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PARTE I – COLONIALIDADE DO SABER

PARTE 3 COLONIALIDADE DO SER

BREVE INTRODUÇÃO À PARTE 3

“Uma mulher da colônia é uma metáfora da mulher como colônia”. (BONNICI, 1998)

Nesta parte abordamos os aspectos da colonialidade do ser, complementando nossa análise da colonialidade do saber e do poder, para concluir a tarefa investigativa desses três processos de colonização que conformam a construção do conhecimento, a consolidação de determinadas instituições e as subjetividades dos indivíduos. Analisamos de maneira aprofundada a trajetória profissional de Regina Casé, buscando compreender os processos e efeitos de sentido que mostram a perversão do projeto colonial que ainda hoje é estrutural. Destacamos, portanto, que, por mais que a responsabilidade pelos resquícios coloniais não seja especificamente da artista em questão, sua atuação funciona em prol de sua manutenção, de forma intencional ou não. Seguimos analisando a trajetória de Regina Casé tanto na televisão quanto no cinema, agora não só como apresentadora, mas também como atriz e artista em sua face pública, pensando como tais performances estão atravessadas e inter relacionadas. Ressaltamos alguns programas comandados por ela na Rede Globo, quadros no Fantástico, filmes protagonizados pela mesma, entrevistas nas diversas mídias, aparições públicas, posicionamentos políticos não partidários etc, contendo discursos e/ou declarações relevantes, que servem de conteúdo para exemplificar nossas hipóteses.

Destacamos através de alguns elementos como a atriz e apresentadora tem construído sua face pública em diversos aspectos, principalmente através de entrevistas e publicações em redes sociais, tais como figurino pessoal, questões familiares e sua fruição cultural, importantes indicadores do lugar de mediadora e construtora de pontes interculturais em que a mesma se coloca. Analisaremos, portanto, as diversas faces dessa figura “camaleoa”.174 É importante lembrar que diversas pesquisas dentro dos

estudos da cultura e da comunicação pelo Brasil já abordaram a temática dos programas

174 Referência à música Rapte-me camaleoa, que Caetano Veloso fez em homenagem à Regina Casé. Letra completa disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44768/> Acesso em: 17 mai. 2018.

158 de Regina Casé com focos distintos175, destacando em alguma medida seus trabalhos artísticos, o que nos permitiu fazer um mapeamento sobre os trabalhos relacionados de alguma maneira à apresentadora e seus programas, para utilizar como referências176. Então apresentamos de forma geral sua trajetória e destacamos alguns momentos que contribuem para a construção das performances, já que o foco desta pesquisa não é a biografia detalhada da apresentadora177, mas sim suas performances como mediadora na televisão. Para tanto, trazemos também alguns exemplos de matérias, reportagens, palestras e repercussões na mídia de maneira geral, fazendo a análise deste conteúdo, que corrobora com suas performances de atriz e apresentadora, atualizando constantemente o caráter de mediação em seus trabalhos e reforçando sua circulação por territórios diversificados.

No quinto capítulo desta tese, intitulado Breves apontamentos teóricos - as categorias de biografia, trajetória, performance e fachada, as descrições de alguns pontos desta trajetória estão atravessadas pelas discussões teóricas de Gilberto Velho ao pensar a trajetória e a biografia relacionadas aos conceitos de memória, identidade e projeto; Pierre Bourdieu e suas reflexões sobre a ilusão biográfica; Paul Ricoeur e a narrativa, com sua tessitura da intriga; e Erving Goffman e a representação do eu na vida cotidiana, além da construção da face pública e a ideia de fachada. Trazemos ainda informações relevantes da apresentadora no item 5.1 Quem é Regina Casé? - Elementos de uma ilusão biográfica, complementada pela análise de um episódio do Esquenta! exibido em 2015, no qual se comemorou o aniversário da mesma, que intitulamos 5.2 Rapte-me camaleoa, e finalizamos esse capítulo com uma reflexão sobre algumas publicações da artista nas redes sociais em 5.3 Construção da face pública: uma breve análise do perfil no Instagram.

