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A reconstrução da imaginação sociológica: política e contestação nas ciências sociais

No documento V E R A A L V E S C E P Ê D A THIAGO MAZUCATO (páginas 154-160)

Até o presente momento a exposição esteve voltada para reconstruir as críticas dos dois pensadores, Wright Mills e Florestan Fernandes, relativas a vertentes hegemônicas das ciências sociais produzidas fundamentalmen- te nos Estados Unidos em meados do século XX. Como parte da lógica da dependência cultural, tais vertentes tiveram forte influência em países da América Latina, Ásia e África. Um elemento importante dessa crítica – que timidamente apenas se insinua em Mills, mas está presente em Florestan Fer- nandes com bastante força – é o que as ciências sociais representam para os cientistas sociais situados no Terceiro Mundo. Nem a Grande Teoria nem o empirismo abstrato apresentam tal preocupação, pois o valor dos seus méto- dos e conceitos reside justamente na capacidade de transcender as particu- laridades de cada sociedade e momento histórico. Para Mills, ao contrário, a história das sociedades ocidentais alcançou uma dimensão tal que os seus problemas se tornaram “problemas mundiais”, fazendo com que os cientistas sociais tenham incorporado como objeto de estudo os “países subdesenvol- vidos” (Mills, [1959]2000: 150). No caso de Fernandes, a situação das ciên- cias sociais nos países subdesenvolvidos da América Latina sempre fez parte de seus horizontes políticos8 (Fernandes, 1976). Nas perspectivas de Mills e

Fernandes, que se aproximam bastante quanto às ideias sobre o modo como as ciências sociais devem ser praticadas, a verdadeira sociologia deve assu- mir dimensões históricas e comparativas. Além disso, o sociólogo não pode esquecer que suas inclinações teóricas e de método recebem diversos influ- xos de suas posições ideológicas e visão de mundo política. Em alguns casos, isso impede que certas determinações históricas como a realidade dos países subdesenvolvidos sejam levadas em conta, a exemplo do que ocorre com a Grande Teoria e o empirismo abstrato. Outras vezes a influência ideológica faz com que o cientista social se coloque como problema as consequências 8 No âmbito da Geografia, preocupação semelhante à de Florestan Fernandes é apresentada por Milton Santos em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo ([1978]2009). Há um forte paralelo entre as críticas de Santos aos métodos e teorias em algumas vertentes da Geografia e as críticas de Mills e Fernandes ao fetichismo dos conceitos na Grande Teoria e ao empirismo abstrato no campo da Sociologia. Um interessante trabalho seria comparar as ideias de Milton Santos e Florestan Fernandes sobre o assunto em suas respectivas disciplinas.

de sua atuação política para o tipo de pesquisa e de trabalho teórico por ele desenvolvido. A verdade é que incluir comparações históricas e intenções políticas no trabalho do cientista social foge aos padrões acadêmicos habi- tuais de se pensar a teoria sociológica. Em especial, o sociólogo será acusado de assumir uma atitude militante e desprezar a postura científica em nome de convicções ideológicas. As considerações de Mills e Fernandes sobre a imaginação sociológica, livre das inibições teóricas e metodológicas de acei- tação acrítica e defesa da ordem social, são muito semelhantes, porém assu- mem tons políticos distintos. A diferença entre ambos é que, para Florestan Fernandes, a liberação da imaginação sociológica e o cultivo de uma ciência social verdadeiramente autônoma e, por isso, plenamente desenvolvida em seus potenciais teóricos, metodológicos, práticos e empíricos, não seriam um mero ato de libertação intelectual (limite que Mills não consegue ultrapas- sar, devido a seu radicalismo abstrato e à sua vinculação com a utopia liberal), mas dependeriam da própria transformação das condições imperantes sob o capitalismo monopolista e oligopolista. Uma sociedade com ampla participa- ção democrática, pautada na livre utilização das ciências sociais para fins de planejamento e melhoria das condições de existência de grandes parcelas da população, não será possível nos quadros da apropriação privada dos meios de produção e da acumulação de capital.

