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Identidade latino-americana e consciência do subdesenvolvimento

A questão da existência de uma identidade coletiva que sintetizasse ou exprimisse a condição latino-americana foi central e esteve presente em mais de um momento da vida intelectual e política deste continente. Des- de a proposição de Bolívar em 1819 – “no somos europeos, no somos índios,

sino una espécie média entre los aborígenes y los españoles” – reconheceu-se

como dilema fundamental da construção do Estado Nacional a tarefa de identificar as condições culturais do povo deste grupo de países de heran- ça colonial.

O momento da independência reforçou a reflexão sobre a identidade nacional, base sobre a qual repousaria a construção dos pactos políticos e das instituições. Martí assinalaria que “o bom governante na América não

é aquele que sabe como se governa o alemão ou o francês, mas sim aquele que sabe de quais elementos está constituído seu país” e como guiá-lo com

“métodos e instituições nascidas do próprio país” (Nuestra América, 1891). O que o século XIX enfrentava era a ruptura com as amarras coloniais e, nesse contexto de crise o debate sobre quem somos se torna chave do problema nacional.

A importância do binômio identidade/nacionalismo é o contexto da emancipação dos países latino-americanos, em luta contra o passado (lega- do ou fardo?) e em busca do autêntico. Um dos temas, e talvez o mais ra- pidamente percebido nesse contexto, versa sobre o “tipo humano base” no delineamento do povo e da nação partindo de uma percepção sobre o con- junto populacional heteróclito e heterogêneo (fraca base para a constituição de um demos ou de uma unidade nacional) e somente atingida, solucionada, em uma configuração inovadora – a da miscigenação (cabeça branca, corpo

mestiço de índio e de crioulo, conforme Martí, 1891). Em grande parte da

América Latina o povo não estava pronto antes da formação da nação e do Estado nacional independente. Ao contrário, em muitos países foi tarefa da centralização política a construção da identidade nacional (caso exemplar do Brasil). Não poderíamos percorrer, assim, a trajetória liberal-burguesa clássica apontada pelo modelo europeu, em que as transformações da so- ciedade e do mercado impulsionaram um novo desenho para o Estado. Na situação tardo-periférica a opção ocorreu pelo projeto antecipando as trans- formações, modelo que culminou, ao fim da primeira metade do século XX,

na via da modernização planejada2. Na fórmula da Revolução Burguesa, as

estruturas sociais mudaram e exigiram a transformação das instituições ao seu ethos – a síntese política deste modelo seria a de um vetor apontando “da

sociedade para o Estado”, de inclinação liberal3. A segunda forma é bastan-

te diversa: calcada na fragilidade da sociedade, tem que acionar a vontade política e a ação do Estado para provocação/promoção das condições de modernidade. Sua síntese política seria a de um vetor apontando “do Estado

para a Sociedade”.

Assim, a América Latina teria, por sua herança colonial e situação periféri- ca, que viver a situação de “mudança orientada” mais de uma vez4 laborando

um pressuposto profundamente enraizado na mentalidade social de “cons- trução social pelo alto”. Duas grandes questões emergem deste contexto, am- bas muito profícuas para a entrada e assimilação das teses mannheimianas:

– a primeira é a percepção da história como construção, como es- colha de trajetórias e arranjos ideacionais distintos, com o pro- cesso de modernização emergindo não de condições naturais (o

livre mercado na economia como promotor do progresso material

e social; e a sociedade civil forte antes do desenho das instituições políticas e do Estado), mas como projeto que emerge das condi- ções do passado e possibilita uma configuração histórica precisa - tensa e premida entre permanecer ou mudar (tensão ideologia

versus utopia - segundo as próprias categorias mannheimianas);

– a segunda, como sequência lógica, é que se algo foi construído, sua forma foi pensada, ideacionada como utopia e operacionalizada pelas formas do pensamento social.

Derivados destes dois pontos, a experiência histórica da América La- tina reconheceu o peso das ideologias, ancoradas em diagnósticos que explicam o presente pela interpretação do atraso legado pela confluên-

2 E em período anterior na inclinação para fórmulas como o idealismo orgânico apontado por Vianna (1939) e descrito como linhagem na obra de Brandão (2007).

3 Cf. Barrington Moore (1975) em Origens Sociais da Ditadura e da Democracia, e Florestan

Fernandes (2005) em A Revolução Burguesa no Brasil.

