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Clínico Geral e/ou Médico de Família?

CAPÍTULO I – POLÍTICAS E CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

4. O (re)surgimento da clínica geral

4.2. Clínico Geral e/ou Médico de Família?

Generalista, clínico geral ou médico de família? A definição de médico de família nasceu na Europa, criada pelo grupo Leeuwenhorst23, em 1974. Nesta concepção o clínico geral é um médico graduado que presta cuidados pessoais, primários e continuados, a indivíduos, famílias e a uma população definida, independentemente da idade, sexo ou tipo de doença. Este conceito de clínico geral, considerado ainda hoje válido, enforma todas os que se seguiram, desde logo no uso conjunto da designação clínico geral/médico de família.

Em 1991 a WONCA define “clínico geral/médico de família” como o médico que é responsável pela prestação de cuidados abrangentes a todos os indivíduos que procuram cuidados médicos, funcionando como um generalista que aceita todas as pessoas que o procurem. Embora revista em 2002, mantém-se, no essencial, esta definição (EUROACT, 2002). Baseado nas conceptualizações propostas por Leeuwenhorst e pela Wonca, Boerma (2006, 8 e 9) sintetiza as características essenciais da clínica geral: 1) cuidados generalistas (generalistic care), presta cuidados indiferenciados a todo o tipo de população; 2) cuidados de primeiro contacto (first contact care) em serviços de proximidade; 3) orientados para o paciente (orientation to the patients) num contexto em que a individualidade do doente é considerado no tratamento; 4) continuidade (continuity), em que as intervenções não se limitam ao episódio da doença, mas cobrem longitudinalmente as necessidades de saúde dos doentes; 5) globais (comprehensiveness), compreendendo cuidados curativos, de reabilitação, e de suporte, bem como de prevenção da doença.

Em Portugal são adoptadas as definições europeias24 e reproduzem-se, por vezes indistintamente, as duas designações clínico geral /médico de família. Desta dualidade de terminologia não se excluem traços identitários mais profundos, enraizados no percurso sócio-profissional e o uso de nomenclatura diversa não está isento de conotações com

23 O grupo Leeuwenhorst, fundado em 1974, criou a primeira definição de clínico geral na

Europa. Teve como sucessor o The New Leeuwenhorst, fundado em 1982, que procurou desenvolver a clínica geral enquanto disciplina, dando origem, em 1992, à EURACT – European Academy of Teachers in General Practice (EURACT, 2002).

24 Nas quais Portugal tem participado. No primeiro grupo de trabalho que deu origem à primeira

posicionamentos ideológicos, científicos e identitários.

As diferentes designações são vulgarmente utilizadas como equivalentes (às quais ainda se acrescenta médico de clínica geral/medicina familiar), quer na linguagem oral, quer na literatura médica. Mas não o são. Ainda antes da criação da carreira de clínica geral, o Decreto-Lei nº 172/1980 de 28 de Julho, vem afirmar que o “clínico geral constitui uma figura primordial do exercício personalizado da medicina” e reconhece a necessidade da função de “generalista”, para o que “é instituída uma nova modalidade de exercício da profissão de medicina – a carreira de generalista – consagrada ao exercício das funções de clínica geral” (Decreto-Lei nº 172/1980, de 28 de Junho). Daqui decorre que o primeiro dispositivo legal utiliza arbitrariamente (ou confusionalmente) a designação “generalista” e “clínico geral”.

O Decreto-Lei nº 310/82 de 13 de Agosto, que cria a carreira de clínica geral, utiliza exclusivamente o termo “clínica geral”. Este diploma é considerado o marco para o nascimento da medicina familiar. A "moderna medicina familiar portuguesa" nasceu oficialmente em 1982 (Sousa e Pisco, 2007), com a criação da carreira de clínica geral. Mas, nesta altura, entre 1981 e 1986, dos médicos que ingressaram na carreira, 85% não tinha formação específica em clínica geral.

Veloso (2000, 72)25 vem desde logo chamar à atenção que o clínico geral “não pode ser um produto híbrido resultante do espúrio entre o João Semana e o médico das caixas”. E, considera que

“é a perspectiva de se transformarem num profissional desprestigiado à partida e condenado a praticar uma medicina repetitiva sem estímulos e sem encanto que assusta as gerações dos médicos jovens e os faz rejeitar os projectos das carreiras de generalistas que lhes têm sido propostas” (Veloso, 2000, 72).

