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2 PELA RESTAURAÇÃO DA IMPORTÂNCIA DA CLASSE SOCIAL

2.3 DO CONCEITO À PESQUISA EMPÍRICA

2.3.1 Classe média

Souza e Lamounier (2010, p. 21) enfatizam que ―tentar definir classe média em termos que possam ser aceitos por todos os pesquisadores é cotejar a frustração. Não existe uma definição consensual‖. Cientes dessa dificuldade, procuramos destacar aspectos dessa classe que parecem mais coerentes com a perspectiva adotada neste trabalho. Essa perspectiva tem como elemento central a compreensão de que são, antes de tudo, aspectos culturais que definem esse estrato, assim como os demais.

A afirmação de Souza e Lamounier se refere especificamente à classe média, pois esse é o grupo considerado mais complexo no entendimento da malha social, mesmo que se possa avaliar que qualquer definição de classe não é consensual. A posição intermediária por si colabora para entender essa dificuldade, visto que o estrato não é ―nem uma coisa nem outra‖. Ademais, como exposto anteriormente, essa posição não estava prevista na composição da estrutura de classes proposta por Marx, ―pai‖ da análise de classe.

No ponto de vista dos entrevistados da pesquisa de opinião do Ibope encomendada por Souza e Lamounier (2010, p. 21), classe média ―inclui todos os que já conquistaram um patamar confortável de renda e que, embora não tenham acesso ao padrão de vida da classe alta, podem desfrutar padrões elevados de habitação, consumo e lazer‖. Ademais, em grupos de discussão realizados para a investigação citada, os participantes afirmam que as pessoas de classe média ―vivem bem‖, ―não apenas sobrevivem‖. Esses aspectos estão claramente relacionados à Economia do bem-estar, que apresenta elementos importantes para entender

essa classe, mas que não são suficientes segundo a perspectiva que adotamos. Assim, a renda permitiria realizar um certo tipo de consumo e constituir um determinado estilo de vida considerado confortável, respondendo por todas aquelas aquisições que costumam ser vistas como necessidades básicas, assim como por ―supérfluos‖ que colaboram para uma melhor qualidade de vida.

Esses aspectos, diretamente relacionados à renda, estão no escopo do que poderia ser denominado classe econômica e classe de consumo. A classe social vai além, incluindo também, como discutido, elementos educacionais, profissionais, de lazer – não só relativos ao acesso a determinados tipos de lazer, mas às escolhas, distintas entre um grupo e outro –, perspectivas de futuro, etc.

Segundo Jessé Souza (2003, 2006, 2009a, 2010, 2013), a principal característica da classe média é a posse de capital cultural diferenciado. Para o acúmulo desse capital, que inicia desde a infância, um aspecto fundamental é o tempo que se dedica à educação e a atividades culturais em geral. O sociólogo expõe que esse tempo, que tem um custo, é ―roubado de outra classe‖, e ―permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo de classes do privilégio‖ (SOUZA, 2013, p. 61). Sendo a relação entre capital cultural e capital econômico íntima, o custo desse tempo só pode ser comprado pelos que possuem os recursos econômicos, num ciclo difícil de ser vencido. Assim, aumentam as chances de os filhos dessa classe conseguirem boas posições no mercado de trabalho e reproduzirem a classe de onde se originam. O elemento educacional também se destaca por diminuir a vulnerabilidade de classe, permitindo que a classe média desfrute de maior segurança e mantenha sua posição social a longo prazo.

[...] uma família de classe média, que tem menos capital econômico que a classe alta, só pode assegurar a reprodução de seus privilégios se a família possui algum capital econômico para comprar o tempo livre dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário mais sofisticado. Ao mesmo tempo, a competição social não começa na escola. Para que possamos ter tanto o desejo quanto a capacidade de absorção de conhecimento raro e sofisticado, é necessário ter tido, em casa, na socialização com os pais ou quem ocupe esse lugar, o estímulo afetivo – afinal, nos tornamos seres humanos imitando a quem amamos – para, por exemplo, a concentração nos estudos, ou a percepção da vida como formação contínua onde o que se quer ser no futuro é mais importante que o que se é no presente. (Ibid., p. 58-59).

Outro fator diferencial da classe média é a autoconfiança, valor presente entre aqueles que tiveram todos os cuidados em sua criação, e que tem função importante, embora opaca, na disputa social. A autoconfiança pode ser desenvolvida devido à garantia do respaldo financeiro da família, pela afetividade recebida desde tenra idade, pelos exemplos familiares bem sucedidos. A classe média ―se reproduz pela transmissão afetiva, invisível, imperceptível porque cotidiana e dentro do universo privado da casa, das precondições que irão permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural‖ (SOUZA, 2009a, p. 19).

Os valores referidos por Owensby (2004 apud GUERRA et al., 2006) como típicos da classe média são especialmente aqueles relacionados a uma postura conservadora, tanto na esfera moral quanto na política. Para ele, na classe média, salienta-se a preservação de valores morais e religiosos; a busca pela supressão de um espírito de cooperação e vontade de ascender da classe operária; e o apoio político à conjuntura vigente. Conforme Vicente (2013), os privilégios da classe média, conquistados durante os anos do ―Milagre Brasileiro‖, podem explicar, em parte, sua postura conservadora, comumente exposta através das contundentes críticas aos programas de distribuição de renda, por exemplo. Guerra et al. (2006) avaliam que modificações no status quo, através do aprofundamento das transformações das relações sociais e de classe no país, não são do interesse da classe média estabelecida. Entre os motivos estaria o encarecimento da mão de obra, que acarretaria perdas para os patrões das empresas ou mesmo das casas, tornando mais difícil a contratação de funcionários domésticos de toda ordem, como se vê em países de classe média sólida. Nesses, diferentemente de no Brasil, empregadas domésticas são raridade, algo que combina questões culturais com o peso maior de seus salários nos países de capitalismo avançado. Os autores ponderam que não é difícil entender ―o verdadeiro sentimento de contradição que parece atravessar esse heterogêneo grupo social: de um lado, o sonho de modernidade, de progresso, de competência, de sucesso; de outro, o favor, o contato, o apadrinhamento, os serviçais, a aparência‖ (GUERRA et al., 2006, p. 63).

No grupo empírico de classe média da pesquisa, como será visto, são nítidos recursos como o capital cultural diferenciado, propiciado pelo acesso à educação e a outras opções culturais, que não fizeram parte da socialização das demais classes consideradas.