As críticas de Mills à Grande Teoria e ao empirismo abstrato são ao mes- mo tempo epistemológicas e políticas. O esforço de conceituação geral e abs- trata, sem relações diretas com o mundo social real, à maneira de uma socio- logia formal, no caso da Grande Teoria (leia-se: Parsons), e a coleta de dados quantificáveis sem um propósito definido de determinar seus vínculos com a estrutura e a história, no âmbito do empirismo abstrato, acabam por conduzir o sociólogo a uma aceitação passiva, e muitas vezes inconsciente, do sistema social e do status quo vigente. O trabalho teórico e o empírico são apartados numa cômoda especialização acadêmica, fragmentando-se aspectos da reali- dade social que estão indissociavelmente interligados. A abstração de com- ponentes do mundo histórico e social conduz a vieses e generalizações apres- sadas, provocados por motivos ideológicos inconscientes ou pela cegueira conceitual respaldada em diferentes tradições sociológicas. Por essas razões Mills realiza a crítica da especialização fragmentária das ciências sociais e propõe uma perspectiva de integração, em que indivíduo, cultura, sociedade e história não estejam dissociados do esforço de interpretação nos projetos de

pesquisa dos investigadores sociais. “[...] o homem é um ator social e histórico que deve ser compreendido na sua intricada interconexão com a estrutura so- cial e a história” (Mills, [1959]2000: 158). Na qualidade de autêntico pensa- dor liberal, Mills percebe na sociedade contemporânea as ameaças aos valores clássicos da liberdade e da razão. As questões fundamentais de nossa época dizem respeito a esses dois valores e à sua crescente ameaça com o surgimento de uma sociedade de massas, na qual os indivíduos são manipulados e seus problemas particulares são vistos como apartados das questões públicas. Essa será a ponte que Mills irá traçar com o político. O papel do cientista social será o de fortalecer a esfera pública dos debates, de modo a contribuir para que os indivíduos se tornem conscientes das forças históricas que estão em choque no seio da estrutura social. Em outras palavras, o papel crítico do cientista social seria o de um verdadeiro educador, cujo principal objetivo seria ajudar os indivíduos a se tornarem autoconscientes de suas próprias escolhas e alter- nativas no ato de construir a história. “A tarefa política do cientista social é – como a de um educador liberal – continuamente traduzir questões pessoais em assuntos públicos” (Mills, [1959]2000: 187). Os indivíduos, ao sentirem que as causas de seus problemas particulares possuem suas raízes no contexto mais abrangente das transformações históricas e sociais, poderiam lutar para se libertarem da condição de “robôs felizes” (Cheerful Robot), manipulados pelo trabalho de propaganda numa sociedade de massas, e participarem ati- vamente na esfera pública pela edificação de uma sociedade democrática. A tarefa política central do sociólogo, que não poderá ser realizada por meio das inibições teóricas e metodológicas do empirismo abstrato (Mills, [1959]2000: 189), é lutar pela democracia, por mais que a sociedade realmente existen- te esteja muito longe de preencher os ideais democráticos. “A estrutura so- cial dos Estados Unidos não é em qualquer sentido democrática” (Mills, [1959]2000: 188). No entanto, o “sociólogo autônomo” deve agir como se as condições da democracia estivessem dadas e participar do debate público de modo a criticar os rumos das decisões políticas, incitando os indivíduos a contestarem tais decisões levando em conta o lugar que cada categoria de pessoas poderá desempenhar para defender seus valores, sua liberdade e suas próprias escolhas. “[...] nós agimos como se nós estivéssemos numa socieda- de completamente democrática, e agindo assim, estamos tentando remover esse ‘como se’”. Logo em seguida Mills irá concluir: “nós [cientistas sociais autônomos] estamos tentando tornar a sociedade mais democrática” (Mills,

[1959]2000: 189). O sociólogo que trabalha sob esse ponto de vista político deve estar teórica e metodologicamente preparado para estabelecer os múlti- plos nexos entre indivíduo, sociedade e história, evitando especializações es- tanques nas ciências sociais e assumindo as dimensões ideológicas presentes em suas categorias de análise, de modo a tornar explícitos os objetivos políti- cos de suas investigações empíricas. Nos limites dos horizontes liberais, essa visão de sociologia seria uma das mais avançadas, assumindo muitos pontos de contato com uma perspectiva socialista também radical.

