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5. GOVERNANÇA DE RECURSOS COMUNS E ESCASSOS:

6.3. Elementos indutores da participação

Segundo CARDOSO (2003), as águas estão se constituindo em um campo com uma institucionalidade própria, com um grupo de atores dominantes compartilhando valores comuns – a essencialidade da água, a gestão descentralizada e participativa - e a bacia hidrográfica como unidade de gestão. Vários agentes estavam se aproximando desse campo para participar do processo de criação de um projeto de “democracia das águas”: “alguns porque eram obrigados por força de lei, outros por possuírem interesses e valores comuns; havia ainda aqueles que viam ali a possibilidade de uma projeção política.“ (CARDOSO, 2003: 7). Segundo a autora, essas razões às vezes se misturam em um mesmo grupo ou agente. Os CBH´s são micro-

campos de recursos hídricos, uma vez que recriam, no âmbito local, muitas das disputas e valores encontrados no âmbito nacional (IBIDEM, 2003).

Durante as entrevistas realizadas, todas essas razões acima foram apontadas, sendo que um dos entrevistados afirmou: Água virou moda e atrai gente de todo tipo, gente que quer participar, gente que só quer aparecer e atrai gente que está achando que aquilo é uma oportunidade muito grande de ganhar dinheiro (Representante do CMCN).

A representante do MPRD afirmou que o objetivo desta instituição, mesmo antes de ser uma ONG, era unir as pessoas e instituições que estejam trabalhando com meio ambiente dentro da bacia do Rio Doce em Minas Gerais e Espírito Santo, seja de iniciativa privada, governamental e não- governamental. Declarou ainda que o movimento começou com o desejo de criar o comitê e cresceu com esse desejo, antes mesmo de haver a legislação que determina a criação dos comitês. O movimento atuou, portanto, segundo a entrevistada, na busca de parceiros com interesses e valores comuns.

Também o representante da Associação dos Pescadores Amadores de Manhuaçu e Região (APAM) afirmou que participou dado que a finalidade da ONG é atuar na área do meio ambiente, principalmente porque na sub-bacia do Rio Manhuaçu, a contaminação por agrotóxicos é preocupante: Ingressamos e participamos com o intuito de divulgar e promover a troca de idéias para saber o que vai acontecer na bacia.

O representante da UFES afirmou que a entidade está participando para poder contribuir com os conhecimentos e tecnologias dos seus profissionais:

A nova política de recursos hídricos requer uma série de aplicação de tecnologia, e a UFES, na área de recursos hídricos, tem realizado uma série de pesquisas, estudos. Fizemos alguns trabalhos para a ANA, para a SRH, envolvendo essa parte de comitê, tanto a parte tecnológica, quanto a parte de participação popular. Então a UFES se inscreveu para tentar contribuir com essa parte de implementação. Um dos grandes problemas dos comitês é que muitos vão para as reuniões desconhecendo o que é um comitê, para quê, e quanto mais pessoas tiverem conhecimento daquela situação e puder participar colaborando para que as decisões sejam mais adequadas, acho que é importante.

Já a representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Colatina- ES afirmou:

Esta entidade por ter na base a maioria agricultores familiares, e que usam a irrigação e usam a água para poder produzir, a gente se viu na responsabilidade de estar participando até como uma forma de estar influenciando em algumas ações, e a gente até desenvolve algumas ações na nossa base, na questão da água, de estar mantendo a água que é este produto precioso. Então nos vimos na responsabilidade de participar do comitê, colaborando nas discussões, para estar representando os agricultores.

Os usuários demonstraram muita preocupação em estarem inseridos nesse campo dos recursos hídricos em razão da função atribuída ao comitê pela Lei 9433/97, art. 38, VI, de estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados. Segundo o representante da Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (CFLCL) - membro do CBH-Doce, representante do segmento de usuários - setor de hidroeletricidade, com a possibilidade da cobrança67, a CFLCL participou do processo de implementação do comitê e lutou por uma vaga com o intuito de fiscalizar o retorno dos recursos arrecadados para a bacia; a segunda razão é que a matéria-prima que a empresa utiliza é a água, e nota-se a diminuição do volume. Outra razão é a seguinte:

A empresa gasta muito dinheiro com reflorestamento e recuperação de nascentes, e com a instituição da cobrança, que segundo a lei deve retornar prioritariamente para a bacia, haverá a diminuição dos custos da empresa com tais medidas compensatórias e/ou mitigadoras (Representante da empresa CFLCL).

