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O comércio, como atividade claramente indissociável do fato urbano, sempre teve

interferência na ordenação da cidade, contribuindo para a conformação das principais áreas funcionais urbanas. (PROCOPIUCK; DJALO, 2008, p. 316).

3 O COMÉRCIO E A CIDADE NO CONTEXTO DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

A cidade e o comércio constituem duas realidades indissociáveis, historicamente, produzidas a partir das relações sociais. No processo de desenvolvimento e reprodução do capital, a cidade ganha novos contornos, implicando em sua reconfiguração e redefinição política, econômica, social e espacial. O segmento comercial das cidades, no contexto das mudanças socioeconômicas e espaciais advindas da necessidade de reprodução do capital, é revestido de novos conteúdos e formas, tornando mais complexa, a relação estabelecida entre essas realidades dialéticas. Sob o viés de que a cidade e o comércio não podem ser compreendidos separadamente, esta abordagem debruça-se sobre a coexistência verificada no processo de produção da cidade e de efetivação das relações comerciais.

A sessão está dividida em três partes. Na primeira, a discussão trata da relação entre cidade e prática comercial na perspectiva de coexistência. Ressalta-se a ideia de que, numa relação dialética, ao mesmo tempo em que a cidade influência nas formas de comércio, estas desempenham papel fundamental na produção e reconfiguração espacial urbana. Nesse sentido, inicialmente discute-se os conceitos de comércio tradicional e moderno, enfatizando- se que formas pretéritas e atuais de comercializar se inserem na redefinição e reconfiguração das cidades.

Na segunda parte, que contempla o contexto da reestruturação produtiva, nos apropriamos das contribuições teóricas acerca do novo momento vivenciado pela sociedade urbana capitalista a partir da década de 1970. Essa revisão bibliográfica, além de descrever esse novo período de acumulação do capital, contextualiza as novas facetas do comércio e sua repercussão na organização e dinâmica das cidades. Nessa perspectiva, analisa-se a nova configuração do setor de comércio, marcada pelo processo de internacionalização das empresas nacionais desde meados do século XX, que se intensificou a partir dos anos 1990.

Por fim, são tratados os processos de modernização e reestruturação do comércio nas cidades brasileiras, marcados pelo surgimento de novas formas comerciais, pela inovação das técnicas de venda e pela mudança nos padrões de consumo da sociedade. São reflexões que perpassam a relação entre as grandes estruturas comerciais de distribuição e o pequeno comércio numa perspectiva de confronto e de resistência, na qual o primeiro não elimina o segundo por completo, mas provoca-lhes grandes mudanças, levando-o a criar estratégias para permanecer efetivamente no mercado e subsistir diante dessa luta acirrada promovida pelos grandes e modernos equipamentos comerciais.

3.1. A indissociabilidade entre cidade e comércio

A ocupação e a utilização de uma dada parcela do espaço por um grupo social ocorre a partir da necessidade das pessoas em satisfazer seus desejos. LEFEBVRE (2000). Assim, pode-se dizer que a materialização da força de trabalho usada na produção do espaço resulta, principalmente, das funções realizadas pelos grupos inseridos na sociedade. É o espaço, socialmente produzido, resultado de uma sequência e de um conjunto de operações. O espaço, nessa perspectiva é um produto, historicamente construído por meio das relações estabelecidas entre os próprios homens e estes com meio natural num dado momento. LEFEBVRE (2000).

Inseridos em um mesmo processo de formação e constituição da sociedade, o comércio e a cidade estabelecem entre si uma relação de dependência e complementariedade, na qual, ao mesmo tempo em que a cidade produz as formas comerciais, estas assumem um importante papel na produção e na dinâmica urbana. Para Barreta (2012, p. 16), “as cidades e o comércio são duas realidades indissociáveis”. Historicamente, a prática comercial está intimamente vinculada às relações sociais que se dão cotidianamente, tornando-se parte integrante do modo vida urbana. (SILVA, 2014).

Sobre a relação de coexistência estabelecida entre a prática comercial e a cidade, Diniz (2012, p. 25-26) afirma que este tema já foi debatido por importantes estudiosos como Ortigoza (2010); Salgueiro e Cachinho (2009); Vargas (2000); Fernandes (2000). Para o referido autor (2012, p. 25), “o comércio, atividade econômica de origem milenar, sempre desempenhou um papel relevante na formação e no desenvolvimento das primeiras sociedades urbanas”.

