gênero, prática sexual e desejo na manutenção daquele que, a partir de Foucault, Butler chama de “‘ verdade’ do sexo”.

Ou seja, a racionalidade que escolhe autoritariamente o modelo de sexualidades cognoscíveis “é produzida precisamente pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes”, mantendo o processo de cristalização da “heterossexualização do desejo” (BUTLER, 2018, p. 43- 44).

Nesse encobrimento epistemológico das sexodissidências pelo espectro da modernidade/colonialidade cisheteronormativa, porém, uma via de resistência expõe os furos, a violência dessa sistemática. No cerne do pensamento decolonial, Walter Mignolo apresenta sua ideia de resistência a partir de uma desobediência epistêmica como subversão da política de identidades moderna/colonial de naturalização, homogenização e universalização de uma abstração eurocentrada. Ao ver do autor, “a política de identidade se baseia na suposição de que as identidades são aspectos essenciais dos indivíduos, que podem levar à intolerância” (MIGNOLO, 2008, p. 289), bem como é possível identificar nas políticas identitárias seu caráter geopolítico e uma política de reconhecimento estatal que mais parece a uma política de normatização/normalização do que uma política de reconhecimento. Os Estados Modernos ocuparam-se de construir autoritariamente seus próprios paradigmas de cidadania e, com isso, criou-se uma “identidade disciplinar” (MIGNOLO, 2008, p. 300) que passaria a ditar os requisitos para se traduzir alguém como sujeito de direitos. Ora, essa crítica à formação autoritária das identidades é o cerne das problemáticas erigidas pelas teorias queer.

Apesar de, em alguns momentos, Mignolo radicalizar sua perspectiva renegando toda e qualquer forma de utilização da filosofia vinda do norte, acredita-se que seu objetivo não seja esse, promover um epistemicídio de todo o pensamento filosófico que não venha do sul global. O mais coerente à opção decolonial é o diálogo enriquecedor ao debate, sem se valer forçosamente do pensamento eurocentrado para apagar as transversalidades presentes em outros espaços dotados de sua própria historicidade. A opção decolonial é o filtro e a concretização de um pensamento cuja gênese deve compreender a historicidade de seu próprio local de fala, expondo a racialização, o sexismo e o cisheteroterrorismo, a fim de acrescentar ao debate novas perspectivas, desta vez, contextualizadas em uma lógica de coexistência horizontalizada, porém não homogenizada.

Pretender que o sul não pode falar a partir dos marcos que o próprio sul compreende e contextualiza nas conjunturas históricas das relações de poder em que

estão submetidos é compreender a localização epistêmica exclusivamente a partir da localização territorial. Ou seja, nessa perspectiva radical de lugar de fala, se uma corrente teórica nascida e criada no sul reproduzisse, na sua forma particular, a hierarquização a partir de raça, gênero e sexualidade moderna/colonial, ela também poderia ser compreendida como uma desobediência epistêmica. Nesse viés, este trabalho traz diálogos possíveis entre o pós-estruturalismo e o pensamento decolonial, expondo suas tensões, porém compreendendo que “a opção decolonial (...) alimenta o pensamento decolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem co- existir” (MIGNOLO, 2008, p. 296).

Na perspectiva de Mignolo, a opção decolonial vem para identificar os furos, as falhas, violências e demais transversalidades que o pensamento hegemônico eurocentrado encobre a fim de romper com tais cânones que instrumentalizam a razão em prol da manutenção das relações de poder e explorações intrínsecas pela matriz colonial. Tal como a modernidade/colonialidade é epistêmica, a opção decolonial também o é, pois “se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento”, e continua, afirmando que tal processo de desconstrução não pressupõe uma negação de todo conhecimento vindo do Norte Global: “por desvinculamento epistêmico não quero dizer abandono ou ignorância do que já foi institucionalizado por todo o planeta” (MIGNOLO, 2008, p. 290). A universalização homogenizante, consequência da hegemonização da epistemologia moderna/colonial, é uma demanda daqueles que se encontram em posição privilegiada face aos outros que terão que se adequar: “a defesa da similaridade humana sobre as diferenças humanas é sempre uma reivindicação feita pela posição privilegiada da política de identidade no poder”. Nesse viés, a opção descolonial não tem pretensão de universalidade, mas sim de “pluriversalidade” (MIGNOLO, 2008, p. 300) ao promover infiltrações nas formas de ser, de exercer poder e de produzir saber dominantes.