175 Minha monografia (2011) e dissertação (2015) desenvolvidas na Universidade Federal Fluminense tiveram o programa Esquenta! como objeto de pesquisa e são utilizadas aqui como referências. A dissertação de Sarah Nery Siqueira Chaves, defendida na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007), que posteriormente foi publicada como livro, também é uma referência significativa para esta tese. Além dessas, outras pesquisas já realizadas e/ou disponíveis na internet (artigos, monografias, dissertações, teses etc) foram utilizadas como consulta, por exemplo: Ludmila Nogueira Ferreira (IFRJ Nilópolis, 2017), Edinaldo Araujo Mota Junior (Universidade Federal da Bahia, 2016).

176 A maioria dos trabalhos e artigos realizados mais recentemente abordam o último programa apresentado por Regina Casé, o Esquenta!, discutindo a questão das favelas, das periferias, da cultura popular, do preconceito, da representação, da classe C, do Núcleo Guel Arraes na Rede Globo, do samba, do funk, da identidade, da brasilidade etc. Ver mais em Google Acadêmico e Academia.edu.

177 Além de pesquisas já realizadas, as informações aqui organizadas vieram de consultas aos sites: <http://www.reginacase.com.br/> - <https://pt.wikipedia.org/wiki/Regina_Cas%C3%A9> e <http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/regina-case/trajetoria.htm> Acesso em 17 mai. 2018.

159 Os capítulos seguintes estão divididos metodologicamente por três pilares da interseccionalidade: classe, gênero e raça, a serem explicados posteriormente. No capítulo seis, o enfoque está na questão de classe, seguindo uma declaração importante de Regina Casé178: “Tenho essa cara de pobre”, além de considerar a música de abertura do programa Esquenta!, intitulada Samba da Regina (2011), no item 6.1 “Alô Regina! É tão gente fina que sabe chegar em qualquer esquina, lá na cobertura, na laje ela está; sua participação na cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016 no item 6.2 “Rainha da diversidade” e seus personagens populares em filmes brasileiros principalmente (Eu, Tu, Eles; Made in China e Que horas ela volta?) no item 6.3 “Eu observei isso a vida toda”, comentando ainda seus últimos trabalhos como atriz no filme Três verões (2019), de Sandra Kogut, e na novela Amor de mãe (2019), de Manuela Dias e José Villamarim, nos quais interpreta duas trabalhadoras domésticas, Madalena e Lurdes, respectivamente, atuando como governanta e babá.

No capítulo 7, a atenção principal está na questão de raça, pensando nessa figura que é “meio branca, meio preta, meio nordestina”, analisando algumas relações étnico- raciais estabelecidas pela mesma ao longo de sua trajetória profissional e pública no item 7.1. “Sou um preto de 16 anos”; destacando entrevistas mais recentes sobre sua relação com seu filho negro no item 7.2 “É branca, índia, parda e negra”, e sobre ser considerada branca no Brasil no item 7.3 Recital da Onça - De camaleoa à onça.

No capítulo 8, a discussão se dá prioritariamente na questão de gênero, debatendo como a atriz “não ia fazer a mocinha da novela”, analisando as relações de maternidade expostas ao público no item 8.1 Mãe de Benedita e Roque, avó de Brás; além de comentar sua construção de figurinos no item 8.2 Regina Casé veste; no item 8.3 “Não tenho mais idade”, discutimos os padrões de comportamento impostos às mulheres mais velhas; finalizando com o item 8.4 Possibilidades de futuro através da decolonialidade, que aponta para novas perspectivas epistemológicas.

Iniciamos com uma abertura sobre a colonialidade do ser e a metodologia da interseccionalidade. Ao longo desta parte, evitamos ao máximo uma leitura binária, tensionando, portanto, as contradições e ambivalências e seguindo a abordagem crítica

178 A frase completa é “Tenho essa cara de pobre, meio branca, meio preta, meio nordestina, eu não ia

fazer a mocinha da novela” (CHAVES, 2012). Tal declaração de uma entrevista para revista em 2006 foi ressaltada no trabalho de Sarah Nery Chaves e é retomada aqui no intuito de atualizar as diversas discussões que a mesma suscita. Em outra entrevista de 2003, a pesquisadora ressalta outra frase que corrobora com esse posicionamento: “Isso me ajudou a ser a criadora que sou hoje. Se eu quisesse ser a Malu Mader, a mocinha da novela, não daria porque tenho cara de nordestina. Isso me forçou a criar um lugar, a construir um caminho peculiar” (CASÉ apud CHAVES, 2012, p. 29).