Ainda segundo o representante da CFLCL, o Comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP), que já instituiu a cobrança, viu somente 10% dos valores arrecadados retornando para a bacia, ou seja, apenas R$ 400 000,00 (quatrocentos mil reais) de 4 (quatro) milhões. Isso não está certo, na opinião do entrevistado, e há discussões no sentido de que o comitê deveria suspender a cobrança até que alguma medida seja tomada, mas, no entanto, segundo parecer da Procuradoria Geral da ANA, o CEIVAP não tem competência legal para suspender a cobrança68 (www.ana.gov.br, em 11/01/2004).

Outra representante do segmento dos usuários, a Cooperativa de Crédito dos Produtores de Café (Coopercafé), de Caratinga-MG, que ocupa a

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A cobrança pelo volume d´água usada pelas hidrelétricas já vem sendo feito, pois não depende necessariamente da formação do comitê, pois se trata de outro regime legal.

68 O CEIVAP também queria suspender a cobrança devido ao fato de o Governo Federal não ter criado, após um ano de mobilização, a agência de água. Contudo, o governo parece ter se manifestado no sentido de que seria criada esta agência nos próximos dias (O TEMPO, 2004).

vice-presidência do comitê, também demonstra uma certa inquietude com a questão da cobrança:

Eu tinha a preocupação também de que este processo crie mais impostos, mais taxas ou qualquer coisa que venha sobre a agricultura, e esta tem que estar atenta no processo todo, e se a gente analisar bem, uma indústria, se ela tem um encargo a mais, ela repassa esse encargo para o preço do produto dela, a hidrelétrica repassa para a conta, mas na agricultura nem sempre isso acontece, porque muitas vezes o agricultor vende o produto dele por um preço menor do que o preço de custo.

A entrevistada afirma ser favorável à cobrança, mas enfatiza que a agricultura deve ser “vista com respeito” e de forma diferenciada para que a “taxa” não piore as condições de produção.

Principalmente na nossa região, em que tudo é feito manualmente, nós não temos como trabalhar com máquina, pois quando você pega uma região de topografia plana, topografia excelente, em que se pode trabalhar com máquina, o custo é muito menor, então nós temos que trabalhar com homens, então se por um lado é bom porque se cria empregos, essa região aqui de café você não vê miséria no campo, o café é uma cultura que distribui muito o dinheiro, você vai a outras regiões há muita miséria no campo. Mas trabalhar com muita gente é caro e complicado, então nós temos que estar lá defendendo o agricultor. (Representante da COOPERCAFÉ)

Além dessa preocupação, o representante da Coopercafé também salienta a questão do passivo ambiental gerado pela agricultura na região, principalmente pela cafeicultura, e, por isso, a cooperativa tinha “a obrigação de participar do comitê”.

Já o representante da comunidade indígena Krenak afirmou que havia um interesse por parte da tribo muito antes de aparecerem as manifestações em prol do rio Doce, devido aos problemas de poluição e de assoreamento.

Então, isso fez com que participássemos quando o pessoal nos convidou, como já estávamos preocupados antes, porque se o Rio Doce morrer os índios também morrem, a sobrevivência nossa é o Rio Doce, nós costumamos falar o seguinte: a terra é nossa mãe e o Rio Doce o nosso pai. Porque é o Rio Doce que nos dá comida, não só para o povo indígena, mas para o povo da região. Ainda se faz muita pescaria, mas hoje em dia está difícil é o peixe. (Representante da comunidade Krenak)

De acordo com as entrevistas, podemos constatar que a participação no comitê, então, se deve à busca pelas soluções dos inúmeros problemas existentes na bacia que afetam a qualidade de vida e as atividades de diferentes classes de usuários, confirmando o que Beck expôs sobre a

sociedade se tornar reflexiva, constituindo-se um problema para si própria, e os questionamentos sobre o progresso, que levam à busca por organização.

Mais especificamente no que tange aos usuários, o que os levou a participar foi mesmo a introdução da lei, conferindo ao comitê competências para tomar decisões que afetarão diretamente os múltiplos setores de usuários, como por exemplo, a cobrança pelo uso da água, o zoneamento, entre outros instrumentos, que poderão se constituir em ações benéficas ou em prejuízos individuais para os usuários sobre o prisma econômico. Nesse sentido, OLSON (1999) contribui ao advertir que não se pode esperar que as organizações econômicas vão agir voluntaristicamente para conseguir um dado benefício público se não ocorrerem incentivos positivos ou negativos individuais. Mas, não podemos deixar de considerar posições como a de OSTROM (1990 e 1998) de que as pessoas tendem a cooperar se percebem que os outros farão o mesmo, e também diante da visibilidade da ação (de certa forma, Olson também acredita nisso, pois afirma que nos grupos pequenos é possível mensurar o quanto a ação vai contribuir para o benefício público).