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3.2 A GUERRA COMO PRINCÍPIO, MEIO E FIM 70

3.2.3 A guerra como fim 81

A década de 1980 tornou-se emblemática quanto à adoção do modelo de combate ao crime norte-americano pelos mais variados Estados soberanos263, mas esse fenômeno mostrou-se ainda mais contundente em relação aos entorpecentes. Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos da América a partir do ano de 1981, já no início de seu mandato, demonstrou, em discurso, sua preocupação e vontade em intensificar a guerra contra as drogas, anunciando que empunharia "a bandeira de batalha" contra os estupefacientes264.

                                                                                                                259

WOODIWISS, Michael. Op. cit., p. 182.

260

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Narcotics Control Trade Act of 1974.

261

WOODIWISS, Michael. Op. cit., p. 186.

262

Ironicamente, Jimmy Carter publicou no The New York Times, em 16 de junho de 2011, artigo intitulado Call Off the Global Drug War, no qual critica a guerra contra as drogas e reconhece seu fracasso (CARTER, Jimmy. Call off the global drug war. The New York Times, New York, June, 16, 2011. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/06/17/opinion/17carter.html?_r=0>. Acesso em 23 de junho de 2013).

263

Sobre esse fenômeno, sua origem e causa, além de seus efeitos no Brasil, conferir ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti (organizadores). Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

264

Sob o seu governo, as penas em razão do tráfico ilícito de entorpecentes foram majoradas e se instituiu, como regra, o confisco dos bens utilizados para o tráfico ou adquiridos em sua decorrência265.

Durante os dois mandatos do Presidente Ronald Reagan, a legislação interna acerca do uso e comércio das drogas recrudesceu e as forças armadas dos Estados Unidos da América passaram a se envolver diretamente na guerra contra as drogas. Além disso, o governo americano passou a ter postura mais rígida no campo diplomático quanto à questão do narcotráfico, ao ponto de impor sanções econômicas contra países latino-americanos, que seriam, em sua ótica, os grandes responsáveis pela crise envolvendo as drogas, quando, na verdade, os problemas relacionados aos narcóticos dizem respeito a grande demanda nos Estados Unidos da América e nos Estados da Europa Ocidental, não nos países produtores, que "apenas" suprem essa demanda266.

Na sequência, George Bush implantou em 1989 a First National Drug Control

Strategy (Primeira Estratégia Nacional de Controle de Drogas), expandindo a regulação das

drogas ilícitas e padronizando a estratégia de combate ao narcotráfico.

Além disso, ampliou a militarização da guerra contra as drogas no âmbito internacional, promovendo uma rápida expansão da cooperação bélica com os países produtores de cocaína. Para que se tenha uma ideia do que isso representou, entre 1988 e 1991, o orçamento dedicado ao tema saltou de cinco para cento e cinquenta milhões de dólares. Era a chamada "Estratégia Andina", consistente no apoio técnico e militar no combate ao narcotráfico267.

Em decorrência do recrudescimento da guerra contra as drogas, entre os anos de 1980 e 2000, o número de acusados por crimes relacionados com drogas condenados a prisão nos Estados Unidos da América aumentou quinze vezes268.

E não houve mudança significativa no tratamento dado à proscrição das drogas nos Estados Unidos da América e na política imposta aos demais Estados durante os governos Clinton269, Bush e Obama, prosseguindo a guerra contra as drogas em caráter mundial.

                                                                                                                265

FRENCH, Laurence; MANZANÁREZ, Magdaleno. Op. cit., p. 146.

266

HAGEN, Bernard. The war on drugs: the Reagan, Bush and Clinton Administracion - a comparative

analysis. New Orleans: University of New Orleans, 2002. p. 05, 06 e 08. 267

Ibid., p. 12.

268

LEVITT, Steven D.; DUBNER, Stephen J. Op. cit., p. 1247.

269

Bill Clinton criticou a guerra contra as drogas em recente documentário, intitulado Breaking the Taboo, dirigido por Fernando Grostein Andrade, 2011.

Apenas o que mudou nas últimas duas décadas, foi o fato de a guerra contra as drogas ter preenchido o vácuo deixado pela Guerra Fria, apropriando-se de todos os medos e preconceitos que lhe eram inerentes. Nesse sentido:

On the other hand, to some in the United States, the drug war replaced the cold war, standing at the intersection between domestic fears and foreign threats. Politics at home pushed Clinton into the war on drugs as much as the threat from abroad.270

Apropriou-se também de toda estrutura de poder e influência internacional montada pelos Estados Unidos da América em sua luta contra o comunismo.