160 dos estudos pós-coloniais, decoloniais e das feministas negras179. O método utilizado para tanto é o da interseccionalidade, considerando gênero, raça e classe, principalmente, mas também apontando para outras intersecções como territorialidade, religiosidade, sexualidade, geracionalidade, dentre outras. Priorizamos as referências do feminismo negro e chicano para embasar teoricamente essas temáticas dialogando com a proposta da descolonização do pensamento, a ser discutida na conclusão desta tese.

179 Há uma variedade de autoras e autores que debatem essas temáticas com pontos de convergência e discordâncias, escolhemos algumas de acordo com o contato mais recente e o interesse pelas mesmas nos últimos anos de doutorado, influenciada diretamente pela experiência do estágio docente para a graduação em Estudos de Mídia em 2017, pela participação no GRECOS em 2018 e pelo trabalho como professora substituta no Departamento de Artes e Estudos Culturais do Centro Universitário de Rio das Ostras UFF em 2019.

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ABERTURA - A colonialidade do ser e a metodologia da interseccionalidade

Entendemos a colonialidade do ser não apenas como um conjunto de reminiscências dos processos de colonização, mas também como estruturantes da sociedade em que vivemos, pois essas relações arraigadas ao projeto colonial se dão no cotidiano afetando não só o momento presente, mas também a memória do passado vivido e a projeção do futuro possível. Por isso, é importante discutir como essa colonialidade influencia continuamente a vida dos sujeitos nos mais variados aspectos, temática abordada pelos intelectuais do Grupo Modernidade/Colonialidade, mencionados no início desta tese.

A colonialidade do ser envolve a introdução da lógica colonial nas concepções e na experiência de tempo e espaço, bem como na subjetividade. A colonialidade do ser inclui a colonialidade da visão e dos demais sentidos, que são meios em virtude dos quais os sujeitos têm um senso de si e do seu mundo. Uma exploração da colonialidade do ser, portanto, requer uma averiguação da colonialidade do tempo e espaço, bem como da subjetividade, incluindo a colonialidade do ver, do sentir e do experienciar (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 43-44).

Nos interessa, portanto, analisar algumas formas pelas quais a colonialidade do ser se manifesta nas subjetividades e na sua relação com o tempo e o espaço, pensando como são diversas as maneiras de dominação que transcendem a construção dos saberes e poderes, afetando diretamente também as possibilidades do ser. Diante de tal complexidade, escolhemos manter a perspectiva crítica que utiliza a interseccionalidade como ferramenta analítica fundamental para fugir dos debates superficiais e caminhar para além do modismo intelectual que se apropria das pautas identitárias, mas continua reproduzindo todas as formas de colonialidade em consonância com o sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno europeu (GROSFOGUEL, 2002).

Contrariamente ao que afirma a perspectiva eurocêntrica, a raça, a diferença sexual, a sexualidade, a espiritualidade e a epistemologia não são elementos que acrescem às estruturas econômicas e políticas do sistema-mundo capitalista, mas sim uma parte integrante, entretecida e constitutiva desse amplo “pacote enredado” a que se chama sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno europeu (Grosfoguel, 2002). O patriarcado europeu e as noções europeias de sexualidade, epistemologia e espiritualidade foram exportadas para o resto do mundo através da expansão colonial, transformadas assim nos critérios hegemônicos que iriam racializar, classificar e patologizar o restante da população mundial de acordo com uma hierarquia de raças superiores e inferiores (GROSFOGUEL, 2008, p. 124).

162 Pensar a interseccionalidade significa complexificar o debate e tensionar determinados aspectos em busca de uma análise mais ampla que não se encerra aqui, mas que, como ferramenta teórico-metodológica, se coloca cada vez mais necessária rumo à descolonização do pensamento. Desfazer o mito do homem universal, mostrando como cada ser social está posicionado de acordo com seu contexto político, social, econômico, cultural, familiar, é um dos seus grandes méritos enquanto contribuição epistemológica, já que embaralha as dinâmicas de quem sempre pôde enunciar seus modos de ser e estar no mundo.

