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Do percurso na procura do objecto e da abordagem empírica

CAPÍTULO II – DO PERCURSO TEÓRICO E METODOLÓGICO

4. Do percurso na procura do objecto e da abordagem empírica

Uma das grandes falácias metodológicas do último século na investigação social foi a crença de que a ciência é um tipo particular de técnica. Não é. É um estado de pensamento (mind), por isso as condições organizacionais que permitem a sua produção

devem ser expressas (Dingwall (1992, 163). Neste sentido, e porque consideramos importante, sociologicamente relevante e epistemologicamente forçoso, expomos de seguida o(s) quadro(s) e os contextos em que se realizou a pesquisa empírica.

Definidos e assumidos, o objecto e os objectivos gerais, iniciaram-se as diligências administrativas para se obter autorização para a realização da investigação num centro de saúde. Impunham-se, à partida, duas condições: que o centro de saúde se inscrevesse na área metropolitana do Porto e integrasse, pelo menos, uma USF. A primeira condição prendia-se apenas com razões de ordem prática, a segunda resultava dos objectivos traçados e constituía-se como um vector analítico de extrema importância. Começámos por enviar o pedido à Administração Regional do Norte (ARSN), em Setembro de 2006, e obtivemos autorização em Novembro do mesmo ano para a realização do estudo num centro de saúde da cidade do Porto, tendo este, tal como pretendíamos, uma USF em início de funcionamento. Foi então contactada telefonicamente a direcção do centro de saúde, através da secretária da direcção, que nos garantiu que agendaria uma reunião com os elementos da direcção logo que fosse possível. Essa reunião só viria a acontecer em Março de 2007, após vários e insistentes contactos telefónicos com a secretária, apelando para a sua compreensão, tendo em conta a obrigatoriedade de cumprir prazos académicos e a necessidade de darmos início às actividades de investigação.

Porém, eram-nos sempre referidos vários obstáculos, quer de indisponibilidade das pessoas da direcção, quer por motivo de obras, ou outros inerentes ao próprio funcionamento do centro de saúde. Quando se realizou a primeira reunião, foi-nos solicitado o projecto de investigação e assegurado que, depois de este ser recepcionado, seria analisado e marcada nova reunião para definir a estratégia de execução da pesquisa. Decorreram mais três meses até que essa reunião se realizasse. Repetiram-se os contactos telefónicos e repetiram-se, igualmente, as dificuldades em agendar nova reunião. Esta viria a ocorrer em inícios do mês de Julho do mesmo ano.

Estes breves, e poucos, contactos da investigadora com o terreno de investigação começaram a evidenciar dificuldades várias: da indisponibilidade dos dirigentes, às dificuldades em se movimentar livremente pelas instalações do centro de saúde, passando ainda pelos longos tempos de espera de cada vez que lá se dirigia (passados numa pequena sala de espera, situada no último andar e isolada de toda a realidade da

organização, impedindo a socióloga de, sequer, ir tomando contacto com os profissionais). Adivinhava-se um processo difícil, que começava já a colocar grandes preocupações quanto à dificuldade em se atingir um objectivo fundamental da investigação: o de conhecer por dentro e a fundo a realidade diária do centro de saúde. Ainda durante o mês de Julho fizeram-se as primeiras incursões aos territórios clínicos e estabeleceram-se as primeiras conversas com os médicos. Cedo percebemos que só podíamos contactar os médicos após prévio acordo destes com o director e que de cada vez que entrávamos num gabinete e entabulávamos conversa com um médico, o director entrava no gabinete para saber “se tudo estava a correr bem”.

Procurámos contornar este aparente controlo combinando com um dos médicos (internamente designado por assessor do director) novos contactos. No dia seguinte recebemos um telefonema da secretária da direcção a informar que o director tinha uma necessidade urgente em reunir com a investigadora, e que esta não deveria prosseguir com a investigação sem que tal reunião acontecesse. A urgente reunião seria marcada logo que houvesse disponibilidade de agenda. Mas a reunião não foi marcada, e, mais tarde, fomos informados que o director se encontrava de férias. Tudo ficaria adiado para o seu regresso em Setembro.

