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Quadro teórico: o centro de saúde e a unidade de saúde familiar enquanto organizações sociais e lugares profissionais

CAPÍTULO II – DO PERCURSO TEÓRICO E METODOLÓGICO

1. Quadro teórico: o centro de saúde e a unidade de saúde familiar enquanto organizações sociais e lugares profissionais

A medicina moderna caracteriza-se pela crescente cientificização, tecnicização e hiper- especialização/sub-especialização da prática médica. Este desenvolvimento científico e tecnológico encontra-se fortemente associado à organização hospitalar (Foucault, 1963; Mechanic, 1983; Herzlich, 1970; Stacey, 1988; Freidson, 1984 e 1988; Calnan e Gabe, 1991; Gabe et al, 1994; Turner, 1999; Bungener e Baszanger, 2002; Campos, 1986; Carapinheiro, 1993 e 2005, entre muitos outros). Porque o hospital concentra as diversas especialidades científicas, porque é local de concentração tecnológica, porque é lugar de formação e treino dos médicos, porque é, muitas vezes, centro de investigação científica, agregando no mesmo espaço o monopólio da produção e do exercício do saber. Daí que a importância social do hospital seja largamente reconhecida.

Para Turner (1999) o hospital é uma instituição crucial dos sistemas de saúde modernos, mas é igualmente um símbolo do poder da profissão médica, representante da institucionalização do conhecimento médico especializado. Assume uma posição de hegemonia na produção de cuidados, simboliza o poder social da profissão médica e representa a institucionalização do saber médico especializado (Turner, 1999, 153). Esta posição do hospital na estrutura geral dos cuidados de saúde tem remetido os cuidados generalistas para uma posição secundária. Paralelamente, o crescimento do número de profissionais e os espectaculares avanços científicos e tecnológicos alteraram profundamente o conteúdo e as práticas do trabalho médico. O aumento da diversificação dos serviços de saúde e a multiplicação do recurso a tecnologias cada vez mais sofisticadas exigem competências específicas e essa mesma tecnicização e especialização altera o padrão de competências profissionais, dando origem ao aparecimento de novos segmentos profissionais. Ora, é neste movimento de mutação interna das profissões da saúde que a medicina geral e familiar surge como um campo de actividades mal definido (Bungener e Baszanger, 2002).

Pese embora o facto da medicina geral e familiar ocupar uma posição chave no sistema de saúde (Calnan e Gabe, 1991; Elston, 1991; Macdonald, 1993), bem como o facto de ser considerada a base dos sistemas de saúde de muitos países (Boerma, 2006; OMS, 2008), a hiper e sub-especialização do conhecimento médico permanecem associados ao hospital, do qual se exclui a medicina de família. Facto que se traduz numa situação paradoxal para os cuidados de saúde primários (a que Boerma chama de “o paradoxo dos cuidados primários”): por um lado, a fraca atractividade deste nível de cuidados, por outro lado, a intenção de o tornar uma forma estratégica para os sistemas de saúde (Boerma, 2006, 16), mas sendo objecto de menor atenção política (Smith e Mays, 2007).

No sistema de saúde português, o hospital tem assumido igualmente uma posição de supremacia, como concluiu o trabalho de Carapinheiro (1993), posição esta que parece vir mantendo até à actualidade, como também têm demonstrado as investigações subsequentes da autora (Carapinheiro, 2001 e Carapinheiro e Page, 2001). Para a autora, se até aos anos 60 o hospital foi considerado a peça central do sistema, a partir desta altura foi considerado uma peça superior mas não central, consequência da substituição de políticas hospitalocêntricas por políticas sanitaristas (Carapinheiro, 1993, 19-20). Contudo, esta mudança de perspectiva não se traduziu, na prática, numa alteração da posição do hospital, mantendo-se este num lugar de supremacia em relação ao centro de saúde. Talvez por isto, os recursos bibliográficos existentes e específicos para o estudo do CS são muito limitados e mais ainda o são para a USF, recentemente criada. Esta escassez de investigação e produção teórica será, por si mesma, ilustrativa da falta de atenção ao sector dos CSP nas prioridades e nas preferências das investigações sociológicas, mas será, igualmente, denunciadora do lugar periférico do CS no sistema de cuidados.

