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2 PELA RESTAURAÇÃO DA IMPORTÂNCIA DA CLASSE SOCIAL

2.3 DO CONCEITO À PESQUISA EMPÍRICA

2.3.3 Ralé

O termo ―ralé‖ também é tomado de empréstimo de Souza (2009a)24. A ralé é uma

classe de indivíduos ―não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação‖ (SOUZA, 2009a, p. 21). A denominação ―ralé‖, salienta o autor, não é usada ―para ‗ofender‘ essas pessoas já tão sofridas e humilhadas‖, mas, sim, para ―chamar a atenção, provocativamente, para o nosso maior conflito social e político: o abandono social e político, ‗consentido por toda a sociedade‘, de toda uma classe de indivíduos ‗precarizados‘ que se reproduz há gerações enquanto tal‖ (Ibid.).

A história de vida dos indivíduos dessa classe demonstra que, para além da carência econômica, há uma ausência de disciplina, autocontrole e cálculo prospectivo – as pré- condições sociais citadas por Souza –, elementos fundamentais para qualquer plano de futuro. Mattos (2009), que realizou uma pesquisa com prostitutas no Rio de Janeiro, narra que todo o dinheiro ganho por elas é imediatamente empregado em aquisições que satisfazem seus desejos de consumo. A esse grupo – que representa, segundo a autora, uma metáfora perfeita para entender essa classe social, explorada como corpo –, a carência das pré-disposições sociais referidas impedem o poupar e o amparo para o futuro. Nesse sentido, o futuro é privilégio das classes dominantes, e não está acessível a todos. A ralé estaria, assim,

23 A mesma situação pode ser encontrada em outros países. Referindo-se a personagens de classes populares de um reality show britânico, Murdock (2009, p. 29) avalia que ―esses personagens não articulam pontos de vista políticos explícitos e têm como objetivo principal simplesmente conseguir viver mais um dia, de preferência, dando risada pelo caminho‖. Essa é uma imagem comum do brasileiro, que, pelo senso comum, preocupa-se apenas com o dia de hoje (o que costuma ser relacionado com a falta de ―espírito‖ empreendedor, e não com imposições da realidade social ou com aspectos culturais), não projeta o futuro e se interessa apenas em ―curtir‖ a vida, ou, nas palavras de Murdock, em dar risada pelo caminho. Como expõe Souza (2009a, p. 145): ―Não existe futuro para quem é escravo de suas necessidades e inclinações naturais imediatas.‖ Como se pode inferir, mais do que uma característica de nação, esse modo de vida estaria ligado a um habitus de classe.

24 A ―ralé‖ foi tema do livro de Souza que precedeu ―Batalhadores‖, ―A ralé brasileira: quem é e como vive‖, publicado em 2009.

―condenada a ser ‗corpo‘ sem alma ou mente‖ (SOUZA, 2009a, p. 122), reduzida a energia muscular (Id., 2013).

Em autores estrangeiros, encontramos uma definição semelhante para o que chamam de ―subclasse‖. Embora se encontrem em contexto distinto do brasileiro, consideramos que as características são bastante próximas daquelas destacadas por Souza à ralé.

A ‗subclasse‘ não é um grau de pobreza; não se refere ao mais pobre dos pobres. É um tipo de pobreza: inclui aqueles que não compartilham mais as normas e aspirações do resto da sociedade, que nunca conheceu a tradicional composição familiar com pai e mãe, que está inclinado a abusar de drogas e álcool na primeira oportunidade, que vai mal na escola e que são rápidos para recorrer a um comportamento desordeiro e ao crime. (HAYLETT, 2000, p. 71).

Entre as entrevistadas desta pesquisa classificadas como pertencentes a esse estrato, não se verifica um comportamento desordeiro ou mesmo o uso de drogas ou o abuso de álcool. No entanto, todas têm em suas famílias exemplos próximos desse tipo de comportamento, que as afetam diretamente. Por outro lado, não julgamos que elas ―não compartilham mais as normas e aspirações do resto da sociedade‖. Entendemos que as entrevistadas compartilham de normas e aspirações, mas não das pré-condições para concretizá-las.