Retomámos nós os contactos com a secretária, já em Outubro de 2007. Mas novamente se repetiam as indisponibilidades do director. Era-nos dito que logo que fosse possível seríamos contactados. Mas não fomos.

No decurso destes acontecimentos íamos reflectindo sobre a equação entre o interesse e a relevância sociológica destas práticas obstaculizantes da investigação nas organizações de saúde e a necessidade, imperiosa, de avançarmos com a pesquisa empírica. E, sobretudo, a evidência, que já se configurava, da impossibilidade de concretizarmos uma observação profunda do funcionamento do CS, capaz de produzir matéria empírica suficientemente densa e diversa da realidade social para se oferecer à análise sociológica. A decisão resumia-se, assim, à ponderação das suas consequências: se se optasse por perseverar, seríamos obrigados a redefinir a estrutura metodológica e veríamos sucumbir o objectivo de entrar na máquina centro de saúde; se se optasse por desistir e procurar outro centro de saúde, contornávamos o primeiro obstáculo e, sobretudo, mantínhamos os mesmos objectivos da investigação (e que representavam também objectivos pessoais).

Sem conseguirmos estabelecer contacto directo com a direcção do centro, persistimos até Dezembro de 2007, altura em que decidimos enviar novo pedido de autorização à ARSN para a realização da investigação noutro centro de saúde, que reunisse as duas condições impostas. Para evitar que se repetisse o processo anterior, accionámos os conhecimentos pessoais e fomos conhecer previamente o centro de saúde escolhido. O contacto pessoal permitiu-nos o acesso às instalações, conhecer alguns profissionais, conversar com eles e até manter uma longa conversa com o director. Aparentemente tudo era diferente. Fomos bem acolhidos, a nossa presença não constituía qualquer problema, poderíamos desenvolver as actividades de observação em todos os serviços, o tema do estudo foi considerado muito interessante e houve uma manifesta vontade em colaborar com a investigadora em tudo o que fosse necessário.

Desta feita, a autorização da ARSN foi mais demorada. Foi obtida em Março de 2008. De imediato demos início aos contactos com o centro de saúde e uma das duas USF que o integravam. Tal como já se tinha tornado saliente aquando do contacto prévio, fomos recebidos com manifesta e aberta disponibilidade por parte do director do centro de saúde. Confrontado este com a necessidade, imposta pelos objectivos do estudo, da investigadora conhecer “por dentro e a fundo” o funcionamento das unidades foi, desde logo, afirmado que não seriam criados quaisquer impedimentos para que tal propósito fosse levado a cabo. Desencadeados os mecanismos formais de autorização interna, contactámos o coordenador da USF, cuja disponibilidade foi igualmente manifesta. A propósito das estratégias de abordagem às unidades de investigação, Carapinheiro (1993, 88 – 89) salienta que

“As formas utilizadas para o investigador se apresentar e apresentar o seu trabalho de pesquisa variam sempre, de acordo com o investigador e os seus recursos, de acordo com os sujeitos que vão ser investigados e de acordo com o próprio problema de pesquisa”.

Concordamos inteiramente, mas ao reflectirmos sobre o nosso percurso, não podemos deixar de acrescentar que a mesma estratégia, o mesmo problema e a mesma investigadora obtiveram reacções de aceitação muito diversas, não por parte dos mesmos sujeitos, mas por parte de agentes do mesmo universo profissional. Não há, portanto, formas padronizadas de aceder ao campo de pesquisa (Carapinheiro, 1993), mas há uma evidente resistência à presença de sociólogos em algumas unidades de saúde. Noutra

investigação, por nós desenvolvida, igualmente sobre o centro de saúde, havíamos já constatado semelhantes dificuldades e que “todos os contactos, após meses de troca de correspondência, exposições, telefonemas, entrevistas, redundavam em recusas” (Teixeira, 2003, 45).

Neste caso, tínhamos conseguido autorização e, tão importante quanto esta, a aceitação da nosso presença33, não só nos espaços de acesso público, como nas zonas mais interditas – os bastidores – onde se desenvolvem as acções formais e informais, nucleares ao funcionamento diário das unidades. Estamos a falar dos espaços de convívio/alimentação, onde diariamente se processam as negociações informais; das salas de reuniões, das quais apenas participam os elementos convocados, funcionando, assim, como salas interditas à maioria dos trabalhadores e onde se tomam decisões que a todos afectarão; dos gabinetes médicos, que, embora sendo territórios de privacidade do doente, se transformam facilmente em salas de portas entreabertas, ou completamente abertas, onde o doente se expõe, a ele e à sua doença.