Esse espectro de influência tem ditado o comportamento legislativo dos demais Estados independentes, de suas políticas públicas para a questão das drogas, da utilização de sua força militar e até mesmo o pronunciamento de seus tribunais.

A moderna era de aplicação internacional da lei é uma daquelas nas quais as prioridades de justiça criminal e os modelos de criminalização e investigação criminal dos Estados Unidos têm sido exportados para o exterior. Os governos estrangeiros têm reagido às pressões, estímulos e exemplos norte- americanos, adotando novas leis criminais sobre o tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, comércio privilegiado e crime organizado, e modificando as leis de sigilo financeiro e empresarial, assim como os códigos de processo criminal, a fim de melhor atender às solicitações de ajuda de parte dos Estados Unidos. As polícias estrangeiras têm adotado técnicas norte-americanas de investigação, e os tribunais e legislaturas no exterior têm acompanhado a tendência com as necessárias autorizações legais. E os governos estrangeiros têm dedicado substanciais recursos policiais e até mesmo militares para coibir a produção e tráfico ilícito de drogas [...] Em linhas gerais, os Estados Unidos forneceram os modelos, e os outros governos se ajustaram.271

A influência do que a Global Commission on Drug Policy272 chamou de "imperialismo do controle de drogas" chega a intervir em questões tipicamente locais, ditando padrões de

                                                                                                                270

"Por outro lado, para alguns nos Estados Unidos da América, a guerra contra as drogas substituiu a guerra fria, ficando entre os medos domésticos e as ameaças estrangeiras. Ações políticas internas empurraram Clinton para a guerra contra as drogas, tanto quanto as ameaças do exterior" (HAGEN, Bernard. Op. cit., p. 15. Traduzido do inglês para o português).

271

NADELMANN, Ethan, apud WOODIWISS, Michael. Op. cit., p. 182.

272

Comissão Global de Políticas sobre Drogas, presidida pelo sociólogo e ex-Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, composta por nomes de vulto no cenário internacional, tais como: Carlos Fuentes (escritor e intelectual mexicano *in memoriam), César Gaviria (ex-Presidente da Colômbia), Aleksander Kwasniewski (ex- Presidente da Polônia), Ernesto Zedillo (ex-Presidente do México), George Papandreou (Primeiro-Ministro da Grécia), George Shultz (ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos da América), Kofi Annan (ex-Secretário Geral da ONU) e Mario Vargas Llosa (intelectual e escritor peruano).

comportamento que se contrapõem, muitas vezes, à cultura, história e autodeterminação dos povos, ao ponto de criminalizar até mesmo tradições históricas.

Um exemplo recente desta situação (que pode ser qualificada como 'imperialismo do controle de drogas'), foi a proposta do governo boliviano de retirar a prática de mascar folhas de coca das proibições impostas pela Convenção de 1961 que impedem qualquer uso não medicinal da folha de coca. Apesar de sucessivos estudos terem demonstrado273 que a prática indígena de mascar coca não implica em nenhum dos danos causados pelos mercados internacionais de cocaína, e que uma clara maioria da população boliviana (e de países vizinhos) apoia esta mudança, muitos dos países ricos “consumidores de cocaína” (liderados pelos Estados Unidos) se posicionaram formalmente contra a emenda proposta pela Bolívia274.275

É nesse sentido, o do recrudescimento da guerra contra as drogas e sua consequente militarização, que surge no Brasil, em 2004, o Decreto 5144276, que regulamenta a chamada "Lei do Abate", de 1998, segundo a qual a autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir aeronave a efetuar o pouso e, em caso de recusa, esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, será classificada como hostil, ficando sujeito à medida de destruição277. Embora referida lei não trate especificamente das questões relacionadas ao narcotráfico, o móvel do Decreto que a regulamenta foi exatamente esse.

Com efeito, o Decreto 5.144/2004 estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de drogas, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública278.

Segundo referido regulamento, as aeronaves suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes que não atendam aos procedimentos coercitivos previstos serão classificadas como hostis, sujeitas à medida de destruição279.

                                                                                                                273

"Henman, A. y Metaal, p. (2009) Los Mitos de la Coca Transnational Institute Programa Drogas e Democracia http://www.tni.org/ archives/reports_ drugs_debate13 Consultado 21.04.11" (nota constante no original).

274

"Jelsma, M. (2011) El retiro de la prohibición de la masticación de la coca: Propuesta de Bolívia para modificar la Convención o Única de 1961 Serie Reforma Legislativa en materia de Drogas, No. 11. Transnational Institute http://www.tni.org/briefing/lifting-ban-coca- chewing Consultado 08.05.11" (nota constante no original).