Importante demarcar que esse conceito relativamente recente é proveniente dos inúmeros debates do feminismo negro tanto brasileiro quanto dos Estados Unidos desde os anos 1970/80 até os dias de hoje, principalmente na figura de intelectuais como Lélia Gonzalez, Angela Davis, Sueli Carneiro, Patricia Hill Collins, Audre Lorde, bell hooks, Kimberlé Crenshaw, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Grada Kilomba, dentre outras. Os embates acerca do termo são muitos180 e não adentraremos de maneira aprofundada

por não ser esse o escopo deste capítulo, mas é preciso mencionar que um dos dilemas que envolvem o conceito seria o peso e a importância que se dá para cada um dos recortes de análise, hierarquizando gênero, raça e classe, dependendo do seu “lugar de fala” (RIBEIRO, 2017).

Apesar do termo ter sido cunhado oficialmente no contexto dos EUA pela professora de direito Kimberlé Crenshaw em 1989 em um caso de processo judicial de mulheres negras contra a empresa General Motors, sua utilização enquanto teoria e prática já se dava em trabalhos anteriores a essa época, como nas obras de Lélia Gonzalez no Brasil181 e Angela Davis nos EUA182. Fazendo uma breve recuperação teórica, ressaltamos os trabalhos dessas intelectuais, que mesmo antes do termo ser cunhado, já desenvolviam suas pesquisas nas ciências sociais e na filosofia

180 Algumas teóricas feministas utilizam o conceito de consubstancialidade desenvolvido por Danièle Kergoat desde os anos 1970, que discute relações sociais e divisão sexual do trabalho no âmbito dos estudos de gênero. Nos filiamos politicamente ao feminismo negro e às discussões sobre interseccionalidade por um posicionamento ideológico a favor da descolonização do pensamento. Nesse sentido, não entraremos nessas disputas por ser uma referência europeia, já que neste capítulo priorizamos as teóricas do sul global em função dos processos de descolonização.

181 A autora cunhou o termo amefricanidade enquanto categoria político-cultural, debatendo a Améfrica

Ladina a partir das interações entre o Brasil, país pertencente à América Latina, mas que tem grande parte de sua formação populacional e cultural dos países de África.

182 Apesar de Mulheres, Raça e Classe ter sido publicada em português em 2016 pela Boitempo, essa obra de Angela Davis foi lançada nos EUA em 1981, demonstrando a vanguarda de seu pensamento.

163 considerando as categorias de gênero, raça e classe ao debater as relações sociais de maneira complexificadora183.

Para entender o percurso dessa perspectiva interseccional, utilizamos o livro de Carla Akotirene, intitulado Interseccionalidade, relançado em 2019, valorizando a produção de conhecimento das intelectuais negras brasileiras, enaltecendo a relevância da Coleção Feminismos Plurais organizada por Djamila Ribeiro184. Isso não significa de maneira alguma que reduzimos nosso debate à representatividade, pois, mesmo entendendo sua importância simbólica, sabemos que são inúmeras suas limitações185.

Sobre a consolidação do termo, destacamos Kimberlé Crenshaw, que, em um vídeo do TED (publicado em 2016 e que conta com mais de 300 mil visualizações no link original em inglês), intitulado A urgência da interseccionalidade186, relata o encontro com Emma DeGraffenreid e explica de maneira didática um processo judicial em que mulheres negras que estavam processando a empresa automobilística General Motors pela discriminação de raça e gênero que sofriam, ao não serem contratadas nos processos seletivos, tiveram sua acusação indeferida pelo tribunal.

A petição se deu por conta do preterimento de mulheres negras nas contratações de homens negros e mulheres brancas como funcionários da General Motors, que alegou não discriminar por raça por contratar pessoas negras, nesse caso, homens; e por

183 Para saber mais sobre as trajetórias dessas intelectuais e ativistas, ver a dissertação de Raquel Barreto intitulada Enegrecendo o feminismo e feminizando a raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez (PUC-Rio, 2005).

184 Por mais que não concordemos integralmente com a filósofa e colunista da Folha de São Paulo, Djamila Ribeiro é uma relevante intelectual brasileira do feminismo negro contemporâneo, que vem divulgando os debates sobre gênero e raça, principalmente, através das redes sociais (especialmente Instagram), das aparições em programas de grande alcance na televisão, de palestras em eventos e da venda de livros em linguagem e preços mais acessíveis do que o usual, realizando lançamentos com filas extensas de autógrafos e repercussão considerável. Além de Lugar de Fala (2017), da Coleção Feminismos Plurais, Djamila Ribeiro lançou pela Companhia das Letras as obras Quem tem medo do feminismo negro? (2018) e Pequeno Manual Antirracista (2019).

