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Opções metodológicas e estratégias de pesquisa

CAPÍTULO II – DO PERCURSO TEÓRICO E METODOLÓGICO

3. Opções metodológicas e estratégias de pesquisa

A opção por um estudo qualitativo decorre, naturalmente, do quadro teórico, dos objectivos da investigação e da particular complexidade do objecto de estudo. Como já terá ficado evidente, as sucessivas mutações do objecto inviabilizariam a utilização de qualquer outra metodologia de cariz mais quantitativo, onde, por certo, ficariam soterrados os traços verdadeiramente estruturantes desta realidade em estudo.

Dentro da metodologia qualitativa, o estudo de caso permitia direccionar o foco analítico para uma dimensão micro das estruturas e dos contextos organizacionais, das relações interpessoais e interprofissionais, das dinâmicas produzidas nos quotidianos de trabalho e dos universos simbólicos dos profissionais. Estamos, portanto, no território das correntes clássicas da etnometodologia e do interaccionismo (e interaccionismo simbólico) em que o investigador elege a observação-participante como técnica privilegiada na recolha de informação, prestando particular atenção ao sujeito enquanto produtor de interacção social.

A teorização do interaccionismo simbólico (e da etnometodologia) direcciona a focagem analítica para os fenómenos contextualizados na realidade onde ocorrem, buscando um conhecimento a partir do interior dos processos que os originam. É o que pretendemos: um conhecimento de dentro da organização, com uma pretensão que, em linguagem Bourdiana, poderá ser designada por uma procura de exteriorização da interioridade de uma organização prestadora de cuidados primários. Pretende prestar-se grande atenção ao sujeito interactuante, focalizando-se os processos de interacção social, as condutas dos profissionais (Blumer, 1969) e a simbologia que os suporta.

Nestes domínios, é precisamente Erving Goffmann que introduz na teoria sociológica a metáfora do actor social e da perspectiva dramatúrgica, pedida de empréstimo ao teatro. Goffman em “A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias” (1993) assenta o estudo das interacções na analogia do mundo a um palco e dos sujeitos sociais a actores, que ao longo das trajectórias de vida vão desempenhando múltiplos papéis. O objectivo do actor é executar o melhor desempenho do papel de que está acometido, devendo para tal gerir bem as impressões para nunca perder a face. É um modelo dramatúrgico de análise da realidade social capaz de desmontar os esquemas de fabricação da imagem dos actores e, assim, permitir aceder às lógicas e estratégias utilizadas no seu processo de construção. Neste sentido, possibilita uma maior aproximação da interpretação à realidade.

Sendo a investigação qualitativa inerentemente multimetódica (Stake, 1994), e abrangendo diversas estratégias de pesquisa empírica, num estudo de caso intensivo não se pode recorrer a uma única técnica, mas a uma pluralidade delas, accionadas alternada ou simultaneamente (Costa, 1986) de acordo com as exigências do processo de investigação e as hipóteses formuladas. Como reconhecem Daly e McDonald (1992), a investigação em saúde requer uma metodologia flexível para se obter as respostas mais compreensivas, já que quando um problema é estudado por diferentes perspectivas de pesquisa, levantam-se diferentes questões e recolhe-se uma diversidade de dados (Daly e McDonald, 1992, 3). Ora, este é, precisamente, um dos nossos principais objectivos – a recolha de informação abrangente que permita uma caracterização aprofundada e sob diversos aspectos da vida organizacional do CS e da USF.

Neste sentido, procurámos construir uma grelha de pesquisa pluri-instrumental, operacional e flexível, que fosse capaz de captar a sucessão, mais ou menos imprevista,

das “possibilidades de observação inesperadas, não programáveis, singularmente significativas” de uma “realidade complexa, em toda a sua espessura e diversidade” (Costa, 1986, 133 – 134) – a realidade organizacional, profissional e social do CS e da USF. Esta é também uma exigência que decorre da hipótese central (e das linhas teóricas subjacentes), que ao pretender equacionar sobre o CS e a USF, enquanto lugares organizacionais e profissionais, obriga a uma profunda imersão na realidade quotidiana. Para isto, exige-se uma metodologia que seja capaz de captar os aspectos dinâmicos da organização, o que se consegue “de dentro, vendo, ouvindo, estudando os documentos com os quais os seus membros orquestram ou justificam as suas actividades” (Dingwall, 1992, 163), o que implica o envolvimento e a penetração do investigador no terreno para compreender como os grupos dão sentido às suas experiências. Como dizem Blau e Scott (1979, 29)

“existem três maneiras de obter informações a respeito de pessoas: observando-as, fazendo-lhes perguntas ou examinando algo escrito por elas ou sobre elas. As três categorias de técnicas de pesquisa que correspondem a essas operações são: observação, entrevista e análise de documentos. Uma dessas técnicas pode ser usada com exclusão das outras, ou um estudo pode combinar os três métodos”.