4 Na fase inicial de formação dos Estados nacionais independentes e posteriormente na orientação para modernização urbano-industrial.

cia do passado5, que postulam grandes teorias ou sínteses históricas ela-

boradas por um conhecimento que se quer técnico, intelectual e preciso, produzido por uma intelligentsia que entende a ciência como ferramenta necessária para a mudança social6. Nesse repertório de ideias vemos temas

importantes da tese de Mannheim, em especial a função assumida pelos intelectuais com vocação pública e o planejamento/racionalização como parte de atuação do conhecimento produzido pelas ciências humanas:

A conexão de sentido, que nos compelia a ver nossos papéis na sociedade brasileira, à luz da responsabilidade intelectual ativa, crítica e militante (...) todo sociólogo digno desse nome deve saber ajustar-se à situação e, em con- sequência, sua capacidade de contribuir para o conhecimento sociológico de uma realidade tão imperativa. (Fernandes, 1976b: 34)

Na tradição intelectual brasileira essa percepção da função prática da ciên- cia e de sua capacidade de transformação orientada da realidade, bem como o papel protagonista dos intelectuais, ganhou várias denominações: sociolo- gia engajada, intelectual engajado, intelectuais públicos, entre outros. E esta posição dada aos intelectuais embora surgindo pelas condições próprias da história política e dos arranjos do universo acadêmico encontrou na tese da

intelligentsia mannheimiana apoio e reforço progressivo para sua ação no in-

terregno nacional-desenvolvimentista. Acentuou esse encontro o peso que a tese do planejamento e do progresso enquanto construção da vontade e fer- ramentas políticas desempenhou no período. A função do conhecimento, aliado à técnica da transformação social, os dilemas do controle social e da de- mocracia – todos presentes nas formulações de Mannheim (enquanto tensão radical entre ciência e política)7 – eram, no momento brasileiro da dobradinha

teoria do subdesenvolvimento versus projeto desenvolvimentista, terreno fér- til para recepção e uso da obra do sociólogo húngaro-alemão.

5 “Este pendão aparece capturado no idealismo orgânico, originalmente postulado no momento

da independência e novamente acionado com força no período nacional desenvolvimentista. Esta linhagem, ressignificada em cada momento diante das condições históricas específicas (momento colonial versus industrialização travada), tem uma gramática única, já enraizada no debate in- telectual e político latino-americano, mudando apenas a natureza do problema (mas mantendo intacto o modelo de sua resolução)” (Cepêda, 2013: 1014).

6 Cf. Pécaut (1990).

As principais teses de Karl Mannheim não somente encontraram uma acolhida na produção de autores nacionais (como é o caso de Florestan Fer- nandes e de Celso Furtado, apenas para exemplificar) como também aden- traram à própria história política brasileira, estando presentes nos principais debates intelectuais entre os anos 1940 e 1970 (como veremos mais a frente neste texto).

Observando mais detidamente a presença de Mannheim na produção intelectual de Florestan Fernandes, foi através da perspectiva analítica ofe- recida pela Sociologia do Conhecimento de Mannheim, que foi possível a Florestan fazer um uso crítico e criativo para compreender a racionalidade da ação política dos diversos grupos e classes no Brasil, num embate permanente entre forças mais progressistas e outras mais conservadoras ou reacionárias. As teses mannheimianas sobre a função social da ciência e o papel da intelli-

gentsia permitiram que Florestan incorporasse à sua proposta de construção

objetiva do conhecimento científico (período de forte institucionalização e legitimação das ciências sociais no Brasil) um viés prático do destino social do

conhecimento. Por fim, mas não de menor importância, poderíamos mencio-

nar a presença, na obra de Florestan, da tese mannheimiana do planejamento racional, que se constituiu em argumento fundamental para o momento polí- tico brasileiro dos anos 1950 em diante, no qual dois grandes pilares da teoria social contemporânea encontraram uma síntese: por um lado diagnóstico da realidade nacional, resultante de prática científica, portador de objetividade e neutralidade e, por outro lado, o planejamento enquanto instrumento para superação do subdesenvolvimento em sociedades periféricas. O fato é que Florestan encontra no conceito mannheimiano de planificação racional uma das chaves para a superação do atraso através de vias democráticas.

A seguir apresentaremos alguns elementos importantes de diálogo, recep- ção e ressignificação do repertório temático de Karl Mannheim, como aqueles que apontamos anteriormente, nas obras de Florestan Fernandes.

Ciência, intelligentsia e democracia – elementos do diálogo entre Florestan