Em todos os contactos com o coordenador da USF e com o director do CS sublinhámos, sempre, que pautaríamos a nossa presença pela discrição e que toda a informação recolhida teria por exclusiva função servir de material para análise sociológica, estando sempre salvaguardados os princípios éticos, da confidencialidade e anonimato dos sujeitos, e da deontologia profissional.

Tratando-se de duas unidades em estudo, tornou-se necessário diferenciá-las e para tal identificá-las. Para salvaguarda da verdadeira designação e de uma possível identificação dos profissionais, atribuímos designações a cada uma das USF, sendo o CS apenas identificado como CS. Como já foi dito, a USF que resultou da transformação do CS em

33 Contudo, no decurso da investigação viríamos novamente a encontrar algumas resistências à

nossa presença e à aceitação do trabalho de observação nos espaços mais resguardados. Em Dezembro de 2008 é criada a USF A que passou a integrar todos os médicos do CS e quatro dos seis enfermeiros. Embora a funcionar nas mesmas instalações e com os mesmos profissionais, confrontámo-nos com uma manifesta mudança de atitude. Os enfermeiros, mais tímidos na expressão do incómodo provocado pela nossa presença, mostravam-se atarefados. Os médicos estavam sempre indisponíveis: a cada pedido para realizarmos as entrevistas diziam-se assoberbados de trabalho. Pouco a pouco ia-se tornando evidente que a nossa presença era não só indesejada, como mal tolerada. Dos quatro médicos, dois rejeitaram conceder-nos a entrevista e recusaram autorização para assistirmos às consultas.

USF por USF A e a USF que funciona noutra freguesia e já existente à época do início das actividades de pesquisa por USF B.

Começámos por estabelecer contactos com o director do CS e o coordenador da USF B para apresentarmos a pesquisa e acordar estratégias para as primeiras abordagens. No CS solicitámos autorização para assistir a uma reunião de médicos e assim seríamos apresentados a todos estes profissionais. O director autorizou, embora com algumas reservas relativas a determinados assuntos que seriam discutidos. Assistimos à primeira parte da reunião e ausentámo-nos quando nos foi solicitado. O director apresentou-nos e informou sobre o estudo e a presença da investigadora. Os médicos, sem se manifestaram, concordaram silenciosamente.

Na USF B foi o próprio coordenador que, logo no primeiro contacto, considerou oportuna a nossa presença na reunião semanal para nos apresentar aos profissionais34. Assistimos,

fomos apresentados, apresentámos o estudo e apresentámo-nos. Foi mostrado interesse pelo tema da investigação e manifesta receptividade por todos os presentes. Ainda neste dia, o coordenador mostrou-nos as instalações, introduzindo-nos em todos os gabinetes, apresentando-nos aos profissionais, afirmando-se disponível para colaborar em todo o processo de pesquisa. Desde este primeiro contacto percebemos que era nesta USF que a penetração nos diversos espaços iria ser mais facilitada.

Estabelecido o contacto com todos os elementos com funções de chefia e obtida a aceitação da nossa presença, desenhou-se um mapa de trabalho que tinha por complexa função articular os tempos de pesquisa nas duas unidades, cada uma com ritmos próprios de organização funcional, originando diferentes períodos de concentração do trabalho médico e de enfermagem, além da distância física que as separava (cerca de 15 km). Numa e noutra unidade a intensidade do trabalho tendia a concentrar-se no período da manhã, deixando as instalações praticamente desertas durante a tarde.

