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2. INSTITUIÇÕES E LEGISLAÇÃO DE ÁGUAS NO BRASIL

2.3. Aspectos institucionais e legais da água doce no Brasil

2.4.4. Cobrança pelo uso da água

O direito brasileiro já previa, mesmo que indiretamente16, a possibilidade de cobrança pelo uso dos recursos hídricos, o que de fato nunca ocorreu. A cobrança foi adotada, diretamente, como um instrumento de gestão dos recursos hídricos pela Lei de Águas de 1997, sendo resultado de discussões internacionais e nacionais durante muitos anos. Como veremos ao longo deste trabalho, trata-se de um instrumento potencialmente gerador de conflitos.

A cobrança é um instrumento, que a partir da Economia Ambiental Neoclássica, busca a internalização, por parte do agente poluidor, das externalidades negativas por ele provocadas. Permite gerar receitas para amenizar aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos e os mercados de água são os instrumentos econômicos mais utilizados nas experiências internacionais17 de gestão de recursos hídricos. Tais experiências se baseiam na crença

16 O Código Civil de 1916 previa a possibilidade de remuneração pela utilização de bens públicos. 17 Nos estados do oeste dos Estados Unidos, como Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada e Novo México, o direito de propriedade da água possui as mesmas características dos direitos de propriedade sobre a terra, podendo ser vendido, transferido ou alugado temporariamente. O mercado de direito de águas é administrado pelos governos estaduais por meio de tribunais especiais de água (Waters Courts), encarregados de reconhecer os direitos sobre o recurso e resolver eventuais conflitos.(MARTINS & FELICIDADE, 2001)

neoclássica de que a escassez de um bem determina automaticamente a elevação de seu preço, estimulando seus consumidores a otimizar seu uso (MARTINS & FELICIDADE, 2001).

O sistema francês, principal arcabouço institucional brasileiro de gestão dos recursos hídricos, adota desde os anos 60 a bacia hidrográfica como unidade administrativa e a cobrança pelo uso da água. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses é denominada redevance, sendo determinada pelo volume de poluição lançado ou pela degradação gerada sobre os corpos d`água. O lançamento de poluentes é livremente permitido e cabe ao poluidor realizar análises de custo/benefício entre poluir pagando taxas ou não poluir (IBIDEM).

Os autores acima mencionados criticam a abordagem neoclássica no que tange aos instrumentos econômicos na gestão de recursos hídricos na medida em que ela deixa de apreender “sociedade e natureza” como processos históricos, que ultrapassam a ação isolada dos agentes. Os autores afirmam que:

Os processos ecológicos são componentes do território e interagem com processos econômicos e culturais na determinação das formas sociais de significação e apropriação da natureza (MARTINS & FELICIDADE, 2001: 25).

Assim, significados culturais podem ser o fator determinante sobre o resultado social de uma dada ação, sobrepondo-se a aspectos somente econômicos.

Essas críticas são importantes para que não se priorize apenas a cobrança pelo uso da água, pois ela, por si só não tem o condão mágico de resolver os diferentes problemas envolvidos com a questão. Além disso, corre- se o risco de se criar novas relações de domínio, e por isso, esse instrumento deve ser amplamente discutido nos comitês e na sociedade antes de ser implementado.

Levantadas algumas das discussões que envolvem o tema, então vamos abordar como o instrumento da cobrança foi positivado no Brasil. Os objetivos da cobrança conforme a Lei de Águas, no art. 19, são os seguintes: reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;

incentivar a racionalização do uso da água e obter recursos financeiros para os programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.

Estão sujeitos à cobrança pelo uso da água todos os usuários sujeitos à outorga (relacionados no item anterior). No tocante aos critérios da cobrança, a lei estabeleceu que, na fixação dos valores a serem cobrados, devem ser observados, entre outros, nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação, e nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do efluente.

A competência administrativa para efetuar a cobrança é da Agência de Água, mediante delegação do outorgante (União ou os Estados, detentores do domínio do recurso). No plano federal, cabe à ANA implementar a cobrança, em articulação com os Comitês de Bacia Hidrográfica, assim como arrecadar, distribuir e aplicar receitas auferidas por intermédio da cobrança quanto ao uso dos recursos hídricos de domínio da União. Quanto aos valores da cobrança, deverão ser propostos pela Agência ao Comitê de Bacia Hidrográfica.

A natureza jurídica da cobrança é preço público, pois se trata de fonte de exploração de bem de domínio público. Sua natureza é negocial, pois cabe ao detentor do domínio estabelecer o respectivo valor. Não se trata de um imposto18, nem de uma taxa19, nem de uma contribuição de melhoria20. Trata- se de preço público, ou seja, de uma receita cobrada pelo Estado tendo em vista principalmente o interesse dos particulares na atividade desempenhada pelo governo, mas atendendo, também, secundariamente, à existência de um interesse público geral e coletivo nessa atividade (GRANZIERA, 2001).

