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5. GOVERNANÇA DE RECURSOS COMUNS E ESCASSOS:

6.4. A não participação como uma estratégia

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) integra um dos principais conflitos relacionados ao uso das águas no Brasil: a construção de usinas hidrelétricas. Desde a década de 70, quando se consolidou o modelo energético baseado em grandes hidrelétricas, onde áreas enormes eram inundadas, “as populações em torno dessas obras foram vítimas das mais variadas violações de seus direitos” (CARDOSO: 2003, 60).

Trata-se de um movimento bastante organizado, articulado, que se posiciona diante dos conflitos conforme duas vertentes:

A nossa posição tem duas vertentes: a primeira, resistir a toda construção de barragens porque nós temos dados de que não é necessário mais construir barragens. No Brasil, 93% de toda energia gerada vem da água, então, todo mundo quer que o Brasil cresça, mas como é que você quer que o Brasil cresça com base em uma matriz energética apenas, cuja matéria-prima está se escasseando. (Assessor do MAB, Alto Rio Doce)

O assessor do MAB argumenta que há sobra de energia e que hoje o grande perigo não é de um apagão, mas de sobrecarga por excesso de energia. Segundo ele, a construção de barragens se dá, hoje, apenas em função de interesses corporativos e não é por uma necessidade da população; alerta que 1 megawatt custa aproximadamente 30,00 dólares, e tem-se garantia de vendê-lo a 120,00 dólares.

A segunda vertente do MAB é a da luta pelos direitos do atingido:

Direito no sentido mais abrangente, não é só assim, ele tem a terra, ele vai ter a terra, ele tem a casa, ele vai ter a casa, isso é uma aversão. Vamos tentar o seguinte: já que ele vai ter que abrir mão do lugar, do espaço dele, que a vida dele possa efetivamente melhorar. (Assessor do MAB Alto Rio Doce)

Dentro do campo de recursos hídricos, o MAB encontra-se à margem, seja por sua postura de oposição à política pública (sendo um dos marcos de construção do movimento), seja por concentrar sua atuação na discussão do modelo energético, o que permite a criação de um ambiente favorável ao debate e à participação. (CARDOSO: 2003). Ao contrário do MAB, o setor energético tem estado, historicamente, em posição decisória nas políticas concernentes à água no Brasil.

O MAB Alto Rio Doce seguiu essa tendência do movimento em nível nacional e não participou do processo de instalação do comitê, apesar de ter comparecido a duas reuniões iniciais. O assessor do movimento afirmou que após uma discussão interna no MAB, concluiu-se: A participação poderia justificar um monte de decisões que o comitê poderia tomar depois, e naquele momento, faltavam condições de participar e acompanhar pra valer.

Essa justificativa usada pelo assessor do MAB parece ser uma atitude que visa prevenir aquilo que ABERS (apud CARDOSO 2003), denomina de problemas de cooptação, onde programas ou instâncias participativas, em lugar de serem espaços de controle cidadão sobre o governo, tornam-se um meio de dar legitimidade pública e apoio popular na formulação de políticas públicas, desmobilizando e desestabilizando lideranças comunitárias. CARDOSO (2003) diz que há um risco potencial de que isso aconteça, nos Comitês, principalmente quando são criados com um mandato político, seguindo ritmos que não são aqueles que a sociedade necessita para se organizar a fim de poder participar dessa instância colegiada. “ Juntar um grupo

de entidades, com ou sem legitimidade na comunidade, criar um Comitê para realizar determinadas ações e dizer que o processo foi participativo, é uma estratégia bastante fácil de ser realizada."(CARDOSO, 2003: 81)

Diante desse receio de verem decisões serem tomadas sem o aval do movimento e diante da pouca representatividade da sociedade civil organizada, o MAB Alto Rio Doce decidiu que participaria em outra oportunidade, mas apenas informalmente. Na visão do movimento, o poder de interferência da sociedade civil organizada vai ser muito pequeno no comitê69.

A análise feita pelo MAB levou em consideração aqueles elementos que OSTROM (1990) afirma serem cruciais para a cooperação: os benefícios esperados, o tamanho do grupo, sua composição e a quantidade e o tipo de conflitos. Assim, analisando que a composição majoritária do comitê é de usuários e poder público, a entidade concluiu que a desigualdade numérica e econômica levará a decisões que, provavelmente, irão ser negativas para o segmento que representa. Então, para evitar legitimar tais decisões, o movimento preferiu não participar.

O CMCN também optou em não participar, incisivamente, e não concorreu a uma vaga no comitê.

Eu sempre disse ao Catatau, na época, e ao Sérgio Maciel aqui da bacia do Rio Piranga, que estava envolvido com a história do Rio Doce, que o CMCN está muito mais interessado em ajudar o comitê como assessores técnicos do que propriamente estar participando do comitê como membros, porque se nós entrarmos como membros pode ser que a gente tenha nosso comportamento alterado, e vamos começar a querer dar palpites muito técnicos, e o comitê é uma associação, e se eu começar a querer dar lições técnicas lá, vai parecer que eu estou querendo tomar conta do comitê. (Representante do CMCN)

Nas palavras do representante do CMCN, o comitê vai precisar de pessoas que sejam capazes de trabalhar sem remuneração e tenham disponibilidade de tempo; o CMCN tem essas características apontadas, mas não procurou integrar o comitê por ser uma ONG de finalidade técnica.

Se pensarmos nos argumentos de BECK (1997), DOUGLAS (1984) e MELUCCI (2001), mesmo a CMCN, que pretende ser técnica, não é neutra, e as escolhas feitas pelos técnicos podem agradar uma parte do comitê, assim como desagradar outra, dependendo dos interesses, crenças e valores dos

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representantes. A técnica também pode ser questionada, e os profissionais deveriam estar preparados para encontrar várias situações adversas na prática como desmotivação, conflitos de interesses e de poder, hábitos arraigados (GUIVANT, 2002). No caso específico do CMCN, caso decidisse participar e propugnar por uma vaga no comitê, deveria entrar num processo político que talvez não interesse à instituição, assim como se conseguisse uma vaga, também teria que estar num processo político constante de negociação para a tomada de decisões. A fala do representante do CMCN chama a atenção por dois aspectos: o temor dos técnicos em ter seu “comportamento alterado” – o que poderia implicar em uma perda de identidade? – e o fato de “dar lições técnicas” ser interpretado como atitude autoritária. Assim, nota-se que o comportamento “técnico” ainda não dispõe de flexibilidade suficiente para suportar os questionamentos e as negociações que são próprias de uma arena política.