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3.1 A HISTÓRIA DAS DROGAS 52

3.1.5 A coca 64

A folha de coca (Erythroxylum coca), um símbolo da divindade para os incas190, ainda hoje é costumeiramente mastigada na América do Sul.

Seu cultivo continua praticamente um monopólio de três países andinos: Bolívia, Peru e Colômbia. Há aproximadamente cinco mil anos a coca está intimamente ligada à identidade                                                                                                                

184

ROWE, Thomas C. Op. cit., p. 269.

185

Ibid., p. 269.

186

LABROUSSE, Alain. Op. cit., p. 32-33.

187

ROWE, Thomas C. Op. cit., p. 291.

188

Ibid., p. 291.

189

GLOBAL COMMISSION ON DRUG POLICY. Op. cit.. p. 04.

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dos nativos dos planaltos andinos, que a utilizam para fins medicinais, culturais, ritualísticos191 e como anoréxico.

Os colonizadores espanhóis, depois de terem qualificado a folha sagrada dos incas como "talismã do diabo", encorajaram sua produção ao perceberem seu efeito estimulante para o trabalho dos camponeses e dos mineiros nos territórios em que viriam a ser o Peru e a Bolívia. Já na Colômbia, onde, diferente destes, os índios representam hoje menos de três por cento da população, as culturas de coca foram, até os anos 1970, reservadas apenas para consumo próprio192.

A cocaína, um alcaloide193, foi isolada a partir das folhas de coca por Albert Niemann, em 1860. O cientista deu nome à substância e descreveu o processo de isolamento em seu trabalho de pós-graduação em Química na Universidade de Göttingen, Alemanha. Intitulada

Über eine neue organische Base in den Cocablättern, lhe rendeu seu philosophiae doctor.

Dois anos depois, a companhia alemã Merck, sediada na cidade de Darmstadt, pioneira na produção de morfina, começou a produzir pequenas quantidades de cocaína, destinadas à venda, principalmente para pesquisadores194. Também comercializou comprimidos, contendo cocaína, os quais teriam o condão de "conferir uma 'qualidade ressonante' à voz dos cantores"195.

A partir de então, seu uso espalhou-se gradualmente. Em 1963, o farmacêutico corso Angelo Mariani desenvolveu e patenteou uma infusão alcoólica de folhas de coca, que potencializava seu efeito. O Vinho Mariani alcançou projeção internacional a partir de campanha publicitária que ressaltava seus efeitos benéficos para saúde e rejuvenescimento. Até mesmo o Papa Leão XIII apreciava a bebida, sendo, inclusive, uma das personalidades vinculadas à propaganda desse produto196.

                                                                                                                191

LABROUSSE, Alain. Op. cit., p. 25.

192

Ibid., p. 25.

193

Segundo o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, disponível em http://michaelis.uol.com.br, alcaloide é uma "substância orgânica natural nitrogenada, capaz de se unir a ácidos e de formar com eles combinações definidas, que constituem verdadeiros sais".

194

COURTWRIGHT, David T. Op. cit., p. 876.

195

IVERSEN, Leslie L. Op. cit., p. 20.

196

"[...] um farmacêutico de Córsega, Angelo Mariani, patenteou uma preparação de extrato de coca e vinho de Bordeaux. Promovido por uma campanha voltada à juventude e à saúde, com endosso de celebridades, o vinho Mariani alcançou sucesso internacional como uma bebida tônica. Em 1884, a empresa tinha diversificado a fabricação de outros produtos de coca, incluindo licores, pastilhas e chá Mariani, uma infusão de coca que ajudou Ulysses S. Grant a completar suas memórias antes de sucumbir ao câncer. O sucesso dos produtos da Mariani inspirou imitações, dentre elas a Coca-Cola e incentivou a investigação do potencial terapêutico da planta" (COURTWRIGHT, David T. Op. cit., p. 876. Traduzido do inglês para o português).

Inspirada no sucesso do Vinho Mariani, surge em 1885 a Coca-Cola, que continha em sua fórmula álcool, extrato de coca e cafeína. Nos dias atuais, apenas a cafeína continua presente na bebida197.

Com a descoberta da cocaína na segunda metade do século XIX, os grandes laboratórios farmacêuticos alemães e holandeses passaram a importar significativas quantidades de folhas de coca provenientes das plantações existentes no Peru e na Bolívia198. Apenas em 1890 alguns aspectos negativos da cocaína começaram a ser investigados199 - seu potencial de vício logo ficou evidente200. O uso abusivo de cocaína passou a ser um problema relacionado às grandes cidades: dos punguistas em Montreal às prostitutas do Montmartre, em Paris, passando pelas atrizes do West End, em Londres, e os universitários de Berlin, que se desfaziam de tudo para satisfazer o vício201.