Wright (1997) ajuíza que à ―subclasse‖ é negado o acesso a tipos diversos de recursos produtivos e, especialmente, dos meios necessários para desenvolver as habilidades que permitem adquirir esses recursos que tornariam sua força de trabalho rentável. Por esse motivo, apesar de a ―subclasse‖ ser uma categoria de agentes sociais oprimidos economicamente, eles não são consistentemente explorados. Isso porque esse grupo não se destaca por sua produtividade, sendo assim uma classe menos importante para os capitalistas. Essa é uma grande diferença em relação aos batalhadores, que se mostram uma classe bastante útil ao capitalismo, dado que uma de suas principais características são as longas jornadas de trabalho, o esforço para produzir, e ganhar, mais, bem como sua capacidade crescente de consumo. A ralé desenvolve trabalhos mal remunerados e, embora interesse ao sistema pagar pouco a esses indivíduos, eles são pouco rentáveis. Também é comum estarem incluídos nesse estrato beneficiários de programas do governo, que não são produtivos para a sociedade. ―Entendido dessa forma, a underclass [grifo nosso] consiste em seres humanos que são largamente prescindíveis do ponto de vista da lógica do capitalismo [grifo do autor].‖ (WRIGHT, 1997, p. 8).

Esse entendimento é compartilhado por Souza (2009a, p. 23), para quem a ralé é ―incapaz de atender às demandas de um mercado cada vez mais competitivo baseado no uso do conhecimento útil para ele‖. É nesse sentido que a ralé se diferenciaria do lumpemproletariado marxista. Considerado um ―exército de reserva‖ pela sua potencial participação como força de trabalho no mercado produtivo, o lumpemproletariado tinha espaço em um capitalismo em estágio inicial, em que os conhecimentos necessários por parte do trabalhador eram mínimos. Na atualidade, o nível de habilidades exigido dos ―trabalhadores úteis‖ exclui uma larga parcela da população que não está capacitada para exercer serviços mais complexos do que os exigidos no tempo de Marx. Assim, ainda que a força de trabalho da ralé tenha espaço para ser empregada, ela não serve para substituir as capacidades dos trabalhadores produtivos do mercado moderno, não se configurando, assim, como um ―exército de reserva‖, e estando aquém do lugar ocupado pelo lumpemproletariado de um capitalismo inicial (SOUZA, 2009a).

Vale destacar, ainda, que nem mesmo na esfera que costuma ser pensada como disponível a todos da mesma forma, a ralé consegue se realizar plenamente. Diferentemente do que reconhece o senso comum, a vivência do amor romântico acaba por ser improvável devido a determinadas condições objetivas de existência que conformam meninos e meninas desde a infância. O que mostram os autores de trabalho sobre ―a miséria do amor dos pobres‖

[...] atinge em cheio a mais cara de nossas ilusões sobre a vida: a crença de que, apesar de toda a miséria e de toda a vulnerabilidade, as chances de se encontrar o amor não se fecham para o destino dos que vivem em um universo de privação [...] Afinal, se o amor é mesmo a versão moderna secularizada da busca pela salvação, oferecendo o que outrora prometia a religião com o reconhecimento pleno das singularidades de uma pessoa, o que há de mal na pobreza se ela não nos impede de amar? Se os pobres podem amar como todo mundo, a desigualdade em nada constitui empecilho para uma vida realizada. (SILVA; TORRES; BERG, 2009, p. 168).

O trabalho mostra que a realização em outras esferas, como o reconhecimento na escola e no trabalho e o afeto dos pais, é condição para o desenvolvimento das habilidades para o amor romântico. Silva, Torres e Berg (2009, p. 169) enfatizam que ―não cabe definitivamente à sociologia dizer se as pessoas se amam ou não! Mas cabe a ela sem dúvida determinar as condições de possibilidade de qualquer experiência socialmente construída‖. Assim, revelam que a desigualdade constitui um empecilho para as mais diversas formas de realização, inclusive para o amor.