Optámos por combinar as três técnicas. Elegemos como principais técnicas de pesquisa a observação-participante e a entrevista semi-estruturada e, complementarmente, recolhemos e analisámos a documentação interna disponível e acessível para perceber a estruturação da dinâmica organizacional. A observação-participante foi desenvolvida de forma continuada nas unidades em estudo, permitiu-nos “estar por dentro, ver e ouvir” os actores sociais na realização das actividades e nos diferentes momentos de interacção social; a entrevista semi-estruturada serviu para colher os discursos directos dos profissionais, para os questionar sobre vários aspectos das suas vidas e carreiras e para aprofundar diversas dimensões de análise.

Feita a opção pelo estudo de caso e desenhados os instrumentos de pesquisa nunca se considerou a ambição de produzir informação passível de generalização. Silverman (1992) reconhece que a investigação qualitativa é problemática porque envolve uma falsa polaridade qualitativo/quantitativo. Para ultrapassar essa polaridade, fizeram-se, assumidamente, as escolhas no campo das metodologias qualitativas sustentadas por uma

base teórica e conceptual que atravessasse todo o processo de pesquisa. Porque a “teoria é tanto um ponto final como um ponto de partida da pesquisa” (Blau e Scott, 1979, 21), deverá ser tão robusta cientificamente, quanto adequada empiricamente, para ajudar a identificar o problema e a encontrar a estratégia metodológica mais apropriada (Dingwall, 1992).

Na fase de desenho do projecto de investigação foi realizado um conjunto de entrevistas exploratórias a dirigentes de organismos da tutela, entidades profissionais e científicas, a saber: ao presidente da Secção Regional da Ordem dos Médicos, ao vogal para os CSP da ARS do Norte, ao director do Departamento de Clínica Geral da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e ao director da Revista de Clínica Geral. Obteve-se vasta informação genérica sobre o sector dos CSP, o ensino e a formação em clínica geral e colheram-se opiniões diversas sobre as mudanças políticas em curso. Produziu-se, assim, uma base de informação, extremamente útil para construir um conhecimento prévio da problemática em estudo, indispensável para delinear melhor as principais dimensões do estudo, bem como para precisar ângulos de análise.

A entrada no campo de pesquisa impôs que se estabelecesse um cronograma e uma agenda de trabalho para definir tempos e períodos de observação e calendarizar a realização das entrevistas. A regularidade e os tempos de observação foram determinados em função dos ritmos do processo de investigação e da própria cadência dos tempos de trabalho, já que, como reconhece Burgess (1997, 66) “as actividades que ocorrem numa organização podem variar de acordo com o tempo, tendo cada organização o seu próprio ritmo”.

Assim, numa primeira fase, procedeu-se à observação paralela no CS e na USF B. Com as alterações introduzidas pela passagem da unidade centro de saúde a USF, optou-se por suspender as actividades de pesquisa na USF B para se intensificar a presença no CS. Após três meses de funcionamento da nova USF A foram dadas por concluídas as actividades de pesquisa naquela unidade e retomadas na USF B.

Para cada actividade de observação procedeu-se ao registo das notas em diário de campo, construídos de forma espontânea, logo após a saída da investigadora do terreno. Optou-se pelo registo mnemónico e cronologicamente descritivo do que era observado, procurando que nada fosse excluído do raio de captação dos sentidos. Neles se condensou informação

rica, diversa e abrangente sobre o funcionamento das instituições, as acções, interacções e reacções de profissionais e doentes, dos ditos e entreditos no quotidiano de trabalho, das estratégias e das tacitudes inter e intra-profissionais, enfim, de tudo o que se viu e ouviu e os sentidos retiveram.