Além do vício que lhe é inerente, hoje se sabe que referida droga pode produzir grave reação paranoica, indistinguível de um estado psicótico resultante de um transtorno mental funcional, podendo demorar semanas (após a descontinuação do uso) até o retorno ao estado normal202.

No entanto, a cocaína já havia se tornado popular no final do século XIX, despertando o interesse de vários pesquisadores, inclusive Sigmund Freud, que a partir de observações em terceiros e da própria experiência com a droga, professou otimismo sobre o seu potencial para combater a debilidade nervosa, indigestão, caquexia (desnutrição), a dependência da morfina, o alcoolismo, a asma crônica e a impotência203.

                                                                                                                197

Sobre a origem da Coca-Cola e suas transformações ao longo do tempo, esclarece Antonio Escohotado: "Una de las más populares entre las primeras — que acababa de sustituir la cocaína por cafeína en su composición — había sido la Coca-Cola, de la cual cabe decir unas palabras. El origen del producto fue un boticario de Georgia, J. S. Pemberton, que vendía en su tienda, a título de medicamento, un licor básicamente pensado para el dolor de cabeza y fines tónicos. Registró en 1885 el producto, amparándose bajo la marca French Wine of Coca, Ideal Tonic, con la evidente intención de aprovechar el surco abierto por el Vino Coca Mariani, aunque con la inexactitud de indicar en el nombre coca y no cocaína. Un año más tarde — cuando empezaban a alzarse voces pidiendo la Ley Seca — realizó modificaciones decisivas, suprimiendo el alcohol, añadiendo extracto de nuez de cola (que contiene cafeína) y esencias de agrios para realzar el gusto. Teniendo ya una amplia clientela local, comenzó́ a anunciar el producto como «la bebida de los intelectuales y los abstemios», y en 1885 sustituyó el agua ordinaria por agua gasificada. Acababa de consolidarse la Coca-Cola propiamente dicha, cuyo éxito permitió́ a su inventor vender la patente en 1891 a otro boticario, A. Grigs Candler, fundador de la Coca-Cola Company" (ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. 5. ed. Barcelona: Espasa, 2002. p. 458-459).

198

LABROUSSE, Alain. Op. cit., p. 25.

199

ROWE, Thomas C. Op. cit. p. 342.

200

IVERSEN, Leslie L. Op. cit., p. 20.

201

COURTWRIGHT, David T. Op. cit., p. 933.

202

ROWE, Thomas C. Op. cit., p. 342.

203

"Sigmund Freud, no aclamado artigo intitulado 'Über Coca', de 1884, fez uma corajosa revisão da literatura existente sobre a droga. Relatou a utilização perene de coca como adjuvante para o trabalho indígena e os resultados promissores a partir de sua própria experiência e da experiência de terceiros, demonstrando otimismo sobre seu potencial para compensar a debilidade nervosa, indigestão, caquexia (desperdício), dependência da

No início do século XX, a Holanda promoveu o cultivo da coca em Java, colônia que, em alguns anos, se tornaria o maior produtor mundial. Na mesma época, o Japão passou a explorar a cultura da coca em Taiwan. Dessa forma, as produções asiáticas permitiram à indústria farmacêutica alemã, holandesa e japonesa responder, entre os anos de 1910 e 1940, à primeira grande demanda por consumo de cocaína verificada naquela época no mundo inteiro204.

Com a proscrição mundial da cocaína, alcançada a partir de três convenções internacionais realizadas entre 1946 a 1961, Colômbia e Bolívia passaram à condição de protagonistas do comércio ilícito global dessa substância, desde a década de 1970. Europa Ocidental e Estados Unidos da América se tornam os principais mercados consumidores.

Nos anos de 1980 surge o crack, mistura da pasta-base da cocaína com bicarbonato de sódio. Mais barato e potente que esta, referido entorpecente rapidamente se popularizou no extrato social mais pobre dos Estados Unidos da América. Nesse sentido:

A cocaína nunca vendera bem no gueto: era cara demais. Isso antes da invenção do crack. O novo produto se mostrou ideal para usuários de baixa renda. Por demandar uma porção tão ínfima de cocaína pura, uma dose de crack custava uns poucos dólares. Seu intenso 'barato' tomava o cérebro em apenas alguns segundos - e passava rápido, levando o usuário a querer mais. Desde o início, o crack estava fadado a um enorme sucesso.205

Atualmente, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas, há dezessete milhões de usuários de cocaína e seus derivados no mundo206.