Face a estas circunstâncias e tendo em conta que um dos objectivos do estudo era perceber a estrutura funcional, formal e informal, equacionaram-se vários formas de

34 Nas reuniões da USF participam todos os médicos e um representante de cada categoria

profissional, um enfermeiro e um administrativo. No CS realizam-se reuniões de médicos, com participação exclusiva destes profissionais e reuniões de trabalho, onde participa também o coordenador da enfermagem.

colocar em prática a pesquisa: definir iguais períodos para cada uma das unidades e desenvolver o trabalho de campo separadamente, permanecendo a investigadora unicamente numa unidade; ou estabelecer semanas alternadas para cada unidade. Começámos por fazer uma gestão semanal das presenças nas duas unidades em estudo. Mas, em Setembro de 2008, fomos surpreendidos com a candidatura dos médicos do CS à criação de uma USF. Este facto gerou novas e intensas dinâmicas organizacionais no CS e produziu uma divisão interna entre os profissionais – os que integrariam a USF e os que se encontravam excluídos da nova unidade. Face a esta circunstância, impunha-se agora seguir com maior proximidade, intensificando a presença da investigadora no terreno, para acompanhar todo este intenso processo de mudança.

Assim, foi decidido dedicar a exclusividade do trabalho de campo durante algum tempo ao CS. Por conseguinte, de Outubro de 2008 a Março de 2009 a presença da investigadora ocorreu apenas no CS e na nova USF A. A partir de Abril de 2009, na USF A já se tinha ultrapassado a agitação da mudança e as (novas) rotinas reinstalavam-se nos profissionais e nos próprios doentes e o CS transitava para uma quase não-existência. Foram, então, retomadas as actividades de observação na USF B, que se alongaram até Setembro de 2009 e dado por terminado o trabalho de campo na USF A e no CS.

A duração do tempo de observação não estava sujeita a determinações prévias, tomando- se sempre como princípio um critério de maleabilidade e flexibilidade capaz de se adaptar às exigências, aos ritmos e às ocorrências empiricamente relevantes. No CS o término do período de observação foi decidido quando esta unidade entrou num estado de letargia organizacional, completamente vazio de funções assistenciais; na USF A a observação deu-se por concluída quando, passada a fase de instalação, a organização entrou no regular funcionamento, as rotinas se instalaram e os profissionais se reenquadraram na nova ordem do quotidiano de trabalho. Na USF B seguiu-se idêntico critério: deu-se por terminado o trabalho de campo quando a recolha de informação começou a evidenciar um claro sinal de repetibilidade. Percebemos que nos confrontávamos com o chamado ponto de saturação, em que a observação já pouco comportava de novo ou verdadeiramente relevante para a investigação.

As primeiras incursões da investigadora no terreno para a observação directa e sistemática do quotidiano das unidades serviram para abrir canais de penetração nos bastidores dos

serviços. Estabelecemos as primeiras conversas informais com a maioria dos profissionais, ou por via directa, nos encontros ocasionais (nas salas de refeições), ou accionando conhecimentos anteriores que nos introduziam nos gabinetes de enfermagem e por detrás dos balcões de recepção. Esta estratégia permitiu-nos conhecer (e ser conhecidos) pela maioria dos trabalhadores.

A participação nalguns instantes passados no bar potenciou o nosso acolhimento, pela partilha de um momento que nos permitia tornar num deles. Nesta altura já vestíamos bata branca e exibíamos o cartão de identificação, elementos recomendados pelo director do CS e pelo coordenador da USF B, para nos movimentarmos incaracteristicamente pelas unidades. Estes recursos simbólicos revelaram-se cruciais para a aproximação aos profissionais e para desenvolver um sentimento de comunhão aquando dos encontros comensais. Sentimento este que não era possível quando assistíamos aos restantes acontecimentos: nos gabinetes médicos, de enfermagem e nos balcões de recepção éramos sempre observadores. Condição sempre desconfortável para quem observa e quem é observado.

No CS mantivemos as actividades de pesquisa durante cerca de um ano (de Abril de 2008 a Abril de 2009), um período que subdividimos em três segmentos temporais a que correspondem diferentes ciclos na relação da investigadora com os investigados. Um primeiro período decorre de Abril a Setembro de 2008, enquanto o CS funciona em modelo tradicional, em que o director manifesta total abertura à nossa presença.