A aplicação do produto da cobrança deverá ser feita prioritariamente na bacia hidrográfica em que foi gerado (art. 22, Lei 9433/97). Portanto, a lei não excluiu a hipótese de aplicação fora da bacia em que foram gerados os recursos. Muitos são contra a aplicação dos recursos em outras bacias, como o

18 Impostos são as receitas que o Estado cobra, tendo em vista exclusivamente o interesse público da atividade, mas sem levar em conta as vantagens ou ausência destas que possam decorrer dessa atividade para os particulares que contribuíram (GRANZIERA, 2001).

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Taxas são as receitas cobradas pelo Estado tendo em vista o interesse público, mas considerando que dessa atividade decorre diretamente para o particular um interesse individual específico.

20 Contribuições são as receitas cobradas pelo Estado tendo em vista o interesse público da atividade, mas considerando as vantagens que decorrem desta atividade, não diretamente para determinado indivíduo, mas para determinada classe ou categoria de particulares (GRANZIERA, 2001).

representante da Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina declarou em entrevista concedida durante esta pesquisa (essa questão será retomada adiante).

Mas não caiu, contudo, no campo da discricionariedade a aplicação dos valores arrecadados com a cobrança pelo uso dos recursos hídricos (MACHADO, 2003). Conforme esse autor, se houver necessidade do emprego dos recursos financeiros na bacia hidrográfica em que os valores foram gerados, o termo “prioridade” determina que é nessa bacia, e não noutra, que os valores devem ser revertidos. Outro argumento é que os recursos financeiros estão vinculados aos Planos de Recursos Hídricos. Nesse sentido:

Nenhuma autoridade, seja de que nível for, pode contrariar as diretrizes explicitadas tanto no Plano de Recursos Hídricos como no plano de aplicação (art. 44, XI, c, da lei comentada). Assim, para aplicarem os valores referidos fora da bacia hidrográfica em que foram gerados é necessária a inclusão dessa anuência prévia nos Planos apontados. Fora daí, resvala-se para a ilegalidade. (MACHADO, 2003: 467).

Esse ponto é um grande objeto de disputa entre diversos atores no campo de recursos hídricos, e o comitê tem um papel estratégico na questão. Por isso, CARDOSO (2003) acredita que provavelmente os comitês estarão mais sujeitos a disputas para dele participar do que ocorre no momento.

O Comitê de Estudos Integrados do Paraíba do Sul (CEIVAP) instituiu desde março de 2003 a cobrança pelo uso da água. Apesar de ainda não ter sido criada a agência de água, na referida bacia havia um consórcio intermunicipal preexistente, o qual assumiu transitoriamente o papel da agência. Desde a implantação da cobrança foi arrecadado um total líquido de R$ 5,875 milhões. Dessa quantia, R$ 669 mil foram arrecadados em Minas, R$ 2,373 milhões em São Paulo e R$ 2.833 milhões no Rio de Janeiro (O TEMPO, 2004). Também no Ceará, na bacia do Rio Curu, foi iniciada a cobrança pelo uso dos recursos hídricos dos usuários industriais e da empresa estadual de saneamento (BARTH, 2002).

Na bacia do Rio Doce não há previsão de quando será instituída a cobrança, pois não há a agência de água e nem foi nomeada pela ANA nenhuma entidade cumprindo temporariamente o papel desta. Segundo alguns membros do CBH-Doce, a ANA vai criar um escritório técnico para ir fazendo alguns levantamentos de ordem técnica até a criação da agência de água. Os

comitês estaduais também ainda não instituíram a cobrança, pois também não possuem a agência de água, sendo que o IGAM apresenta dificuldades em saber como criar essa nova figura institucional.

A cobrança no setor hidroenergético segue outro regime legal, e é feita sobre 0,75% do valor comercial da energia gerada. Tal receita é realizada somente em bacias com empreendimentos hidroelétricos cuja potência instalada for igual ou superior a 30 mW, o que exclui do processo boa parte do território brasileiro. Mas, como afirma GARRIDO (2003), trata-se de um expressivo número para o setor, da ordem de R$ 75 milhões de reais por ano, dos quais R$ 69 milhões serão aplicados nas bacias geradoras dessa arrecadação, e a diferença de R$ 6 milhões será destinada ao custeio da ANA.

Além da cobrança pela utilização da água, a ANA passa a perceber uma expressiva parte do montante destinado ao Ministério do Meio Ambiente, a título de compensação financeira por áreas inundadas em decorrência da construção de reservatórios artificiais, totalizando algo ao redor de R$ 20 milhões de reais por ano (GARRIDO, 2003).