No fim do trabalho de campo, estas notas revelaram-se um precioso instrumento de consulta e um importante depósito de informação, utilizado para sequenciar a descrição das ocorrências, para revisitar os contextos e ajudar no trabalho analítico, ou para confrontar os discursos dos profissionais afirmados nas entrevistas (os ditos gravados) com os registos em diário de campo, captados noutros momentos e noutros contextos. Não se poderá dizer que os diários de campo se revelaram mais importantes do que as entrevistas na pesquisa de terreno, mas poder-se-á afirmar que sem este recurso a pesquisa ficaria incomensuravelmente mais pobre. Neles fizemos o registo do que víamos, ouvíamos, do que nem se via nem se ouvia, mas que se percebia, das cores e dos cheiros, das formas, dos espaços, enfim, das linguagens da realidade. As conversas com os profissionais foram registadas em discurso directo. Recorrendo à memória, reproduzia- se o que tinham dito, procurando ser fiel às expressões, às palavras e até aos ritmos e interjeições. Inevitavelmente, perdeu-se o dito integral na sua forma original, mas ganhou-se uma aproximação à realidade. E não será isso o cerne da investigação: aproximações à realidade?

Nas citações que se apresenta ao longo dos capítulos seguintes optámos por manter o discurso directo, embora tenha sido registado depois de ouvido. A decisão foi tomada tendo em conta que a reprodução dos ditos torna o texto mais expressivo e as considerações feitas pelos profissionais ganham mais ênfase. Fica, no entanto, assinalado que os excertos dos diários de campo quando reportam aos dizeres dos profissionais constituem texto reproduzido pela investigadora.

Nas entrevistas o sujeito pode exercer (e exerce) largo controlo sobre o que diz e como diz. O dito é regulado pela racionalidade cognitiva, numa gestão mais ou menos apurada do que se pode e quer dizer e do que não se pode, ou não se quer dizer, ou, ainda, que não se deve dizer, numa lógica de condicionamento e adaptação aos modelos ideológicos do próprio e dos outros, sobretudo das hierarquias. Por outro lado, poderá utilizar-se a entrevista como uma oportunidade para veicular um discurso de oposição ou defesa das

ideologias dominantes, na procura de transmitir uma imagem de si, dos outros e da organização. Do outro lado, o entrevistador é também um provocador de respostas. Do alinhamento à formulação das questões, das ênfases espontâneas neste ou naquele aspecto, à dimensão relacional, tudo deixa, inevitavelmente, perpassar idiossincrasias, valorações, preferências, posicionamentos e subjectividades.

A relação entrevistador/entrevistado traduz também a insuperável dicotomia sujeito/objecto de estudo. Atentos aos factores de perturbação, procurámos, sempre, que o momento, o lugar e a forma da entrevista fossem decididos pelos entrevistados e que a inquirição decorresse num plano de grande liberdade para o sujeito, pontuando os assuntos e as questões, mas permitindo-lhes sempre que discorressem à-vontade sobre os temas, que divergissem, que se alongassem nas respostas, ou que fossem sucintos.

Os diários de campo, resultantes da observação, comportam outras limitações e levantam outros questionamentos epistemológicos. Exclusivamente dependentes do investigador, estarão, inevitavelmente, carregados de subjectividade(s). Neste caso, optou-se por reduzir ao imprescindível o registo de notas in loco para diminuir os sinais exteriores do papel de observador. Por vezes, refugiávamo-nos numa sala para tomar algumas notas, mas a cadência ininterrupta da acção e o grau de envolvimento e participação da investigadora tornavam visíveis qualquer ausência momentânea e limitavam essa possibilidade.

Chegados ao momento de registar a informação, a insuficiência das palavras e a curteza da memória limitam a sua quantidade e qualidade. O que se regista? O que se esquece? O que se desvaloriza? O que se sobrevaloriza? Tudo parece ser decidido numa arena de processos mentais que teimam em escapar ao controlo da objectividade. É um trabalho de profundo questionamento e um dos problemas com que se debate o investigador- observador, forçado a concentrar-se na sua percepção da realidade, está mais susceptível a introduzir a subjectividade na interpretação das situações e das acções observadas. Com a permanência da investigadora no terreno, geram-se afeições, simpatias, antipatias, afabilidades, hostilidades. Como impedir que todos estes registos emocionais se reflictam nos registos científicos? Estabelece-se uma circularidade permanente, e angustiante (às vezes quase paralisante), entre o que se sente e o que é relevante para a investigação. Auto-impõe-se o recurso à vigilância epistemológica sobre as condições de produção da

informação, procura-se o distanciamento, introduzindo períodos de ausência dos actores e dos contextos. Afastamentos temporários que se mostraram eficazes no desligamento da investigadora das realidades observadas.