Face a esta indisponibilidade bibliográfica, traça-se um quadro teórico elaborado com base nos contributos da sociologia da saúde sobre o hospital27, cruzando essas perspectivas com alguns (poucos) trabalhos sobre a área dos cuidados de saúde primários.

27 Pela já referida ausência de estudos específicos sobre o centro de saúde, esta não é uma escolha

tomada com o objectivo de aplicar os modelos analíticos do hospital ao centro de saúde. Mas é uma opção reflectida e assumida com base nos pressupostos de que o centro de saúde, sendo igualmente uma unidade de saúde, partilhará com o hospital algumas das suas características organizacionais, e que o percurso analítico nos permitirá desocultar as diferenças e as especificidades.

O CS e a USF são perspectivados como uma organização com algum grau de complexidade e cujo processo produtivo de cuidados primários se concentra maioritariamente em dois grupos profissionais: médicos e enfermeiros. Desde a sua criação, estão-lhe atribuídas funções específicas de prevenção, tratamento e cura da doença que lhe determinam uma posição especial no SNS. Ao longo de quase 40 anos de existência, tem passado por várias reestruturações político-organizacionais, algumas nunca cabalmente implementadas, visando o aperfeiçoamento dos modelos de funcionamento e a eficácia na prestação de serviços. Actualmente, é objecto de uma profunda reestruturação organizacional, quer ao nível dos modelos de funcionamento, quer de gestão técnico-administrativa, quer ainda da implementação de novas unidades orgânicas.

Como qualquer organização, o CS e a USF adoptam modelos de racionalização de gestão e administração das actividades e dos serviços produzidos, dispondo para tal de um conjunto de estruturas formais responsáveis por regular o seu funcionamento diário. Neste sentido, integram uma componente formal ou burocrática, da qual constam os regulamentos e procedimentos racionalmente definidos pela hierarquia administrativa (também designada por componente estrutural) que se aproxima do modelo da administração burocrática proposto por Weber.

Ainda como em qualquer outra organização, integram igualmente um vector informal onde se enquadram as acções e interacções não prescritas pela hierarquia das estruturas formais. São desenvolvidas pelos grupos constituintes informais e são “cravadas na própria organização formal”. Importa sublinhar que esta distinção entre os aspectos formais e informais é somente analítica, já que na realidade uns e outros encontram-se “inextrincavelmente” ligados (Blau e Scott, 1979, 18 e 19). Mas, como sublinham os autores, é impossível compreender a natureza de uma organização sem investigar as redes de relações informais e as normas extra-oficiais, bem como a hierarquia formal de autoridade e as regras oficiais.

Blau e Scott (1979) propõem o conceito de “organização formal” para quando as organizações se estabelecem deliberadamente para um certo fim. Sendo este o caso do centro de saúde, especificamente criado para a produção de cuidados de saúde primários. Mas o facto de uma organização ter sido formalmente estabelecida não significa, como

sublinham os autores, que todas as actividades e interacções estejam estritamente sujeitas aos esquemas formais. Dentro da organização formal existem grupos informais que desenvolvem os seus próprios hábitos, valores, normas e crenças, produzindo outros quadros reguladores do comportamento do trabalhador que vão para além da normatividade imposta pelas instâncias hierárquicas, como ficou amplamente demonstrado com as experiências de Hawthorne28.

Esta dualização analítica tem igualmente caracterizado os estudos sobre o hospital, tendo este sido analisado quer em termos da sua crescente burocratização/racionalização, quer salientando as limitações das abordagens neo-burocráticas pela impossibilidade destas fazerem emergir para o campo analítico as dimensões informais das práticas laborais e das lógicas de organização dos grupos profissionais. A discussão tem sido marcada pelo debate em torno da parcial inadequação da teoria Weberiana ao estudo das organizações de saúde e, mais especificamente, do hospital. Isto porque, se por um lado, o hospital apresenta traços salientes da organização burocrática, tal como Weber a entendeu, por outro, evidencia especificidades que não se enquadram no modelo proposto pelo autor (Turner, 1999; Freidson, 1984; Freidson, 1988; Carricaburu e Ménorte, 2005; Carapinheiro, 1993). Pese embora esta insuficiência, a teoria weberiana foi, e é, referência teórica dos estudos sobre as instituições de saúde, nomeadamente hospitalares (Calnan e Gabe, 1991; Turner, 1999; Freidson, 1984 e 1988).