Para além do plano meramente legislativo, a clínica geral já era praticada na realidade dos Serviços Médico-Sociais (SMS), nas Caixas de Previdência. Daí a designação de “médico da caixa” – médico dos SMS. Será, pois, no “médico da caixa” que se encontra a génese do clínico geral português. Para Moura (1987, 7) esta clínica geral praticada nas “Caixas”

25 Porque nesta abordagem a cronologia é importante, devemos referir que este texto, embora

era “um tipo de clínica geral anómalo e desprestigiante” e desvirtuada, porque houve “uma desmesurada preocupação com a extensão numérica dos actos médicos e com a cobertura de cada vez mais áreas populacionais”. Para o autor, a medicina que se exercia era cada vez mais uma medicina desumanizada, numérica, sintomática, sem qualquer tipo de relação médico/doente. Não era minimamente satisfatória para o clínico geral, provocando um “abrandamento das suas responsabilidades, um desprezo total pela sua formação continuada”, o que, em seu entender, levou a uma deterioração total da imagem deste profissional na comunidade. “Os médicos que exerciam este tipo de medicina foram imparavelmente arrastados nas suas atitudes – 50 e 60 doentes marcados para serem observados em duas horas!” (Moura, 1987, 7). E “porquê falar deste passado?” – questiona. “É que hoje ainda sobrevivem zonas, consultas, unidades de saúde e médicos que vivem nesta fase evolutiva, doentia, da medicina geral.”26

Vasquez (1986b) reconhece igualmente a coexistência de diferentes perfis de clínico geral:

“«os velhos do Restelo»”, da velha medicina ultrapassada, os «pioneiros», da luta pela medicina familiar moderna, e toda uma quantidade de clínicos que «navegam à deriva», sem formação necessária, sem orientadores capazes, sem ambientes propícios, com legislação local perturbadora, com chefias anacrónicas, sem esquemas organizacionais, num desgaste psíquico enorme” (Vasquez, 1986b, 11).

Reconhecendo esta diversidade dentro da profissão, Vasquez apresenta uma espécie de tipologia caracterizadora. Diz existirem três tipos de clínico geral (Vasquez, 1986a), 23). O tipo 1) é o “polícia sinaleiro”: é o médico que tem como função “triar” e “encaminhar”. Esta noção de “grande triador” está relacionada com a noção de “grupos de risco”, que, diz, historicamente e talvez actualmente, estão presentes nalguns centros de saúde. “Que formação dar a estes “sinaleiros?”, questiona. E responde: “nada mais simples”: um local de trabalho; definir a população a servir; que serviços para encaminhar/receber cuidados diferenciados; definir bem os grupos de risco e, fundamentalmente, trabalhar (Vasquez, 1986a, 23).

26 Note-se que este texto data de 1987, quatro anos após a criação da carreira de clínica geral. Este

será um dos ângulos de análise na investigação empírica: 25 anos de institucionalização da carreira terão apagado esta herança identitária?

O segundo tipo é designado por Vasquez de “multiespecialista/árbitro” e deverá possuir formação hospitalar e específica. Sendo que a formação específica deve constituir-se por uma multiplicidade de especialidades, já que este médico deve conhecer “esta e aquela especialidade”, pois, na sua opinião, só assim se chegará a um modelo perfeito de “globalidade – especialista”. O multiespecialista deverá ainda ter um espaço académico nas universidades, que, diz, actualmente se encontra preenchido por especialistas da carreira hospitalar. E para justificar porque é também árbitro, considera que este tipo é aquele que pode “relacionar boca com pés, olhos com bexiga”.

O terceiro tipo é o clínico geral. Neste terceiro tipo agrupa todos aqueles que definem o clínico geral como algo em formação. Encontra as origens ou antecedentes no João Semana, mas não despreza o desenvolvimento técnico-científico da medicina, com patronos como Sousa Martins, Pulido Valente, Egas Moniz e tantos outros.

