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Interface entre conhecimento e elaboração discursiva

2. O CONHECIMENTO NA INTERFACE COM O AGIR LINGUISTICO: COGNIÇÃO,

2.3 CONHECIMENTO E LINGUAGEM: DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS ÀS

2.3.1 Interface entre conhecimento e elaboração discursiva

Os estudos cognitivistas sobre o conhecimento e a linguagem ganham destaque com George Lakoff e Charles Fillmore, sobretudo por defenderem a ideia de que as estruturas e habilidades que capacitam os humanos a usarem e aprenderem uma língua são inatas e específicas da linguagem. Para os cognitivistas há uma perfeita interrelação entre as estruturas da linguagem, do pensamento e as vivências experienciais, o que corresponde dizer que não há como separar o conhecimento linguístico do não-linguístico. A linguagem, nesse sentido, é entendida como uma forma de ação e o contexto passa a ter importância determinante nos processos de significação. Nessa proposta sociocognitivista, “os significados não são elementos mentais únicos e estáveis, mas resultam de processos complexos de integração entre diferentes domínios do conhecimento” (MARTELOTTA, PALOMANES, 2008, p. 179).

O que essa visão de linguagem pressupõe é que não há conhecimento sem discurso, nem discurso sem conhecimento, considerando que esses dois elementos são práticas sociais e se realizam através de trocas linguísticas e de outras ações comunicativas culturalmente estabelecidas. Mas, afirmar que esses dois elementos se interrelacionam implica dizer também como se dão essas relações, assim,

interessa-nos aqui discutir como se manifesta esse fenômeno interacional, utilizando os aportes teóricos do Sociocognitivismo e dos Estudos Críticos do Discurso (ECD).

O vasto trabalho que van Dijk tem desenvolvido nos Estudos Críticos do Discurso – ECD15 representa um importante acervo de conhecimentos e reflexões teóricas acerca do texto/discurso numa abordagem sociocognitivista. Num dos trabalhos mais recentes van Dijk (2008) propõe uma substituição do termo ACD

(Análise Crítica do Discurso) por ECD (Estudos Críticos do Discurso), apontando

como principal razão o fato de que não estamos tratando de um método de análise do discurso, mas de um domínio de práticas acadêmicas

Para este autor os Estudos Críticos do Discurso – ECD só se tornam possíveis a partir de uma conexão triangular envolvendo discurso, cognição e sociedade, o que significa dizer que nenhuma dessas dimensões pode ser totalmente compreendida fora dessa relação. Um argumento para esta conexão se situa no fato de que o discurso não é visto apenas “como um objeto ‘verbal’ autônomo, mas também como uma interação situada, como uma prática social ou como um tipo de comunicação numa situação social, cultural, histórica ou política” (VAN DIJK, 2008, p. 12). Sendo o discurso um fenômeno interacional situado precisa ser analisado na zona fronteiriça onde se desenvolvem os processos cognitivos próprios do campo mental e os processos socioculturais do mundo, sobre o qual atuamos ontogeneticamente.

Esta concepção de discurso como modo de ação social foi anteriormente enunciada por Fairclough (2001), ao discutir a relação entre linguagem e sociedade. A preocupação destes e outros estudiosos dos ECD é mobilizar teorias e conceitos que contribuem para mostrar o uso da linguagem e, portanto, o discurso como um modo de ação historicamente situado, o que implica dizer que ele é construto social e, ao mesmo tempo constitutivo da estrutura social: de produção de sentidos, processos identidários, relações sociais, de conhecimentos e valores. O enunciado de Fairclough (2001, p. 90-91) respalda a nossa afirmativa.

Ao usar o termo ‘discurso’, proponho considerar o uso de linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também

um modo de representação. [...] Segundo, implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição como um efeito da primeira. [...] O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.

É esta Teoria Social do Discurso que dá suporte a abordagem multidisciplinar de van Dijk que, em favor de uma análise sociocognitivista, se debruça sobre aspectos que envolvem as complexas relações entre discurso, cognição e sociedade. Obviamente são muitos os desdobramentos dessas relações, mas aqui nos interessa, em particular, a relação pragmática entre discurso e contexto observada nos atos comunicativos.

O destaque dado à cognição no trabalho de van Dijk representa um diferencial importante nos trabalhos dos ECD, pois ele propõe a compreensão do uso da linguagem orientada por fatores cognitivos (propósitos comunicativos, sistema de conhecimentos, representações mentais...), entretanto ele não negligencia os fatores sociais, o que pode ser constatado em suas recentes pesquisas sobre discurso e poder e outras temáticas como o racismo, manipulação da mídia entre outras, nas quais reflete sobre práticas reais de linguagem, em que os participantes agem discursivamente em situações sociais de fala e de escrita. No campo da mídia, por exemplo, há estudos sobre a influência/controle dos discursos midiáticos sobre a mente das pessoas e as implicações sociais que isto pode acarretar, em virtude do grande poder da mídia.