Apesar da clara inspiração em Jessé Souza para a divisão e nomenclatura das classes apresentadas, no relato da pesquisa empírica apresentada neste trabalho, não chamaremos o grupo pesquisado de ―ralé‖. Concordamos com a denominação de Souza, conforme o argumento apresentado pelo autor, mas não nos sentimos confortáveis em nomear dessa mesma maneira. Assim, fazendo uma adaptação, designaremos como ―raladoras‖ as mulheres da pesquisa empírica que se encontram na classe mais baixa considerada, enfatizando o trabalho árduo sem recompensas, mas sem deixar de atentar para o esquecimento e a marginalização que experenciam. Diferentemente das batalhadoras, esse grupo não galgou uma ascensão, não venceu batalhas na aquisição de alguma medida mais significativa de capital econômico e cultural, limitou-se a ralar a cada dia, mais ou menos sem sair do lugar25.

Nesta seção, apresentamos cada classe em um enquadramento específico, como se houvesse uma demarcação entre uma e outra. É importante refletir que as fronteiras entre uma classe são tênues na realidade concreta, embora aqui, devido ao objetivo de possibilitar a análise empírica, seja importante precisamente delimitá-las. Ao destacarmos esses contrastes, por vezes tão fluidos, podemos dar mais atenção a um determinado aspecto da vida de um informante do que a outro, incorrendo em uma interpretação que poderia ser distinta se vista por outro prisma. Nesse sentido, realçamos aqui a análise de uma das histórias de vida apresentadas por Jessé Souza e seus colaboradores em ―A ralé brasileira‖, que serve para uma reflexão dessa ordem.

Entre os ricos relatos empíricos de experiências de pobreza vividas por brasileiros, uma das exposições mais instigantes é a história de uma empregada doméstica, com a descrição de suas dores, sofrimentos e conquistas. Após uma infância e uma adolescência muito pobres, Leninha, ainda na juventude, passou a morar na casa dos patrões de classe média, sentindo-se, primeiramente, parte da família, porém, mais tarde, percebendo que ela não era tratada e nem se comportava como as duas filhas do casal. Nos anos em que viveu com essa família, aprendeu valores que os autores apresentam como de classe média, como ―fazer-se de difícil para conseguir um bom marido‖, e, assim, Leninha se casou e constituiu sua família. Como diarista, revendedora de produtos de beleza e, ainda, juntando e vendendo material para reciclagem, consegue ter em casa tudo o que considera necessário, por meio de inúmeras prestações que não a permitem diminuir o ritmo de trabalho.

25 Se formos considerar suas histórias de vida, elas certamente avaliam que ―saíram do lugar‖. No entanto, julgamos que não conseguiram ascender a uma nova classe, mudando de fato suas circunstâncias sociais, embora talvez propiciem isso a seus filhos.

Na análise de Maria Teresa Carneiro e Emerson Rocha, com supervisão de Jessé Souza, Leninha faz parte da ralé brasileira, uma vez que realiza um trabalho que exige apenas corpo, e não intelecto, o que está em acordo com a falta de capital cultural da mesma, tendo em vista que é analfabeta. Os autores destacam que é apenas por meio do consumo que ela gera uma aparência, para si e para os outros, de viver uma vida que está fadada a não viver.

Leninha não é dotada das disposições, daquelas espécies de ‗dons naturais‘ que determinadas classes de pessoas possuem graças a processos de socialização que são esquecidos, que conferem às pessoas as aptidões cujos efeitos ela deseja: prestígio e reconhecimento. Não tendo essas disposições, Leninha não pode praticar e compreender esse modo de vida que confere às pessoas prestígio e reconhecimento [...] (CARNEIRO; ROCHA, 2009, p. 141).