A dissociação entre localização territorial e localização epistêmica é problematizada e rompida pelo autor utilizando o conceito de “consciência mestiça”, de Kusch, no qual a pluri-versalidade se dá no sentido de que onde se está localizado fisicamente não necessariamente se é epistemologicamente e vice-versa. É possível, ao ver de Mignolo, encontrar-se territorialmente/corporalmente/subjetivamente em uma localização epistemologicamente hegemônica sem alinhar-se aos seus pressupostos. Sobre seu projeto de desobediência epistêmica, afirma:

Estou desunindo a formação e a transmissão de regiões epistêmicas, ligadas a corpos e regiões do mundo moderno/colonial e a seus movimentos através do tempo e do espaço (MIGNOLO, 2008, p. 301)

É possível ter um pensamento de fronteira que desafie cânones aparentemente consolidados que mantém toda uma racionalidade instrumental mesmo estando inserido em um contexto eurocentrado. O pensamento de fronteira deve funcionar como uma lamparina que encontra a “ferida colonial” e compreende suas diferentes profundidades, espessuras e gravidades a fim de propor, a partir daquela historicidade específica, uma inclusão não binária, mas dialógica, sem hierarquizar violências e opressões, mas sim as compreendendo a partir da articulação de seus atravessamentos e transversalidades interseccionais.

A desobediência epistêmica de Walter Mignolo vem não numa tentativa de inverter a guerra pela hegemonia entre os sistemas de pensamento, mas sim de promover, inaugurar um canal de diálogo entre diferentes epistemologias através da interculturalidade. O autor diferencia a interculturalidade do multiculturalismo compreendendo este último como invenção dos EUA a fim de criar fronteiras entre epistemologias sem viabilizar o diálogo entre elas.

A interculturalidade, na verdade “inter-epistemologia”, é um conceito indígena que Mignolo atribui exclusivamente às epistemologias não ocidentais (aymaras, afros, árabe-islâmicos, híndi, etc.), à capacidade de ser (MIGNOLO, 2008, p. 316), em oposição ao sistema de pensamento ocidental. Tal perspectiva, ao ver do presente trabalho, reitera as lógicas binário-dicotômicas de exclusão moderna/coloniais e pleiteia uma hegemonia por parte das culturas subalternizadas. Não se pretende aqui ignorar o contexto de lutas, reivindicações históricas, sociais e políticas desses povos. Pretende-se na verdade é realizar um trabalho de diálogo em que as diversas formas de ser, de se organizar e se construir o conhecimento possam ter espaço na construção de um universalismo realmente universal, não mais somente europeu. A “pluriversalidade” de Mignolo não pode ser restrita à realidade exclusiva dos colonizados, pois isso geraria, inclusive, uma facilitação de uma nova exclusão, afinal, um pensamento que não dialoga, hermético, é um pensamento que não se preocupa com a alteridade, com a coexistência, mas sim reitera a hierarquização de opressões e homogeniza a transversalidade das violências interseccionais, por exemplo.

A radicalização do pensamento decolonial de Walter Mignolo é compreensível. A América Latina, a África subsaariana e os países orientais colonizados, receberam a

violência moderna/colonial sem qualquer interesse por parte dos colonizadores de diálogo ou compreensão da alteridade como fundamental para a construção de uma sociedade realmente cosmopolita. Contudo, reiterar a prática de violência não é frutífero para o processo de emancipação dos povos encobertos. O presente trabalho acredita que, no próprio processo de formação das subjetividades, o poder nos assujeita o tempo todo e, simultaneamente, assujeitamos outros aos moldes do poder. Nesse sentido, uma emancipação absoluta não seria possível tendo em vista que inverter a lógica do poder é fazer exatamente o que o poder espera que você faça: o sonho do oprimido não deve passar por torna-se o opressor, mas sim implodir o sistema que viabiliza e reproduz a opressão em prol de um projeto de sociedade efetivamente cosmopolita que traduza “pluriversalmente” a historicidade de cada povo, comunidade, de cada sujeito, sem qualquer tentativa de normalização.

Adentrando de forma crítica às exigências puristas, senão assépticas, do pensamento científico moderno ocidental, Donna Haraway denuncia o caráter ideológico no primado da objetividade tão reiteradamente incentivado na academia e nos laboratórios. Ao ver da feminista, tanto o processo produtivo quanto seu produto consistem em estratégias de poder, disputas pela manutenção da hegemonia masculina na produção de verdades sobre o mundo da vida. A retórica da objetividade na produção de conhecimento científico é tão insidiosa que incessantemente busca apagar subjetividades e atuações históricas femininas daquele campo ideologicamente “neutro”. Tal como Butler afirma que na seara da linguagem o universal tornou-se masculino através da usurpação do feminino pelo falocentrismo a fim de tomar seu lugar (BUTLER, 2018, p. 36), a retórica da objetividade na produção de conhecimento científico sustenta pactos, consensos de silenciamento de perspectivas dissidentes passíveis de provocar infiltrações na grossa crosta ahistórica que sustenta regimes de verdades públicas e privadas arbitrariamente produzidas para fins de manutenção de relações hierarquizadas. Em face disso insurge a filósofa em defesa de uma objetividade feminista que pretende significar nada mais que “saberes localizados”:

Não queremos uma teoria dos poderes inocentes para representar o mundo, na qual linguagens e corpos submerjam no êxtase da simbiose orgânica. Tampouco queremos teorizar o mundo, e muito menos agir nele, em termos de Sistemas Globais, mas precisamos de uma rede de conexões para a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes – e diferenciadas em termos de poder. Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em

significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro. (HARAWAY, 1995, p. 16)

