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COGNIÇÃO, LINGUAGEM E DISCURSO: CENAS DE SIMBIOSE

2. O CONHECIMENTO NA INTERFACE COM O AGIR LINGUISTICO: COGNIÇÃO,

2.1 COGNIÇÃO, LINGUAGEM E DISCURSO: CENAS DE SIMBIOSE

Ao perceberem que os estudos da linguagem não poderiam dispensar um olhar sobre os aspectos da cognição, sob pena de se deixar escapar explicações para muitos dos fenômenos que se manifestam na interface desses dois processos, os linguístas cognitivos, apoiados nos avanços da psicologia cognitiva, se lançaram no desafio de mostrar como os processos linguísticos se relacionam com os demais processos mentais demonstrando, simultaneamente, uma preocupação em definir a linguagem também como um processo cognitivo.

De acordo com Harré e Gillet (1999, p. 16), a ciência cognitiva é marcada por duas grandes revoluções, a primeira, encabeçada por Jerome Bruner, George Miller e Johnson-Laird, “envolveu a introdução de um modo de pensar sobre os seres humanos que rejeitava toda moldura do método e da metafísica sobre as quais a tradição experimentalista estivera baseada”; e a segunda, que toma como fundamento os conceitos filosóficos de linguagem de Ludwig Wittgenstein, trazendo a proposta de uma psicologia discursiva, cuja essência é a idéia de mente como uma construção social.

O núcleo conceitual dessa revolução cognitiva – a existência de um sujeito

discursivo, cujas ações mentais são mediadas e influenciadas por processos

discursivos interpessoais, como exemplo disso podemos citar o uso dos sistemas simbólicos pelos indivíduos. Ao nos apropriarmos de um sistema simbólico “todos nós compartilhamos e negociamos conceituações e significados de acordo com os discursos nos quais somos peritos” (HARRÉ; GILLET, 1999, p. 29). Nessa segunda revolução, a cognição assume outro significado como os próprios autores indicam: “nós nos esforçaremos, tanto quanto possível, para apresentar e entender a cognição em termos de linguagens comuns através das quais pensamos, ao invés de buscar suas representações abstratas” (HARRÉ; GILLET, p. 30). Disso é possível apreender também o papel importante que a linguagem assume na sua relação com os processos cognitivos.

Isso mostra de maneira muito clara a existência de uma ruptura com o antigo paradigma experimental cartesiano, ao mesmo tempo em que representa uma oposição à primeira revolução cognitiva que, apesar de se mostrar contrária aos pressupostos behavioristas, não conseguiu ultrapassar as barreiras do mentalismo, pois os processos mentais continuavam sendo entendidos como mecanismos

internos ao indivíduo, separados do contexto social de ocorrência, embora houvesse uma discordância com a psicologia experimental ao fato de que eles não pudessem ser tomados como objeto de estudo pela ciência.

Por outro lado, não podemos negar a importância que essa primeira revolução teve para o surgimento de uma ciência cognitiva, no sentido de buscar retratar os mecanismos internos da mente, os vários trabalhos de Bruner entre eles

Uma nova teoria da aprendizagem (1973 [1966]), no qual analisa o processo de

desenvolvimento mental em sua relação com o ensino, é um bom exemplo disso. Nessa trajetória não podemos deixar de citar os trabalhos de Vigotski, Luria e Leontiev (1988) e Vigotski (2000 [1934]), cujos escritos inauguraram uma nova forma de pensar a relação pensamento e linguagem, influenciando novas teorias cognitivas do desenvolvimento e da aprendizagem, uma delas a de Jerome Bruner. Sobre o desenvolvimento do pensamento Vigotski (2000 [1934], p. 62) se posiciona de maneira contundente: “o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sócio-cultural da criança”.

Se para a psicologia cognitiva a superação do behaviorismo, bem como a compreensão de como o discurso/social se relaciona com a cognição e molda o cérebro, tornou-se uma tarefa instigante. Para a linguística cognitiva, estas questões tornaram-se uma tarefa igualmente desafiadora. Por isso, aqui neste trabalho nos interessa, sobretudo, a revolução linguística que propõe uma mudança de foco interpretativo sobre a linguagem, atribuindo um papel importante ao discurso na sua relação com a atividade cognitiva, tendo em vista que a preocupação é compreender a relação linguagem, cognição e discurso.

