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3.2 A GUERRA COMO PRINCÍPIO, MEIO E FIM 70

3.2.4 Fundamento jurídico da guerra contra as drogas 86

Desde o início, a criminalização do uso e do comércio de substâncias psicoativas consideradas nocivas ao indivíduo e à sociedade sempre foi o fundamento jurídico da guerra contra as drogas. Além de fundamento, a criminalização também se fez de método, sendo a principal frente de combate às drogas. Além de método, a criminalização passou a ser resultado - resposta ao anseio moral que permeia o tema das drogas. Ou seja, a criminalização, a partir do argumento ético, é o cerne da guerra contra as drogas, pelo que esta seria esvaziada sem aquela.

E o modelo criminal proibicionista adotado na guerra contras drogas encontra fundamento no que Gunther Jakobs intitulou de "direito penal do inimigo", segundo o qual o Estado pode, em situações que exponham a coletividade a grave perigo, negar a determinada categoria de criminosos (os inimigos) as garantias inerentes ao que chama de "direito penal do cidadão", cabendo-lhes apenas a coação estatal. Eis o raciocínio em que repousa o direito penal do inimigo:

                                                                                                                283

JELSMA, Martin; BENNIS, Phyllis; SOGGE, David; AGUIRRE, Mariano; MIAN, Zia; GEORGE, Susan; MARQUSEE, Mike; BELLO, Walden. Op. cit., p. 7797, 8219.

Denomina-se «Direito» o vínculo entre pessoas que são titulares de direitos e deveres, ao passo que a relação com um inimigo não se determina pelo Direito, mas pela coação. No entanto, todo Direito se encontra vinculado à autorização para empregar coação, e a coação mais intensa é a do Direito Penal. Em consequência, poder-se-ia argumentar que qualquer pena, ou, inclusive, qualquer legítima defesa se dirige contra um inimigo. Tal argumentação em absoluto é nova, mas conta com destacados precursores filosóficos.

São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem o delito no sentido de que o delinquente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Em correspondência com isso, afirma Rosseau que qualquer «malfeitor» que ataque o «direito social» deixa de ser «membro» do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. A consequência diz assim: «ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão».284

Segundo essa ideia, o direito penal garantista (dirigido ao cidadão) seria o direito de todos, enquanto que o direito penal do inimigo aplicar-se-ia aos traidores do ordenamento jurídico, capazes dos atos mais nocivos à sociedade: o inimigo.

Portanto, o direito penal reconheceria dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento deferido ao cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, quem se combate por sua periculosidade285. O direito penal do cidadão manteria a vigência da norma, o direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o direito das medidas de segurança) combateria os perigos286.

Ainda segundo a ideia de Gunther Jakobs, contra o inimigo deve-se usar a violência, monopólio do Estado, a qual estaria submetido antes mesmo de praticar o ato que o fez considerado hostil287.

O combate à criminalidade, quando o criminoso é o inimigo, não se faria pelos meios convencionais do direito, senão pela "guerra" - justificada pelo direito penal do inimigo: "frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra"288.

Foi exatamente o que aconteceu com a questão das drogas, declarada por Richard Nixon como o inimigo número um dos Estados Unidos da América, o que justificaria o uso de                                                                                                                

284

JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. 6. ed. Edição eletrônica para Kindle. p. 257.

285 Ibid., p. 411. 286 Ibid., p. 322. 287 Ibid., p. 508. 288 Ibid., p. 317.

"uma nova ofensiva total"289, em nível global, com o apoio das Nações Unidas e seus Estados

membros.

O proibicionismo criminalizador voltado contra as drogas tornadas ilícitas, expressando-se na política 'guerra às drogas', explicita, de forma eloquente, a partir dessa própria denominação, os parâmetros bélicos que orientam a atual e globalizada expansão do poder punitivo, exarcerbando os danos, as dores e os enganos provocados pela intervenção do sistema penal sobre seus selecionados 'inimigos'".290

Rechaçou-se qualquer possibilidade de resolução do problema por meio de outros métodos. Nem mesmo o direito penal garantista foi reconhecido como hábil a mitigar o problema das drogas. A violência, monopólio do Estado, teria de ser invocada contra o inimigo. "Quem ganha a guerra determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a esta determinação"291.

A eliminação do perigo justificaria os atos de guerra. A filosofia da guerra contra as drogas se alinha perfeitamente com o pensamento de Gunther Jakobs:

A reação do ordenamento jurídico, frente a esta criminalidade, se caracteriza, de modo paralelo à diferenciação de Kant entre estado de cidadania e estado de natureza acabada de citar, pela circunstância de que não se trata, em primeira linha, da compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo: a punibilidade avança um grande trecho para o âmbito da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a fatos futuros, não à sanção de fatos cometidos. Brevemente: a reflexão do legislador é a seguinte: o outro «me lesiona por...[seu] estado [em ausência de legalidade] (status iniusto), que me ameaça constantemente».292

Assim foi instituída, em nível global, a guerra contra as drogas, cunhada no direito penal do inimigo e construída, a partir de padrões ético-morais293, pela força da política externa de um Estado hegemônico. E assim ela prossegue, sem qualquer perspectiva de se alcançar a paz ou, ao menos, uma saída honrosa. Prossegue, inclusive, sem apresentar os resultados um dia prometidos, não mais esperados e há muito esquecidos.

Uma formulação política eficiente requer uma clara articulação dos objetivos a alcançar. A Convenção Única de 1961 sobre entorpecentes deixou claro

                                                                                                                289

"Public enemy number one in the United States is drug abuse. In order to fight and defeat this enemy, it is necessary to wage a new, all-out offensive" (NIXON, Richard. apud NUTT, David. Op. cit., p. 264).

290

KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 7.

291

JAKOBS, Gunther. Op. cit., p. 395.

292

Ibid., p. 376.

293

que o objetivo do sistema era a melhoria da 'saúde e o bem estar da humanidade'.

Isto nos faz lembrar que as políticas de drogas inicialmente foram desenvolvidas e implementadas com a esperança de alcançar resultados em termos de redução de danos aos indivíduos e à sociedade – menos crimes, melhor saúde e mais desenvolvimento econômico e social. No entanto, até hoje continuamos avaliando o sucesso na guerra às drogas com base em parâmetros totalmente diferentes – parâmetros esses que informam sobre processos, como o número de prisões, as quantidades apreendidas ou a severidade das penas. Estes indicadores são capazes de comprovar o rigor com que determinada política está sendo executada mas não são capazes de medir em que medida esta política está sendo ou não bem sucedida em seu objetivo principal de melhorar 'a saúde e o bem estar da humanidade'.294

E é o seu fundamento jurídico, a norma penal que criminaliza as substâncias estupefacientes, que será, mais adiante, submetida ao crivo da proporcionalidade. Antes, porém, se faz necessário aferir os resultados obtidos com a guerra contra as drogas.