A teoria queer butleriana, como analisa Sarah Salih, identifica a formação das subjetividades como um processo que deve ser interpretado a partir de “contextos históricos e discursivos específicos”, ou seja, o sujeito butleriano consiste em uma “estrutura linguística em formação” (SALIH, 2017, p. 15) situada no tempo e no espaço. Afinal, se pressupomos que gênero, sexualidades, sexo, desejos, etc. são discursivamente construídos, tais textos são indissociáveis de seus contextos. Nesse viés, qualquer tentativa de homogenização seria incompatível com o cerne da própria teoria queer. A pretensão de desestabilização das categorias dicotômico-binárias busca subverter a produção e reprodução da matriz cisheteronormativa, o que impediria assujeitamentos epistêmicos.

Traduzindo essa necessidade de se contextualizar a teoria queer para os países abaixo da linha do equador, pensadoras e pensadores como Guacira Lopes Louro, Berenice Bento, Larissa Pelúcio e Richard Miskolci e Pedro Pereira trazem reflexões e proposições práticas a partir das confluências entre o queer e o pensamento decolonial. Algumas críticas insurgem no sentido de que a utilização do próprio termo em inglês queer seria um marcador colonial. Ora, como já foi apresentado, esse trabalho diferencia localização territorial e localização epistêmica a fim de compreender que subjetividades e teorias delas advindas não estão fixadas em linearidades de tempo e espaço. Posso estar situado em um país imperialista e de lá produzir um pensamento que questiona esse mesmo imperialismo e vice-versa, por exemplo, Walter Mignolo na Duke University (EUA), Nelson Maldonado-Torres na Rutger University (EUA) e Catherine Walsh na Universidad Andina Simon Bolívar (Equador). Ademais, ignora-se que existem países com presença da língua inglesa com violentos passados coloniais tal como os próprios Estados Unidos da América, a Índia, África do Sul, Egito, Sudão, Gana, Nigéria, Somália, Serra Leoa, Tanzânia, Uganda, Quênia dentre outras.

De fato é preciso situar as teorias científicas a fim de compreender sua incidência em termos materiais. Tendo isso em vista autores vêm se preocupando em traduzir as teorias queer nos trópicos a fim de romper com críticas pedestres que afirmam que as referidas teorias nada mais são que novas importações do centro para as periferias. O queer surgiu nos Estados Unidos e foi teorizado primeiramente por Tereza de Laurentis quando se apropriou de um xingamento que equivaleria ao nosso “bicha” ou “viado” e subverteu tal interpelação no que deu os primeiros passos para uma teoria

de libertação desses enquadramentos de heteronormatividade violenta. Pensadores vieram posteriormente, dentre eles Judith Butler, para impulsionar formas diversas de subverter gênero e sexualidades a partir de um fio condutor: a desestabilização de categorias identitárias a partir de uma reivindicação de não assimilação.

A reivindicação de reconhecimento e igualdade passou a ter uma dissidência, qual seja aqueles movimentos sociais e teorias que não querem se encaixar num paradigma homogenizante de igualdade, mas sim querem ser tratados como sujeitos de direitos a partir de suas inconformidades. Tal tensão ocasionou cisões dentro do próprio movimento LGBT+ nos EUA. Aquelas subjetividades queers que não se enquadravam nas demandas identitárias fixas optaram por compor outro corpo político na seara da diversidade sexual e de gênero a fim de, inclusive, tensionar as demandas dos movimentos hegemônicos a fim de reconhecer, por exemplo, o caráter interseccional das violências e, portanto, das reivindicações de proteção estatal.

Acontece que de forma diferente ao caso dos EUA em que a teoria queer veio como resposta acadêmica a uma demanda de dissidentes dos movimentos LGBT+, o caminho no Brasil se mostrou justamente o oposto. A teoria queer chega através da academia e é difundida, capilarizada através dos movimentos sociais mais heterogêneos possíveis. O queer, tal como foi pensado, infiltrou demandas de raça, classe, gênero, moradia, ambientais, dentre outros. Nesse viés é preciso compreender o queer como um saber localizado cujo elo comum com todas as outras teorias e movimentos que vêm pensar marcadores excludentes (por exemplo, os movimentos negros) não é outro senão a precariedade ontológica e a distribuição seletiva desta entre os corpos cujas vidas não importam. Como afirma Paulo Pereira:

(...) o queer, que seria uma política da diferença, acaba por nublar as diferenças, pois a generalização acabaria por abrumar tanto as variações dentro da própria teoria queer como as histórias locais, simplesmente esquecidas em definições conceituais tão genéricas. (PEREIRA, 2012, p. 374)

As pretensões do queer, independente de localização territorial, devem-se situar- se epistemologicamente no entorno de um fio condutor, qual seja, a transgressão, a

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