185 Aproveitamos para questionar, por exemplo, a crítica de algumas pesquisadoras ao marxismo e às obras de Karl Marx como sendo despreocupadas com a questão da escravidão ou das relações raciais. Esse posicionamento é recorrente no senso comum sem que se aprofunde com argumentos a partir do trabalho marxiano, nesse sentido, apontamos Jones Manoel em seu livro Revolução Africana - Uma antologia do pensamento marxista (2019), que afirma ter havido um apagamento histórico das trajetórias de líderes revolucionários anti racistas no quesito classe, ou seja, com a luta anticapitalista. Alguns dos exemplos mais sintomáticos disso são Angela Davis e Frantz Fanon, que, apesar de estamparem camisetas de militantes, sequer são reconhecidos como comunistas por parte da militância. Destacamos esse ponto para ressaltar como as práticas neoliberais se apropriam das pautas identitárias reduzindo o caráter revolucionário a um ícone ou produto, inclusive dentro dos movimentos ditos progressistas de esquerda, seja em entrevistas ou pesquisas acadêmicas. Outro exemplo a ser citado é o de Frida Kahlo, artista militante comunista e feminista com trajetória fundamental não só para o México como para o mundo todo, muitas vezes reduzida a frases de efeito e estampa de produtos industrializados.

186 TED The Urgence of Interseccionality. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=akOe5- UsQ2o&t=18s> Acesso em: 8 jan. 2020.

164 gênero ao contratar mulheres, nesse caso, brancas. Ao fazer uma analogia com o trânsito, Kimberlé, que se declara feminista, antirracista e pesquisadora de leis antidiscriminatórias, explica como se dão as intersecções ou cruzamentos entre o que ela chama de ruas identitárias, que divide a força de trabalho em gênero e raça, para exemplificar a funcionalidade do conceito de interseccionalidade.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (KRENSHAW, 2002, p. 177).

Incluindo no debate interseccional a questão da violência policial contra mulheres negras nos EUA, Crenshaw reafirma que não podemos resolver um problema que não enxergamos, por isso a importância de se nomear o que pretendemos combater, demarcando as intersecções de gênero e raça, principalmente. Ainda segundo a autora, no texto Porque a interseccionalidade não pode esperar187, o conceito é útil para pensar

outras realidades que não apenas as das mulheres negras.

Interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, uma maneira de pensar sobre a identidade e sua relação com o poder. Articulada originalmente em favor das mulheres negras, o termo trouxe à luz a invisibilidade de muitos cidadãos dentro de grupos que os reivindicam como membros, mas que muitas vezes não conseguem representá-los. O apagamento interseccional não é exclusivo das mulheres negras. Pessoas negras ou de outras raças/etnias dentro dos movimentos LGBT; meninas negras ou de outras raças/etnias na luta contra o sistema que empurra os jovens da escola para a cadeia; mulheres nos movimentos de imigração; mulheres trans dentro dos movimentos feministas; e as pessoas com deficiência lutando contra o abuso policial — todas essas pessoas sofrem vulnerabilidades que refletem as interseções entre racismo, sexismo, opressão de classe, transfobia, capacitismo e muito mais. A interseccionalidade deu a muitas dessas pessoas uma forma de destacar as suas circunstâncias e lutar por sua visibilidade e inclusão (CRENSHAW, 2015).

Vale destacar que tal perspectiva reforça que os indivíduos não têm as mesmas oportunidades, ou seja, partem de lugares diferentes, o que faz com que possamos derrubar em alguma medida o mito da meritocracia, que alega que apenas se esforçando

187 Texto Porque a interseccionalidade não pode esperar, por Kimberlé Crenshaw. Disponível em:

<https://blogueirasfeministas.com/2015/10/05/porque-a-interseccionalidade-nao-pode-esperar/> Acesso em: 8 jan. 2020.

165 bastante seus objetivos serão alcançados. Concordamos que existem diversas opressões que vão além das categorias básicas de gênero, raça e classe, como sexualidade, territorialidade, religiosidade, capacidades motoras etc. e que não existe necessariamente uma hierarquia entre elas já que não é possível combatê-las