Queremos salientar, contudo, que diversos traços da descrição da vida de Leninha podem levar a discordar dessa interpretação que a coloca como membro da ralé. Os aprendizados que adquiriu, principalmente no período em que viveu com uma família de classe média e, posteriormente, convivendo diariamente com famílias dessa mesma classe em seu trabalho, possibilitaram a ela adquirir certas disposições, além de recursos econômicos, que poderiam distingui-la da ralé. Se não consegue ter o reconhecimento de suas patroas, Leninha possui a admiração dos vizinhos. ―Moradora de bairro de periferia, sua casa é própria e se destaca das outras bem mais humildes e precárias‖ (p. 127); ―aprendido a admirar e desejar as liberdades e benefícios desse modo de vida burguês‖ (p. 136); ―[...] sabe dos benefícios que tem uma moça burguesa que namora feito ‗moça de família‘ [...]. ‗Aí eu namorei Carlinho serinho, mas serinho mesmo, só assim, ganhava só beijo e mais nada‖ (p. 137); ―O drama de Leninha há muito tempo não é o de ‗pôr o que comer em casa‘, mas o de tentar com todas as forças imitar o ‗truque‘ das classes médias‖ (p. 141). A passagem, no entanto, que parece melhor demonstrar a ambiguidade da classificação de Leninha se refere à descrição da festa de 15 anos que proporcionou à sua filha. Ela elenca alguns dos itens comprados/contratados para a festa:

...dez garçom; quatro saco de batata, quinze caixa de Skol; geente, o tal dos, é como? Cogumelo? Gente aquilo é muito caro demais; só no cartão foi novecentos reais de compra; o tal do medalhão, eu não posso nem ver. Eu fiquei louca. A tal de batata coom... sabe como? O salgado foi servido com foguinho embaixo do salgado. Foi muito chique, eu chorei muito. (CARNEIRO; ROCHA, 2009, p. 140).

Se, por um lado, ela não demonstra intimidade com esses itens e sua experiência faz considerá-los ―chiques‖, por outro, ela fez questão de ter tudo o que descreve na festa de sua filha para se distinguir. Ainda nesse sentido, em um dos trechos mais elucidativos do relato,

Leninha conta sobre sua encenação durante a celebração. Enquanto o presente do pai, seu marido, foi um computador – comprado e pago por ela, mas presenteado pelo pai para não ―pegar mal‖ –, o seu foi uma homenagem para a filha, escrita com a ajuda de uma de suas patroas. No momento de ler o que havia sido preparado, ela simulou um choro compulsivo, que não a permitiu dar continuidade à homenagem. Por isso, precisou contar com a ajuda da patroa, que já estava a seu lado a apoiando. Assim, Leninha pôde esconder de todos aqueles presentes, que já não o soubessem, o fato de ser analfabeta. ―Eu me saí bem. Eu me saí muito bem‖ (Ibid., p. 140). Ao mesmo tempo em que o fato demonstra a preocupação com o reconhecimento social, um outro fator fundamental volta à cena: o analfabetismo de Leninha, característica que a exclui do sistema produtivo moderno, em que a formação escolar aparece como indispensável para as chances de progredir, conquistar reconhecimento, e deixar de ser só ―corpo‖.

Fizemos esse adendo exatamente para demonstrar a complexidade de uma análise desse tipo, visto o borramento dos limites quando o assunto é classe social. Esse é um dos desafios que enfrentaremos nesta pesquisa, buscando, todavia, sermos fiéis ao que foi exposto nesta seção para levar a cabo a classificação social das entrevistadas, ponto de partida para o estudo do consumo de mídia e telenovela por mulheres de distintas classes sociais.

Por fim, para concluir este capítulo, destacamos alguns aspectos que julgamos importantes para pensar, conjuntamente, as categorias de classe social e gênero, visto que entendemos que as experiências de classe, que objetivamos captar, são obtusamente atravessadas pelas vivências de gênero.