Esta "tipificação" ilustra bem a heterogeneidade interna desta categoria profissional emergente e a existência de estratos ou sub-classes no interior da profissão Ruivo (1987a), causadores de tensões inter-profissionais e obstaculizadores de um processo de construção da identidade profissional que se iniciava a partir de forças antagónicas: por um lado, a necessidade de se refundar as bases identitárias da profissão a partir do rompimento com as imagens sociais do passado e, por outro lado, a permanente imposição dessas imagens a partir dos novos contextos e das (velhas) práticas dos profissionais, a que acresce ainda um conjunto de modificações sociais, atirando a profissão para uma "encruzilhada" que se "bifurca em dois ramos desiguais, com alguns interesses comuns e muitos interesses próprios" (Ruivo, 1987a, 24).

Mas Rebelo (1995, 337) reconhece a necessidade de discutir se, de facto, as designações clínica geral, medicina geral e familiar, e medicina familiar são equivalentes ou não. Em seu entender, uma rigorosa análise de conteúdo levar-nos-á a concluir que existem diferenças consideráveis nos conteúdos programáticos da clínica geral e da medicina familiar e entre os resultados da prática do clínico geral e do médico de família. E, acrescenta, o clínico geral

“actua segundo o paradigma biomédico que lhe foi transmitido pela Faculdade de Medicina, o qual exercita e aperfeiçoa na prática, o médico de família exerce segundo o paradigma biopsicossocial resultante dos ensinamentos da Faculdade, “mesclados” com novos ensinamentos que entretanto

adquiriu pela formação pós-graduada e contínua e pela reflexão sobre o seu contexto de prática (Rebelo, 1995, 337)”

Para melhor vincar a diferença entre o clínico geral e o médico de família, sublinhando, assim, a importância da especialidade, Rebelo refere que se extremarmos as posições será possível dizer que “enquanto as Faculdade de Medicina «formam clínicos gerais» o Internato Complementar «forma médicos de família»” (Rebelo, 337). Na prática, significa que o médico da carreira de clínica geral sem especialidade é clínico geral, e o que possui a especialidade em MGF é médico de família.

Veloso (2000, 90 e 91) considera que os clínicos gerais deviam ser a réplica portuguesa dos «médicos de família» americanos ou dos «general practitioners» ingleses. Mas, diz,

“pouco têm a ver com eles e, provavelmente, virão a transformar-se a médio prazo num produto degenerado saído da cabeça de burocratas que nada sabem de medicina clínica. Sem preparação adequada, sem esquemas de aperfeiçoamento, desenquadrados das estruturas técnicas, os clínicos gerais correm o risco de não ser mais do que um produto híbrido, amarrados ao preenchimento de uma confusa papelada (…) Vocacionados para serem os elementos-charneira de todo o sistema de saúde, limitar-se-ão, muitas vezes, a fazer uma triagem dos doentes a encaminhá-los para consultas hospitalares” (Veloso 2000, 90 e 91).

Para Berta Nunes (1986, 21) a identidade do clínico geral produz-se numa "síntese" de elementos, que define assim:

"[o clínico geral é] um médico (graduado com reconhecimento oficial) que presta cuidados pessoais, primários, e continuados a famílias e mais genericamente a uma população definida, independentemente de quaisquer critérios de idade, sexo, ou tipo de doença. É a síntese destes elementos que estabelece a identidade deste perfil profissional”.

Mas, contrariamente ao que afirma Berta Nunes, a identidade do clínico geral parece não resultar, nem de uma síntese, nem numa síntese. São diversas as definições de clínica geral e, na prática, nem sempre é clara a distinção entre clínico geral e médico de família. Na Revista Portuguesa de Clínica Geral (um espaço de publicação de artigos científicos e de opinião da área), o tema é recorrentemente abordado, como recorrentes são os artigos sobre o estatuto social e a imagem dos médicos junto da população, parecendo evidenciar que um e outro (estatuto e imagem social) continuam a constituir grande preocupação no

seio dos clínicos gerais/médicos de família.

Veja-se a título de exemplo o artigo de Jaime Correia de Sousa, à época Director da Revista Portuguesa de Clínica Geral, de 2007 (Sousa, 2007), que ao apresentar uma breve síntese da evolução da profissão, refere “as iniciativas dos médicos de família em torno dos encontros Nacionais de Clínica Geral (…) a actividade científica e académica dos departamentos ou cadeiras de clínica geral nas faculdades de medicina, a actividade do Colégio de Medicina Geral e Familiar (…)”. Resulta, assim, evidente que decorridas quase três décadas após a criação da carreira de clínica geral, a existência de um binómio clínico geral/médico de família se mantém nos campos da formação, da simbologia, da profissão e da produção científica.