28 As experiências de Hawthorne decorreram de 1924 a 1940, na fábrica que lhe dá o nome, com o

objectivo de perceber a actividade dos grupos de trabalho e as relações do tipo informal que ocorriam nas organizações. A experiência, liderada por Elton Mayo, decorreu ao longo de quatro fases distintas: a primeira incidiu sobre o estudo de determinados aspectos ambientais que afectavam o factor humano, e demonstrou que os aumentos de produção não provinham essencialmente das condições ambientais, mas eram sobretudo devidas ao clima propiciado pelo grupo; a segunda evidencia claramente a organização informal – os operários criam as suas próprias regras e valores; a terceira permitiu verificar que a partir do momento em que os operários atingiam determinado nível de produção, os ritmos e o esforço diminuem; a quarta destinou-se a possibilitar um diálogo entre o investigador e os empregados. Os estudos empíricos das três fases demonstraram que: subsistem desfasamentos comportamentais entre as estruturas formais da organização e aquelas que eram originadas nas relações de tipo informal nos grupos; a autoridade formal do gestor ou supervisor colidia com a do líder informal do grupo de trabalho; os objectivos racionalmente propostos pela empresa nem sempre eram coincidentes com os dos grupos informais (Ferreira, 2001, 29 – 48).

Scambler (1987, 210) refere que os médicos por serem profissionalmente autónomos estão “of the organization but not in it”, o que sugere que nas organizações em que são predominantes, estas não podem ser caracterizadas como completamente burocráticas. Por conseguinte, os conceitos da burocracia racional não formam um campo definitivo para o estudo do hospital moderno, mas comportam a sua utilidade, particularmente importante para compreender alguns disfuncionamentos e conflitos. As limitações analíticas da teoria weberiana residem na sua incapacidade para captar empiricamente a rede das relações informais, sendo precisamente aqui que se geram e legitimam as dimensões da autoridade profissional. Ao preocupar-se com os aspectos formalmente instituídos da organização burocrática, ignora a estrutura informal, negligenciando as formas como as regras são modificadas pelos padrões não racionais, excluindo assim da análise os “aspectos mais dinâmicos das organizações formais” (Blau e Scott 1979, 49). No fim dos anos sessenta, o modelo proposto por Mintzberg, bem adaptado para compreender o funcionamento das organizações de saúde no contexto de prosperidade em que se encontravam, serve de análise para a generalidade dos estudos sobre o hospital (Carricaburu e Ménorte, 2005). Mintzberg (1995) propõe uma tipologia de configurações estruturais, estabelecida em função do tipo de coordenação, concepção e de factores de contingência de cada organização, deles dependendo o tipo de estrutura. A burocracia profissional surge como um conceito misto onde se incorporam a burocratização e a profissionalização e pode ser encontrado em profissões como a medicina ou a docência, no hospital ou na universidade.

Na burocracia profissional o trabalhador controla a sua actividade, mantém-se próximo dos clientes e utiliza o seu saber, adquirido ao longo de vários anos, na auto-determinação das funções que exerce, mas a estrutura das organizações é essencialmente burocrática e a sua coordenação é assegurada pelos padrões que pré-determinam o que deve ser feito. Contudo, as normas de regulação do trabalho são, em grande parte, elaboradas pelas associações profissionais, fora da estrutura burocrática. Mintzberg classifica a burocracia profissional de "descentralizada", tanto na dimensão vertical quanto na horizontal, em que a complexidade do trabalho impede a supervisão dos superiores hierárquicos e produz efectivo poder profissional. Os profissionais não só controlam o seu trabalho, como exercem o controlo sobre as decisões administrativas que os afectam, dando origem a duas hierarquias paralelas: uma para os profissionais com capacidade auto-regulação e

outra para as funções de apoio, reguladas pela burocracia mecanicista. Na hierarquia profissional, o poder reside na especialização do saber e na hierarquia "não-profissional". Poder e estatuto estão associados à função e não aos trabalhadores.

Surge assim na discussão sociológica sobre as profissões, nas décadas de setenta e oitenta, "talvez a mais importante e estimulante análise sociológica sobre a medicina" – os livros de Eliot Freidson Profession of Medicine, e Professional Dominance (Coburn, 2006, 432), ainda hoje background teórico e referência incontornável em qualquer estudo sobre o tema.