Este tipo de atividade de pesquisa centrado nas problemáticas e conflitos reais da sociedade demonstra uma preocupação fundamental dessa abordagem de estudo: o compromisso social do pesquisador e, com isso, fica descartado o papel de neutralidade científica, ao contrário disso, ele se engaja numa análise teórico/crítica que se torna, paralelamente, uma prática de intervenção social com vistas a perceber/discutir problemas com referências no mundo social, histórico e politicamente situado, vislumbrando mudanças substanciais em suas estruturas e na forma de agir das pessoas.

Tratar dessa questão nos impulsiona novamente ao trabalho de Van Dijk (2001, p. 5), uma vez que suas análises trazem premissas importantes para este estudo. Iniciamos, então, nossa discussão por uma citação desse autor: “Sem a ativação e aplicação de grandes quantidades de “conhecimento de mundo”

[destaque do autor] socialmente compartilhado, a gente é incapaz de compreender- se entre si e de produzir discursos significativos e coerentes”. Corroborada a nossa assertiva, anteriormente enunciada, a questão central, agora, é descrever como se estabelece esta relação entre conhecimento e discurso.

A definição de conhecimento enunciada por Van Dijk (2001, p. 6), exposta no início deste capítulo, se apresenta como uma contestação à concepção inatista do conhecimento. Sua definição, respaldada na Análise Crítica do Discurso, atribui à realidade social importância fundamental na origem e compartilhamento do conhecimento. Nessa definição “a verdade é uma declaração que os membros de uma comunidade epistêmica aceitam como correspondente aquilo que vêem como fatos”. Assim, a ênfase não está na verdade absoluta, mas no relativismo que permeia o processo de construção e validade do conhecimento.

Este autor problematiza a ausência de intercâmbio entre os epistemólogos e os cientistas cognitivos, criticando os psicólogos por operarem com um conceito comum de conhecimento e os epistemólogos por não oferecerem muito aos psicólogos e analistas do discurso que se interessam pela relação entre conhecimento e discurso. Além disso, questiona a ausência de conceitos mais específicos que uma teoria geral do conhecimento não dá conta de responder. Como resposta a este impasse, ele propõe uma tipologia do conhecimento e argumenta que a relevância de tal tipologia para uma teoria do discurso e o processo discursivo está no fato de que cada tipo de conhecimento traz consigo formas específicas de organizar o discurso.

Segundo Van Dijk (2002), no processo discursivo os usuários podem aplicar ou adquirir vários tipos de conhecimentos, que podem estar limitados a si mesmos ou ser de domínio universal. Alguns desses conhecimentos são:

Conhecimento pessoal – restrito ao indivíduo e o acesso a ele só se dá pela

comunicação autorizada daquele que o detém.

Conhecimento de grupo – só se realiza no interior do de um grupo e se pressupõe

no discurso.

Conhecimento cultural – Considerado o conhecimento do campo comum,

compartilhado pela maioria dos integrantes de uma cultura e cuja aquisição se dá através do discurso de socialização na família, na escola e pelos meios de comunicação.

Ao falar do conhecimento cultural, Van Dijk (2002a) exclui crianças e estrangeiros como membros que compartilham desse conhecimento de “terreno comum”16, justificando que eles ainda teriam que adquiri-lo. Mas, entendemos que aqui cabe uma ressalva em relação às crianças, esta generalização só é válida para as crianças muito pequenas, que ainda não adquiriram a língua falada e, portanto, não tiveram acesso aos bens culturais através dos vários discursos institucionais: família, escola, igreja, mídia etc. Para àquelas que já passaram pelo processo de aquisição da linguagem e que já utilizam ativamente as ferramentas culturais, sobretudo a linguagem, esta exceção feita pelo autor causa um efeito contraditório às suas próprias palavras: “este terreno comum, geralmente compartilhado, é a base de toda cognição social. Qualquer conhecimento grupal e pessoal está enraizado neste tipo de conhecimento, ainda que se trate de um conhecimento altamente especializado”17 (VAN DIJK, 2002a, p. 49 [tradução nossa]). Neste caso, podemos excluir as crianças desse terreno comum, se é através dessa base cognitiva social que se realizam os processos de aprendizagem?

Se formos um pouco mais radicais nesta observação, podemos dizer que não faz sentido a inclusão de nenhum grupo de criança nesta exceção, pois mesmo sem o domínio da língua materna, uma criança muito pequena é capaz de interagir com os outros, mediatizada pelo conhecimento cultural, um exemplo disso é quando ela dá tchau ou manda beijinhos, sinalizando o compartilhamento de formas de comunicação próprias da sua cultura.

Buscando respaldo na teoria cultural de Tomasello (2003, p. 225), encontramos justificativas que se coadunam ao nosso pensamento. De acordo com a visão desse estudioso da linguagem, as crianças identificam-se com outras pessoas; percebem as pessoas como agentes intencionais iguais a elas; interagem e compreendem as intenções comunicativas expressas através de gestos, símbolos e construções linguísticas; aprendem por imitação e constroem pela linguagem categorias de objetos e esquemas de eventos. Essas “habilidades cognitivas possibilitam às crianças pequenas começar a percorrer a linha cultural de

16 Expressão utilizada por Van Dijk (2002, p. 48) que faz referência aos conhecimentos e crenças que

os participantes de uma interação comunicativa têm em comum. A noção de “terreno comum” deriva da abordagem de Clark (1996), que defende estes elementos como fundamentais para o processo de compressão mútua entre os agentes interativos.