Tendo em conta os princípios metodológicos já apresentados, considerou-se desde o início como mais adequado utilizar a entrevista semi-estruturada, elaborada a partir de um painel de tópicos que contemplava aspectos nucleares para a investigação, mas preservando a flexibilidade suficiente para que se adaptasse a cada sujeito. Em cada entrevista realizada o objectivo era o de obter informação aprofundada sobre variados aspectos da vida profissional do entrevistado, das suas impressões e opiniões sobre a organização onde trabalhava, sobre a política e as políticas de saúde, sobre os CSP e tudo o que os circunda, deixando-o discorrer sobre experiências, percursos da vida profissional e pessoal, incursões biográficas e outras decorrências, geradas ao ritmo de uma conversa. No projecto, a calendarização das entrevistas foi remetida para a fase final do trabalho de campo, depois de efectuada uma considerável recolha de informação através da observação. Assim se fez. No CS, as entrevistas foram realizadas depois da sua transformação em USF. Esta opção, equacionada em termos de utilidade e pertinência para a investigação, permitiu questionar os profissionais já em pleno funcionamento da USF e reflectir para os discursos todo o processo de transformação, bem como os efeitos dessa mudança para cada um dos entrevistados. No CS foram realizadas cinco entrevistas aos trabalhadores que não integraram a USF, três enfermeiros, uma administrativa e a técnica de serviço social.

Na USF A efectuaram-se as entrevistas após um mês e meio da sua entrada em funcionamento, o que permitiu grande proximidade dos entrevistados com o antes (o modelo CS) e o depois (o modelo USF), um vector fundamental para a hipótese que questiona o que muda e o que permanece e para os objectivos do estudo. Foram entrevistados todos os profissionais, com excepção de duas médicas que recusaram a permissão, num total de 10 entrevistas (quatro a administrativos, quatro a enfermeiros e dois a médicos).

Na USF B as entrevistas foram efectuadas entre Maio e Julho de 2009, seguindo idêntico critério: num primeiro momento desenvolveu-se a observação-participante, permanecendo as presenças regulares da investigadora no terreno para se construir uma

base de informação razoável e, depois, efectuar as entrevistas. Foram realizadas 17 entrevistas; seis a administrativos; cinco a enfermeiros e seis a médicos.

Ao longo do período de participação no terreno fomos percebendo a necessidade de procurar informação nas entidades responsáveis pela concepção e supervisão do processo de implementação da reforma, tornando-se premente a realização de uma entrevista aos dirigentes e mentores da reforma. Esse momento deveria, no entanto, ocorrer na fase final de tratamento da informação para que se pudesse confrontar o responsável da reforma com alguns dos seus efeitos, procurando na perspectiva da tutela explicações que a observação e os profissionais não foram capazes de nos fornecer. Deixamos, então, para a fase final a realização de uma entrevista ao presidente da MCSP. Esta foi realizada em Novembro de 2010, altura em que a cessação do mandato deste organismo remetia, inevitavelmente, o presidente para a condição de ex-presidente da MCSP. Este facto em nada alterou a oportunidade da entrevista. Formal e institucionalmente desligado das funções de presidente, mantém, contudo, o estatuto de ter sido o principal responsável pela definição e implementação da reforma.

No total, foram realizadas 33 entrevistas, (cujos guiões constam do Anexo I) com uma amplitude de duração muito diversa: houve algumas que se prolongaram por mais de uma hora a outras que rondavam a meia hora ou o quarto de hora. Mas também o tempo de entrevista era decidido pelo entrevistado: alongando-se nos diálogos ou sendo mais conciso e respondendo apenas aos tópicos que eram lançados. Refira-se ainda a utilização frequente de um conjunto de fontes institucionais para a procura de informação oficial, de que destacamos: Administração Regional de Saúde do Norte, IP; Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral; Ministério da Saúde; Alto Comissariado para a Saúde; Portal do Governo; Direcção Geral da Saúde, Administração Central de Saúde, e, em particular e quase diariamente, a Missão para os Cuidados de Saúde Primários.