275

GLOBAL COMMISSION ON DRUG POLICY. Op. cit., p. 08.

276

BRASIL. Decreto 5.144 de 16 de julho de 2004. Regulamenta o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins.

277

Id. Lei 9.614 de 5 de março de 1998. Altera o Código Brasileiro de Aeronáutica, para incluir hipótese destruição de aeronave.

278

Id. Decreto 5.144 de 16 de julho de 2004. Regulamenta o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. Artigo 1o.

279

Id. Decreto 5.144 de 16 de julho de 2004. Regulamenta o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. Artigo 4o.

A natureza do abate, bem como a autoridade competente para tanto, revela o caráter bélico que dá contornos ao atual combate às substâncias estupefacientes, a demonstrar, mais uma vez, os atos de guerra promovidos em torno da questão das drogas.

Ainda mais contundente exemplo do tratamento belicista dado às drogas é a cominação de pena de morte em razão de condutas relacionadas ao narcotráfico em países como a China, Vietnam, Singapura, Irã, Indonésia, Malásia e Arábia Saudita280, resultado do recrudescimento da guerra contra as drogas.

Assim, o que se pode consignar de mais emblemático para esse período, que tem início com Ronald Reagan e prossegue até os dias atuais, é a nova face da guerra contra as drogas281. O argumento moral continua a lhe dar apoio popular (tal qual se deu na primeira fase) e os objetivos declarados permanecem aqueles relacionados com a erradicação dos estupefacientes (como ocorreu na segunda fase).

No entanto, ante a impossibilidade de vencer o narcotráfico, a guerra contra as drogas parece ter passado a ser um fim em si mesma.

Em nome dos direitos humanos, da intervenção humanitária, do combate ao comunismo ou às drogas, da democracia et coetera, os Estados Unidos da América sempre recorrem à guerra como forma de exercer e, ao mesmo tempo, consolidar seu poder hegemônico282.

No início da década de 1980, a Guerra Fria já não mais demandava maiores investimentos e, com a queda do muro de Berlim no final da mesma década, encerrava-se aquele período histórico.

Assim, os esforços militares dos Estados Unidos da América necessitavam de um novo argumento. O resultado foi a militarização da guerra contra as drogas. Em sentido semelhante, importante consignar:

                                                                                                                280

KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade. v. 3. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 7.

281

Nesse aspecto, os "Estados Unidos, a partir dos anos 80, utilizam o combate às drogas como eixo central da política americana no continente. Passam a difundir termos como 'narcoguerrilha' e 'narcoterrorismo', numa clara simbiose dos seus 'inimigos externos'. As drogas passam a ser o eixo das políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacional do trabalho os obriga a serem os produtores da valiosa mercadoria. Os países andinos se transformaram em mercados brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas" (BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos

fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 12) 282

O tema é tratado com profundidade em JELSMA, Martin; BENNIS, Phyllis; SOGGE, David; AGUIRRE, Mariano; MIAN, Zia; GEORGE, Susan; MARQUSEE, Mike; BELLO, Walden. Tradução do inglês para o espanhol por Beatriz Martínez Ruiz. Casus Belli: Cómo los Estados Unidos venden la guerra. Transnational Institute, 2011.

Una dinámica muy parecida es la que ha caracterizado a las relaciones entre los países productores de drogas y los Estados Unidos. Si bien fue el presidente Nixon el primero en declarar la guerra contra las drogas, la militarización de éste sólo empezó a mediados de los años ochenta. Fue entonces cuando el ejército estadounidense fue desplazado para entrenar a efectivos para operaciones de lucha contra los estupefacientes en los Andes. Desde aquel momento hasta los atentados del 11-S, la guerra contra las drogas ha resultado ser especialmente útil para justificar las operaciones, bases e intervenciones militares en el exterior. Se podría decir, de hecho, que la guerra contra las drogas cubrió un vacío ideológico entre la Guerra Fría y la guerra contra el terrorismo. [...]

El argumento de la lucha contra el comunismo para justificar los altos presupuestos militares y las operaciones en el extranjero se topó con un escollo tras la caída del Muro de Berlín, el mismo año en que se otorgó al Pentágono un importante papel en la guerra contra las drogas. En diciembre de 1989, los Estados Unidos invadieron Panamá para derroca el Gobierno del general Manuel Noriega. Uno de los principales motivos dados para explicar la invasión fue la implicación de Noriega en el tráfico de drogas.283

E assim a guerra contra as drogas prossegue nos dias atuais. Com forte discurso moralista, declarando ter como objetivo a mitigação do narcotráfico e do consumo de drogas até sua erradicação, mas não passando de um fim em si mesma.