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Colocando a questão

No documento V E R A A L V E S C E P Ê D A THIAGO MAZUCATO (páginas 160-163)

Nossa contribuição a esta homenagem a Florestan Fernandes pretende indicar a centralidade da noção de dilema racial para uma sociologia da socie- dade brasileira. Entendemos que esta noção não apenas está na estrutura da obra de Florestan Fernandes, mas é também fundamental para compreender- mos nossa sociedade, no passado e no presente.

Esse duplo pressuposto que anima a nossa leitura atualizada do dilema racial tal como ele se constituiu entre nós historicamente, como um proces- so, e sociologicamente, como formação de “padrões” associados a “dilemas”, como sugere Cohn (1986), leva-nos a perceber uma relação estreita entre passado, presente e futuro e a colocar o dilema racial no centro do debate sobre a nossa formação social. Dizendo de outro modo, qualquer que seja o desenvolvimento do capitalismo no Brasil a ele estará também associada a manifestação deste dilema, como parte dinâmica articulada em uma estrutura (ou padrão) que, se não nos singulariza, muito diz a respeito de nós mesmos. Ainda que A Revolução Burguesa no Brasil seja considerada sua obra maior, concordamos com Gabriel Cohn (2004) quando afirma ser o nosso sociólogo autor de mais de uma obra magna. No caso específico do argumento aqui 1 Doutorando em Sociologia no PPGS-UFPE e Bolsista CNPq, Professor Assistente da UFRPE.

tratado, à Revolução Burguesa no Brasil soma-se A Integração do Negro na

Sociedade de Classes.

É certo também que as ideias aqui apresentadas não constituem novidade para o leitor de Florestan Fernandes ou de seus intérpretes. Heloísa Fernan- des (2009a e 2009b), em diálogo com a interpretação de Liedke Filho (2005), propõe uma visada que em muito nos inspira na leitura da obra de seu pai. Ela afirma ter explorado “por sua própria conta as potencialidades da leitura [da obra de Florestan] pela dominância de duas hipóteses sobre a revolução bur- guesa [proposta por Liedke Filho] porque ela tem a vantagem de acompanhar momentos decisivos da interpretação sociológica de Florestan” (FERNAN- DES, H. 2009a, p. 47). Entretanto alerta para a desvantagem de se partir do pressuposto de uma “coerência explicativa” difícil de ser sustentada. O que isso significa? Para Liedke Filho, Florestan Fernandes teria produzido em torno da problematica central da revolução burguesa no Brasil duas hipóteses fundamentais que, por sua vez, delineariam uma das fases do seu pensamento entre as décadas de 1950 e 1960. A primeira, a Hipótese da Demora Cultural (1954-1959), “presume a existência de um ritmo diferencial das mudanças nas várias esferas culturais e institucionais de uma sociedade” razão pela qual pode ocorrer uma dissociação da temporalidades em momentos de transição: no caso brasileiro, mesmo com a substituição da mão de obra escrava pelo trabalho livre, os libertos (e os trabalhadores em geral) permaneceram fora da esfera da cidadania e continuaram sendo tratados como escravos, isto é, destituídos de direitos – assim, conclui Heloísa Fernandes (2009a, p. 46), “o que demora é a democracia e só a educação das massas populares (...) pode fazer avançar os ritmos das mudanças...”. A segunda, a Hipótese do Dilema Social Brasileiro (1959-1965), se caracteriza pelo acréscimo de um elemento: a resistência sociopática à mudança. Nas palavras de Florestan Fernandes: “O dilema social brasileiro consiste numa resistência residual ultrainten- sa à mudança social, que assume proporções e consequências sociopáticas” (FERNANDES, 1976, p. 211). Para Liedke Filho e Heloísa Fernandes, é justamente em A Integração do negro na sociedade de classes que o dilema so- cial assumirá a sua face mais perversa, assumindo nesta análise o status de “dilema racial”.

Entretanto, duas observações de Heloísa Fernandes são fundamentais. Florestan Fernandes não substitui uma hipótese por outra. Ele as mobiliza quando considera necessário e também as utiliza simultaneamente, como de- mostra a citação a seguir:

O dilema número um da sociedade brasileira moderna é a demora cultural (...) em sentido bem mais penoso e dramático existe uma resistência residual intensa à mudança, a qual se torna sociopática, nos circulos conservadores do país, concentrados nas cidades ou dispersos no vasto mundo rural e tradicio- nalista brasileiro (FERNANDES, 1976, p.133).

Isso sugere, para Heloísa Fernandes, e nós estamos de acordo, não apenas que não há a substituição de uma hipótese por outra, mas um alargamento da hipótese orginária, que não deixa de existir, mas passa a ser complementada pela hipótese do dilema social brasileiro.

A segunda observação diz respeito ao modo como Florestan Fernandes irá superar aquele círculo vicioso descrito como “dilema racial brasileiro”. Ela surge em A Revolução burguesa no Brasil com “a hipótese da dominação au- tocrático-burguesa como a contraface necessária do capitalismo selvagem”. Mas, para Heloísa Fernandes, a nova interpretação ganha corpo com as teo- rias marxistas sem necessariamente deixar fora os elementos que já estavam consolidados nas análises anteriores. Diz a autora:

Ademais, a interpretação ganha uma hipótese nova: o desenvolvimento desigual e combinado propicia e alimenta a manutenção sobredetermindada das temporalidades. Por isso mesmo já não se trata de demora nem de ritmos diferenciais de mudança: o novo e o velho se complementam e se retroalimen- tam (FERNANDES, H. 2009a, p.47).

Poderíamos, então, sugerir que o dilema social brasileiro apresenta-se em seu núcleo duro como um dilema racial articulado com o desenvolvimento do capi- talismo dependente e subdesenvolvido, que Florestan Fernandes nomeia como capitalismo selvagem. Esta é a ideia que pretendemos desenvolver neste artigo3.

3 Em artigo anterior, “O dilema racial brasileiro: de Roger Bastide a Florestan Fernandes ou da explicação teórica à proposição politica” (SOARES, BRAGA e COSTA, 2002), discutimos como, a partir da pesquisa sobre relacões raciais em São Paulo, realizada por Roger Bastide e Florestan Fernandes, sob os auspícios da Unesco, nos anos 1950, desenvolveu-se um amplo campo de explicações teóricas relativas aos problemas do preconceito e discriminação raciais no Brasil. Consideramos que, a despeito de divergências entre os autores, as ideias ali germina- das tem certa complementaridade; criticamos visões reducionistas que associam Roger Bastide a um paradigma tradicional-culturalista de explicação das relações raciais, aproximando-o da interpetação de Gilberto Freyre, e atribuem a Florestan Fernandes uma confusão entre as ca- tegorias de classe e raça, explicando a desigualdade racial como resultante da pobreza e não do

No documento V E R A A L V E S C E P Ê D A THIAGO MAZUCATO (páginas 160-163)