Essa revolução, que manifesta uma preocupação em compreender a relação linguagem, cognição e discurso não é, obviamente, o marco zero nos estudos cognitivos da linguagem. Conforme já enunciado de forma muito bem delineada por outros estudiosos (Cf. MARCUSCHI, 2005; SALOMÃO, 2006), os primeiros passos contemporâneos no sentido de construir uma ciência cognitiva de linguagem foram dados por Noam Chomsky, na década de 60. Não podemos negar que esses primeiros passos representaram um grande impulso para o desenvolvimento da linguística como ciência, no entanto, tal como a primeira revolução psicológica, tratava-se de mais uma concepção mentalista de cognição que não demonstrava interesse pelos fatores sociais, pois o seu alvo principal era o funcionamento interno

da linguagem. Sob uma influência muito forte da psicologia, da biologia e do próprio conceito de cientificidade da época, esta proposta teórica trazia a ideia de linguagem “como um fenômeno mental, como uma entidade neurobiológica instalada no cérebro, com propriedades formais” (MARCUSCHI, 2005, p. 12).

Diante disso, parece óbvio dizer que não há cognição fora da linguagem, no entanto a trajetória filosófica e linguística que envolve esta assertiva aponta concepções e caminhos diversos de pensar essa relação. Convém, então, dizer que pensá-la na perspectiva de um processo simbiótico significa tomar como base uma concepção de linguagem

como instrumento cognitivo, que à semelhança da percepção visual, ou do raciocínio, aciona um conjunto de princípios aparentemente simples, gerais e limitados, operativos sobre bases de conhecimento subjacentes na memória, ou presentes, como contexto, na situação comunicativa (SALOMÃO, 1999, p. 65).

Esta concepção de linguagem agregada à ideia de que “a linguagem é uma forma de cognição sociohistórica e de caráter eminentemente interativo” (MARCUSCHI, 2002, p. 43) nos dá segurança acerca do caminho teórico que estamos trilhando para abordar a relação cognição, linguagem e discurso.

Ao privilegiar os processos interativos da linguagem, a linguística cognitiva de base social inaugura, na segunda metade do século XX, uma concepção de linguagem de caráter social e, portanto, como forma de ação. Compreendida desse modo, a linguagem, em sua relação com a cognição, passa a ter importância fundamental, no sentido de que uma determina e, ao mesmo tempo, é determinada pela outra. Dito de outra forma, isto significa que a cognição constrói-se como objeto observável em função da linguagem, dos padrões da língua e dos processos interativos e discursivos, funcionando, ao mesmo tempo, como catalizador dos processos linguísticos/discursivos.

Partindo dessa compreensão, apresentamos o nosso pressuposto de que há uma relação simbiótica entre cognição, linguagem e discurso, pois consideramos que este termo, emprestado da Biologia, comporta um significado cujo valor nos servirá como parâmetro explicativo para esta relação. Se na Biologia este termo significa uma relação de cooperação entre dois ou mais seres vivos que atuam em

conjunto para proveito mútuo13, o seu empréstimo semântico aqui nesta discussão pode nos ajudar a estabelecer um paralelo interessante com a Linguística Cognitiva. Trazendo este conceito para a nossa área, podemos pensar a cognição, a linguagem e o discurso como elementos simbiontes, os quais se encontram tão interrelacionados que fica difícil identificar a linha divisória entre eles. Cada um contribui ativamente para a existência do outro, compondo essa relação que estamos chamando de simbiótica.

Logicamente há muito o que se interrogar na relação cognição, linguagem e discurso, mas a nossa intenção neste momento é evidenciar o processo de co- existência desses elementos que constituem esta relação. É possível realizar uma ação de linguagem sem recorrer aos processos cognitivos e discursivos? Uma ação discursiva existe fora da linguagem e da cognição? A atividade cognitiva se processa sem instrumentos linguísticos? Responder negativamente a estas questões assegura o sentido da analogia que propomos aqui.

E o conhecimento, qual o seu lugar nesta relação? Enquanto fenômeno social, ele se materializa no entrecruzamento de ações linguísticas, cognitivas e sociodiscursivas. O conhecimento, nesta condição, não se enquadra apenas no domínio individual, nem tampouco no domínio exclusivamente social, mas se desenha na maquinaria social no entrecruzamento desses domínios, fugindo do paralelismo com o qual tem sido tratado durante muito tempo, interpretado ora como expressão do pensamento, ora como produto cultural.