Apesar de sua radicalidade política a toda prova, Mills parece idealizar essa esfera pública e às vezes denota certa nostalgia de um passado inexisten- te, como se tal esfera livre de debates tivesse existido alguma vez no passa- do dos Estados Unidos, uma sociedade marcada pela escravidão e pela fome mercantil da expansão territorial e de domínio de outros povos. Uma das li- mitações da visão de mundo liberal seria não perceber os vínculos entre as correntes de pensamento e o mundo da exploração, limitando-se ao exame do poder de pequenos grupos e/ou elites. O todo, como uma rede complexa de múltiplas interações, não é apreendido. Essa rotação de perspectiva foi avan- çada por Fernandes, como já visto, em A natureza sociológica da sociologia (1980). Não haveria mais espaço para destrinchar toda sua visão das ciên- cias sociais, mas ela coincide em muitos aspectos com aquela perfilhada por Wright Mills, apesar das nítidas discrepâncias ideológicas existentes entre os dois autores. Para Fernandes, a especialização estanque seria um grave pro- blema para o sociólogo, que deveria buscar os horizontes teóricos e metodo- lógicos das demais ciências sociais a fim de aprofundar o conhecimento da história e da sociedade. De igual modo, suas críticas à pretensa neutralidade nas ciências sociais o conduzem à afirmação da importância política do en- volvimento do sociólogo nos processos de mudança social. Na perspectiva socialista de Florestan Fernandes, contudo, esse envolvimento estaria vincu- lado aos objetivos políticos de destruição da ordem capitalista e construção de uma sociedade sem classes. Tal tomada de posição levaria à impossibilida- de de uma perspectiva objetiva nas ciências sociais? Trata-se de uma postura militante e não científica? Para Fernandes, não, pois a sociologia se tornaria ainda mais objetiva, dado que o esforço do intelectual trabalhando do lado da “polaridade revolução” seria por alcançar um balanço o mais completo possível da situação de luta política e de confronto entre as diferentes classes, grupos e categorias sociais, sem dogmatismos doutrinários e com a necessi-

dade de realizar a síntese de distintos campos do conhecimento. Concorde-se ou não, essa era a visão de Florestan Fernandes! Por fim, os dois pensadores detinham a concepção de que o trabalho teórico nas ciências sociais, para que ele possa cumprir as promessas da sociologia clássica, sendo uma delas o de- sejo de atuar na sociedade tornando-a mais justa e democrática, não poderia ser tomado como um fim em si mesmo, mas como um produto diretamente vinculado às atividades de investigação. Nesse sentido, a análise conceitual dos sociólogos clássicos e modernos mais fundamentais seria um trabalho preliminar à construção de teorias!

Referências bibliográficas

COLLINS, Randall. (2009). Quatro tradições sociológicas. Petrópolis: Vozes.

FERNANDES, Florestan. (1976). A sociologia numa era de revolução social. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar.

. (1980a). A natureza sociológica da sociologia. São Paulo, Ática. . (1980b). A sociologia no Brasil. Petrópolis, Vozes.

FERNANDES, Heloísa Rodrigues. (1985). Mills, o sociólogo-artesão. In: FERNAN- DES, Heloísa Rodrigues (org.), Wright Mills. São Paulo, Ática.

HOROWITZ, Irving Louis (org.). (1969). Ascensão e queda do projeto Camelot. Rio de janeiro: Civilização Brasileira.

MILLS, Wright. ([1959]2000). The sociological imagination. New York: Oxford Univer- sity Press.

. (1961). A verdade sobre Cuba. Rio de Janeiro: Zahar.

. (2009). Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar.

SANTOS, Milton. ([1978]2009). O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. 5. ed. São Paulo: EdUSP.

Aristeu Portela Júnior1

Eliane Veras Soares2

No documento V E R A A L V E S C E P Ê D A THIAGO MAZUCATO (páginas 154-160)