17 Cualquer conocimiento grupal y personal está finalmente enraizado em este tipo de conocimiento,

desenvolvimento, ou seja, começam a aprender culturalmente (apropriar-se, adquirir) as aptidões, as práticas e os campos de conhecimentos únicos de seus grupos sociais”. Argumento semelhante pode ser utilizado em relação aos estrangeiros que, mesmo não sendo membros efetivos de uma determinada cultura, podem ter acesso a ela através dos meios de comunicação, o que lhes possibilitam, consequentemente, compartilhar determinados conhecimentos.

Outra ressalva que fazemos é em relação ao fato de Van Dijk (2002a) considerar o conhecimento pessoal privado por definição. É possível atribuir ao conhecimento pessoal esse sentido privado? Isto não seria comungar com as teorias individualistas do conhecimento? A teoria da cognição social aponta caminhos que nos fazem compreender o conhecimento, mesmo quando pessoal, numa perspectiva social. Entre as várias razões apontadas, uma delas é que a construção do conhecimento, seja ele de que natureza for, envolve o processamento de dados cognitivos que se situam internamente e externamente. O aspecto cognitivo pode ser compreendido pelo viés da memória semântica e social.

Mas, independente desse desencontro de posicionamentos, a tipologia de conhecimentos proposta por Van Dijk (2002a) nos faz perceber e discordar também da ideia de validade universal do conhecimento. Nossa crença é de que conhecemos e produzimos conhecimentos a partir das diferentes situações propiciadas pela realidade sociocultural vivida, por isso, nem sempre há como pensar no conhecimento inserido numa categoria de validade universal, embora não descartemos as bases estáveis e objetivas que envolvem o processo de conhecer. Da mesma maneira que Habermas (2007 [2003] p. 46) “[...] não podemos senão nos opor a um mundo objetivo feito de entidades independentes da descrição que fazemos delas; um mundo que é mais ou menos o mesmo para todos”. Isto nos faz pensar o conhecimento neste quadro epistêmico.

Para Van Dijk (2002b, p. 12), existem vários processos que envolvem a produção e compreensão do discurso e são controlados pelo que ele chama de

dispositivo K (dispositivo do conhecimento) presente em todo usuário de linguagem,

sendo parte do modelo mental que ele tem do contexto e do conhecimento dos interlocutores. Resumiremos aqui a abordagem desse autor sobre estes vários processos, elementos demonstrativos de como o conhecimento está envolvido na produção discursiva:

1) Conhecimento de linguagem. Compreender ou produzir o discurso em uma

língua natural pressupõe conhecimento dessa língua. Este conhecimento envolve o domínio da gramática e do léxico, das estratégias discursivas e de conversação, das regras pragmáticas de uso adequado, enfim, de tudo que envolve o uso da linguagem.

2) Utilização de módulos representativos do conhecimento cultural e de grupo.

Refere-se à aplicação de partes representativas do conhecimento à linguagem, favorecendo aos usuários da linguagem a decodificação e interpretação de expressões discursivas.

3) Ativação de modelos mentais já construídos. Interpretar palavras, frases,

orações e seqüências, exige dos usuários da linguagem, a ativação de modelos mentais referentes às experiências anteriores, guardados na memória episódica.

4) Ativação e uso do conhecimento de maneira diferenciada. Algumas vezes

ativamos e usamos o conhecimento em sua profundidade, como quando lemos um texto de forma vertical, refletindo e fazendo associações de natureza complexa, outras vezes esse conhecimento é ativado de forma superficial, como numa leitura rápida e descuidada que fazemos, acionando apenas o necessário para a sua decodificação.

5) Interação entre modelos mentais e conhecimento social. O que pode ser percebido nessa interação é que os modelos mentais são construídos com a ajuda do conhecimento, desencadeando, paralelamente, a construção do conhecimento social, ratificado pelo seu uso em sociedade. As pessoas que compreendem acontecimentos reais ou eventos discursivos só serão capazes de construir uma representação mental significativa se tiverem um conhecimento mais geral sobre tais acontecimentos.

Estes processos, em sua dinâmica de funcionamento, dão conta de explicar a interface entre conhecimento e elaboração discursiva, no sentido de inter-relações e por isso se conecta de forma harmoniosa com os propósitos desta tese. Ao analisar o processo de mobilização do conhecimento na aula expositiva é possível perceber essa inter-relação entre linguagem, discurso e cognição, através das ações linguístico-discursivas e linguístico-cognitivas que mobilizam o conhecimento.

Portanto, no agir comunicativo dos interlocutores, no qual se articula linguagem e conhecimento todos esses processos são ativados.