Freidson (1986, 158 – 168) reconhece que, tal como outros já observaram, existe um conflito intrínseco entre os conceitos da burocracia racional-legal e a perspectiva anglo- americana do profissionalismo. Não é um conflito sobre a racionalidade mas com a autoridade, já que na burocracia a autoridade dos superiores resulta das posições ocupadas e não das qualidades pessoais ou das suas competências. Acresce ainda que os profissionais esperam ser autónomos apenas em função das suas competências e do seu conhecimento. Podem aceitar conselhos, até mesmo ordens, mas só se forem decorrentes da competência dos dirigentes, e apenas desta e não do facto de assumirem posições administrativamente superiores. Assim, as questões empíricas dizem respeito à forma como as organizações reflectem os elementos formais do conceito de Weber.

Freidson (1986, 166) analisa ainda o poder de “gatekeeper”, ou seja o monopólio que detém os profissionais credenciados no acesso e no fornecimento aos clientes de certos bens e serviços. O poder de gatekeeper resulta da posição credenciada que o profissional detém nas organizações formais. Este poder varia de profissão para profissão e de organização para organização, mas quem o possui de forma mais extensiva é a profissão médica, cujos membros podem certificar nascimentos e óbitos, e determinar as admissões ao hospital. Certificam a doença e elegem os sujeitos para acederem a benefícios fiscais dos programas governamentais (Freidson, 1986, 167 e 168).

Podemos dizer que a investigação produzida sobre o hospital ficará marcada pelo debate sobre a insuficiência da teoria da burocracia racional e a ênfase nos conceitos de autonomia técnica e profissional, de auto-definição e auto-regulação do conteúdo das tarefas médicas e da posse de prerrogativas conducentes ao exercício de uma autoridade que não se enquadra nos parâmetros da legitimidade racional. Os profissionais médicos

são descritos como detentores do monopólio do conhecimento sobre a doença, condição que lhes concede uma posição de supremacia na hierarquia organizacional e lhes permite exercer não só o auto-controlo, como o controlo de outros profissionais que actuam na sua dependência (Turner, 1999; Freidson, 1984; Freidson, 1986; Carapinheiro, 1993) e, desta forma, regerem-se mais por regras e normas profissionais do que pelas normas e regras burocráticas.

No caso do hospital verifica-se que a autoridade do médico é exercida em todos os níveis da estrutura hierárquica, quer sobre os enfermeiros e restantes trabalhadores, quer sobre os doentes e mesmo sobre a direcção administrativa, existindo, portanto, no hospital uma linha de autoridade racional exercida pela administração e uma outra exercida pelo corpo médico. Aqui, a profissão médica afirma diariamente a sua autonomia em relação à gestão administrativa e financeira, apoiada na representação de que no hospital intervém dois actores principais: o corpo médico e os órgãos da direcção, cada um dispondo de competências e formas de poder específicos. Neste modelo da burocracia profissional, a repartição do poder é desigual, porque a cada um competem actividades de natureza diferente. A complexidade das tarefas, o estatuto profissional dos sujeitos e a importância social das actividades confere à profissão médica uma importância largamente mais reconhecida do que à dos órgãos administrativos. Porque a actividade médica é mais imprevisível e menos rotineira, não se expõe ao controlo administrativo (Carricaburu e Ménorte, 2005, 28 e 30).

Estes modelos interpretativos da realidade hospitalar permitem uma leitura do funcionamento do hospital, das relações no interior do serviço, mas não são suficientes para uma análise macrossocial, porque ocultam muitos dos elementos constituintes da organização e da complexidade do crescimento tecnológico (Carricaburu e Ménorte, 2005, 29).

Turner (1999, 129), ao discorrer criticamente sobre a teoria sociológica das profissões, vai pontuando a sua evolução (de Parsons e Durkheim para quem as profissões liberais representam a institucionalização de valores como o altruísmo, às correntes feministas, críticas da profissão médica, para quem a actividade é dominada pelo patriarcado médico que exerce a autoridade e o controlo sobre outros grupos que lhe estão subordinados, em especial as mulheres) para concluir que esta se tem desenvolvido numa contradição de

paradigmas – entre campos tradicionais, constantemente a serem rejeitados a favor de paradigmas revolucionários. Em consequência, diz, a teoria sociológica não apresenta continuidade. Ao rejeitar o seu passado, está numa instável e fragmentada evolução. Por isso o autor propõe uma síntese teórica em ordem a desenvolver uma abordagem estável e compreensiva das profissões e da profissionalização (Turner, 1999, 131).