Procurámos construir uma plataforma de conhecimentos que nos permitiria ser reconhecida pelos três principais grupos profissionais: médicos, enfermeiros e administrativos. Os médicos mostraram alguma resistência à nossa presença, mas esta nunca seria abertamente manifestada; os contactos e a observação do trabalho em enfermagem foram facilitados pela figura do enfermeiro-chefe que nos referenciava e introduzia nos gabinetes de trabalho com grande à-vontade; e, no grupo dos administrativos, os contactos foram igualmente facilitados pela acção da chefe-de-secção, coordenadora do grupo. O acolhimento pelos elementos dirigentes (secretária da direcção, enfermeiro-chefe e director) foi sempre amistoso, afável, simpático e descontraído. Era nos gabinetes destes que nos sentíamos menos observadores e mais um deles.

Agosto, embora, aparentemente, se mantivesse a mesma ordem organizacional, tudo estaria subterraneamente em ebulição. A partir desta fase, tornou-se manifesto o fechamento do grupo envolvido na criação da USF à presença da investigadora. Escudando-se no assoberbamento de trabalho exigido pelo processo de candidatura, os profissionais furtavam-se aos contactos que procurávamos estabelecer, mostrando-se indisponíveis para qualquer conversa, e a nossa presença nos espaços de trabalho era pouco ou mal suportada. Nesta altura receámos pela finalização da pesquisa empírica naquela unidade. Persistimos e mantivemo-nos presentes, mas permanecendo mais tempo junto dos que não integravam o projecto do que nos agentes directos da mudança.

Com a inauguração da USF, entrámos no terceiro ciclo da relação com os investigados. A resistência e hostilidades já sentidas agudizaram-se e o trabalho de pesquisa transformou- se numa provação diária de resistência às recusas, indisponibilidades e hostilidades, veladas primeiro, manifestas depois, particularmente dos médicos. Impunha-se para esta altura a realização das entrevistas, um timing escolhido para potenciar a recolha de posicionamentos sobre o confronto do modelo USF e CS, mas o seu agendamento enfrentava sérias dificuldades de concretização.

Na realidade, na pesquisa em saúde há muitos constrangimentos nas circunstâncias externas ao desenho da metodologia (Daly e McDonald, 1992) e ao calendário de actividades e, neste caso, os constrangimentos pareciam estar a transformar-se em barreiras intransponíveis.

Os enfermeiros e administrativos, embora mostrando-se atarefados, acederam e todos foram entrevistados. Mas dos quatro médicos apenas dois nos concederam entrevistas. Ao longo de cerca de um mês e meio uma médica refugiou-se em repetidos "agora não posso", "amanhã também", "nos próximos tempos também não" para adiar a decisão de recusa ou aceitação da entrevista. Ao longo deste tempo foi utilizando diversas estratégias para desencorajar a insistência da investigadora, da hostilização dos gestos à rispidez das palavras. Por fim, será o recurso à fuga a qualquer tipo de contacto, telefónico e pessoal, que tornou a sua, não-verbalizada, recusa bem sucedida. Após cerca de três meses de goradas tentativas para obtermos a entrevista, desistimos.

Outra médica assume idêntico comportamento de evasão, evitando a nossa presença, e rejeição nunca verbalizadas. Mas um dia confrontámo-la directamente com o pedido para

a realização da entrevista. Desconfortável, inibida, refugiou-se no ecrã do computador e evitou olhar a investigadora. Alegou falta de tempo, mas concedeu ser entrevistada com uma condição – não autorizava a gravação. Aludimos à necessidade de efectuar registos por escrito para posterior análise. Rejeitou, porque iria demorar mais tempo. Propusemos- lhe fornecer as questões para responder por escrito. Rejeitou, porque não tinha tempo. Sugerimos-lhe efectuar a entrevista noutra altura ou noutro lugar da sua conveniência. Rejeitou, porque nunca tinha tempo, nem trabalhava em nenhuma clínica privada, por isso não existia outro lugar. Neste jogo de forças e de evidente coacção psicológica e impasse na decisão, esgotámos as propostas e dissemos "pode recusar. Só preciso é que me diga, para eu efectuar o registo." Manteve o olhar fixo no computador, e respondeu: “então, tá bem.” Perguntámos “está bem como? Recusa a entrevista?” Quase em surdina, respondeu: “Recuso” (dc-usfA).

Ao longo de todo este tempo, a tentação de abandonar o local de observação era sentida diariamente. Na ida, tínhamos que lutar com a força da vontade de não ir, luta que só ganhávamos recorrendo a doses incomensuráveis de obrigação e do "tem que ser". No