• Nenhum resultado encontrado

2. O CONHECIMENTO NA INTERFACE COM O AGIR LINGUISTICO: COGNIÇÃO,

2.3 CONHECIMENTO E LINGUAGEM: DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS ÀS

2.3.2 O conhecimento como prática discursiva

Pensar o conhecimento como prática discursiva representa um grande passo em relação à visão representacionista do conhecimento. Em sintonia com os estudos contemporâneos da linguagem, não cabe mais pensar o conhecimento reduzido à uma função referencial. O conhecimento, tal como a linguagem, serve a diferentes propósitos e formas de uso na sociedade, e as implicações que emanam desses propósitos são de natureza muito complexa, uma vez que envolve relações sociais e de domínio sobre o mundo, o que nos leva a crer que seus elementos construtores situam-se nos processos de interação. A citação de Marcuschi (2002, p. 45)respalda a nossa afirmativa, abrindo caminho para esta discussão.

Uma das coisas mais fascinantes em nosso dia-a-dia é o fato de contarmos uns aos outros o que vemos, ouvimos e sentimos, tendo a sensação de que os outros nos entendem, ou seja, que constroem percepções e experiências similares a nós. Esta atividade que parece tão natural e trivial permanece bastante misteriosa. A explicação caminha na direção das atividades linguísticas situadas e não das estruturas da língua descarnadas de seus usuários. Esse é o caminho que vai do código para a cognição e, neste percurso, tudo indica que o conhecimento seja um produto das interações sociais e não de uma mente isolada e individual.

Marcuschi nos chama atenção de forma particularmente simples para um fato de extrema complexidade – a constatação do conhecimento fora dos limites da mente humana. Mas, chegar a esta constatação só foi possível graças às contribuições científicas das teorias cognitivistas de base social, entre as quais citamos Clark (1992, 2007), Mondada (2002), Salomão (2002). Não é o caso aqui de fazer um histórico, mas isto não nos faz esquecer a trajetória milenar e outros importantes passos em busca de respostas para as questões do conhecimento, situados, sobretudo, na filosofia. Nosso interesse é, na verdade, tratar do

conhecimento como uma ação de linguagem, cuja discussão desemboca na abordagem sociocognitiva de linguagem.

Segundo Mondada (2003), os sujeitos constroem versões públicas do mundo em função de suas práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas. Dessa forma, as categorias e objetos de discurso através dos quais os sujeitos compreendem o mundo são elaboradas e re-elaboradas no contexto de ação, portanto não são preexistentes. Se podemos imaginar, a partir dessa concepção, a língua como produto das ações interativas, podemos também pensar o conhecimento como uma ação social, uma vez que não há como separar conhecimento e linguagem. Neste caso, o conhecimento sai do terreno das representações mentais e das ações individualizadas e passa a ocupar o terreno social, das ações compartilhadas, portanto, uma ação de linguagem, e a referência para a sua construção ou distribuição passa a ser as práticas discursivas. Mas, que implicações e aplicações isso traz no trato do conhecimento?

Analisar o conhecimento sob o ângulo da cognição social situada representa uma saída definitiva para o tratamento mentalista ou representacionista que o conhecimento tem recebido ao longo dos anos. Uma outra implicação diz respeito à construção do conhecimento, que passa a ser vista como um processo de construção coletiva, realizado em atividades contextualizadas. E uma terceira implicação diz respeito aos usos do conhecimento, a preocupação com as formas como os sujeitos compartilham seus conhecimentos, como e com que finalidade utilizam esses conhecimentos nas comunidades globais ou locais das quais fazem parte. Alguns trabalhos de pesquisa já caminharam nessa direção, trazendo grandes contribuições (Cf. MARCUSCHI, 1999; MIRANDA, 2000; VAN DIJK, 2002a, 2002b; RODRIGUES-LEITE, 2004).

Levando em conta os parâmetros da cognição socialmente situada, são muitos os cenários nos quais o conhecimento se mobiliza, desde os cenários conversacionais que lidam com o conhecimento de natureza pessoal até os cenários institucionais, cuja referência é o domínio público do conhecimento. E estes cenários se entrecruzam o tempo todo, fazendo com que os sujeitos sociais acionem e compartilhem diferentes categorias de conhecimentos.

O agir sobre uma base comum de conhecimento torna-se, assim, uma ação em conjunto a fim de poder estabelecer entre os sujeitos uma relação de entendimento e de domínio sobre o mundo, e esse agir conjunto implica em

processos cognitivos que podem, potencialmente, promover o fluxo e a dinâmica de formação de conhecimentos. Ao mesmo tempo, estas ações podem ser encaradas como instrumentos de produção da cognição humana, de discursos e de práticas sociais, criando campos ou esferas discursivas que albergam um amplo conjunto de modelos mentais que emergem dessas ações. Entre os múltiplos aspectos cognitivos envolvidos na produção, interpretação e distribuição do conhecimento estão os processos de categorização, de enquadramento (frames), de mesclagem, de construção de esquemas conceptuais ou MCI (modelo cognitivo idealizado) e molduras comunicativas.

De acordo com Salomão (2002, p. 71),

só é possível atuar na cena social (de caráter micro ou macro), investindo- a de sentido, seja com base em conhecimento consensualizado (o MCI da interação), disponível como norma de conduta, ou por conta da

motivação singular de realizar objetivos localmente relevantes.

Este raciocínio sugere que não agimos socialmente sem que estejamos ancorados nas estruturas de conhecimento cognitivamente estáveis e nas motivações pessoais. Nesse sentido, as molduras comunicativas funcionam como um importante instrumento cognitivo responsável pela formação e articulação de diversos tipos e níveis de conhecimentos. Molduras comunicativas nos moldes de Clark (1992) e Miranda (2000) são domínios sociocognitivos estáveis, ou seja, estruturas de conhecimento através das quais os sujeitos agem em situações sociais.

Conceptualizar o conhecimento nessa perspectiva representa uma simetria com a ruptura epistemológica proposta por Santos (1987), na qual a versão de conhecimento assume um caráter de emancipação. Não queremos com isso dizer que por ser objeto social compartilhado o conhecimento se traduz, necessariamente, como instrumento de emancipação, mas conduz a uma multiplicidade de formas exemplificadas pela pluralidade de esferas de conhecimento. Dessa forma, retira da ciência o poder que a sustenta como esfera reconhecidamente válida de conhecimento, embora não possamos negar o fato de que o conhecimento como regulação ainda é de domínio da ciência.