Nessa síntese teórica pode perceber-se uma tentativa de considerar os diversos contributos: das teses do profissionalismo à permeabilidade das profissões às regras burocráticas, às teses de desprofissionalização e proletarização. Na sua perspectiva, a base para a atribuição do prestígio social reside na posse de um conhecimento especializado, inacessível ao cidadão consumidor dos serviços, e assente num elevado grau de tecnicidade e indeterminação do conhecimento. Porém, quando o conhecimento é passível de ser codificado e desenvolvido por computadores, as profissões tornam-se vulneráveis à fragmentação do saber e ao seu controlo pela burocracia. Para se protegerem contra a segmentação do saber precisam de uma barreira que as proteja contra esta rotinização. Essa barreira é a posse de competências exclusivas para a interpretação – uma área insusceptível de determinação rigorosa pelos meios tecnológicos. Assim, a profissionalização como estratégia para manter o monopólio do saber, exige a produção e a manutenção de um corpo de conhecimentos esotéricos, o que requer considerável capacidade de interpretação na sua aplicação; exige ainda que se mantenha e cultive uma extensa clientela para os seus serviços; e que se conservem certos privilégios, nomeadamente a autonomia profissional.

Turner (1999, 153) apresenta o hospital como um exemplo concreto do progresso da racionalidade instrumental na sociedade moderna e um local de trabalho intensivo do sistema médico. O facto de ter vindo a assistir a um aumento do número de profissionais tem, consequentemente, originado um aumento da complexidade desta instituição, associada à expansão dos sistemas administrativos burocráticos. Comporta uma estrutura administrativa, mas a profissão médica dispõe de um considerável poder profissional que permite ao médico tomar decisões que não são determinadas pelo sistema administrativo. Existe por isso, na perspectiva do autor, um sistema dual de autoridade (Turner, 1999). Em consonância, Carapinheiro (1993), no estudo que realizou sobre o hospital em Portugal, refere que uma análise atenta e minuciosa da organização quotidiana da vida

hospitalar, permite concluir pela existência de um duplo sistema de autoridade: uma linha de autoridade com origem na administração; e uma outra com origem na profissão médica, baseada no poder carismático que os médicos detém pela posse de um conjunto de atributos que se apresentam como exclusivos: o domínio de um campo científico inacessível; a imprevisibilidade do conteúdo das suas funções, sempre dependente das necessidades dos doentes; as qualidades mágico-carismáticas atribuídas pelos doentes. Assim, coexistem na mesma instituição, dois princípios de autoridade cuja natureza se aproxima da autoridade racional-legal – o caso da autoridade que emana da administração; e a autoridade carismática – o caso da autoridade que emana do corpo médico (Carapinheiro, 1993). Esta última assente num poder-saber gerador da posição dominante da medicina na divisão do trabalho, a ela se subordinando todas as profissões com quem desenvolve a sua actividade (Carapinheiro, 2005).

Embora possamos considerar que a maioria das organizações possui uma estrutura hierárquica, com regras formais, este formalismo não significa que sejam burocracias, no sentido estrito do termo. A questão coloca-se ao nível da organização do trabalho e das rotinas do quotidiano, em que os profissionais, embora guiados pelas regras burocráticas, são livres de produzirem as suas regras no decurso do seu trabalho, o que acontece quando a organização social da divisão do trabalho envolve profissionais com um estatuto social e profissional elevado, sendo, por isto, mais regulada pela sua própria autoridade do que pela autoridade administrativa.

O duplo sistema de autoridade do hospital permite ao profissional médico exercer o seu domínio em todos os níveis da estrutura organizacional e a auto-regulação diária da sua actividade (Smith, 1970, 259 e 262). Smith considera que a coexistência de duas linhas de autoridade resulta da complexidade da organização hospitalar, mas caracteriza igualmente outras organizações. Questionamos: caracterizará igualmente o CS e a USF? Há que ter em conta que o poder carismático que os médicos hospitalares detêm (Carapinheiro, 1993) poderá encontrar-se diminuído nos médicos do CS e da USF pelo facto de estes não apresentarem o poder simbólico nem o reconhecimento profissional comparável ao dos