Segundo Lefebvre (2008, p. 20), como uma prática socialmente realizada nas cidades “as relações comerciais são indispensáveis à sobrevivência como a vida”, sendo o comércio considerado uma importante atividade para a promoção de riqueza e dinâmica urbana. Portanto, o comércio é gerador de fluxos e dinâmicas socioespaciais que se dão em diversas intensidades e escalas. Para Donne (1979, p.19), “em nenhum tipo de civilização a vida citadina se desenvolveu independente do comércio ou da indústria: não houve nunca exceção a esta regra, quer nos tempos antigos, quer na época moderna”.

Colaborando com essa assertiva, Freire (2010, p.17), coloca que “as trocas, o comércio e os mercados existem na vida econômica da sociedade as mais diversas, pelo menos desde os tempos primitivos”. Ainda conforme esta autora (2010), na Idade Média os

mercados não se limitavam apenas às relações de compra, troca e venda. Também serviam como o ponto de encontro e animação das pessoas.

Assim, historicamente, a atividade comercial se remodela e se reconfigura na medida em que a própria sociedade estabelece as formas e os padrões para o seu funcionamento.

Para Soja (1993), as primeiras evidências de relações comerciais entre grupos humanos surgem há aproximadamente mais de 40.000 anos quando os grupos humanos ainda estavam organizados em forma de assentamentos isolados. Acerca das relações de troca de produtos, Soja (1993, p. 53) aponta que “cada vez has más evidencias acerca de la existência de algún tipo de comercio conciertos artículos, tales como sal e piedra, para la produción de herramientas y ornamentos”.

Barreta (2012), em seu estudo acerca da atividade comercial tradicional em Portugal, tratou da influência dessa prática na formação do centro das urbes. Ao se referir à origem dos mercados e das feiras nos aglomerados de pessoas, o referido autor (2012, p. 17) faz a seguinte afirmação:

Remontam aos finais do século XI algumas referências a Mercados, sendo de finais do século XII as primeiras Feiras, as quais tinham lugar junto aos Castelos e / ou Mosteiros Fortificados. Por motivos que a História também já nos deu a conhecer, seriam estes os locais mais propícios à realização de Mercados e Feiras, podendo-se apontar duas ordens de razões plausíveis. Por um lado, tratava-se de um local privilegiado de encontro das populações (fosse residente ou forasteira) e, por outro, seria talvez o local mais seguro para efetuar as transações, dada a sua centralidade. Era em torno destes núcleos que depois se viriam a desenvolver concentrações e aglomerações populacionais, dando origem, muitas delas, a povoações de maior ou menor dimensão.

Acerca da presença de mercados e das galerias comerciais nas praças centrais das cidades, Lefebvre (2008) afirma que foi apenas no Ocidente europeu, no final da Idade Média, que a mercadoria, o mercado e os mercadores penetraram triunfalmente na cidade. Segundo o autor (2008), no século XIV, acreditava-se ser suficiente estabelecer um mercado e construir lojas, pórticos e galerias ao redor da praça central das cidades, os quais passariam a atrair novos comerciantes e consumidores para o lugar.

A prática comercial é parte integrante no processo de produção espacial da cidade. Entretanto, sua forma não é estática, sendo submetida a transformações ao longo do tempo. É possível afirmar que “o comércio se problematiza dentro do processo de reprodução do espaço geográfico, tornando-se condição e produto para a reprodução das relações de

produção que se estabelecem entre os homens na sua prática cotidiana.” (SILVA, 2014, p. 155).

Considerando que é nas cidades onde se desenvolvem os principais meios de produção, pode-se afirmar que nelas se iniciam as práticas mercadológicas. As cidades são produtos sociais que se caracterizam por meio das condições gerais estabelecidas em si e, que envolve todas as esferas da produção e reprodução do capital. Para Carlos (2005, p. 46):

Do ponto de vista do produtor de mercadorias, a cidade materializa-se enquanto condição geral da produção (distribuição, circulação e troca) e nesse sentido, é o locus da produção (onde se produz mais-valia) e da circulação (onde esta é realizada). Assim entendida, a cidade é também o mercado (de matérias-primas, mercadorias e de força de trabalho); as atividades de apoio à produção (escritórios, agências bancárias, depósitos, etc.). Todavia, como o processo é concentrado, a cidade deverá expressar essa concentração.

O desenvolvimento e a evolução da cidade estão intimamente relacionados à prática comercial. Conforme Carlos (2005), sendo o lócus da produção, a cidade constitui-se geradora de outras atividades econômicas. Assim, a distribuição, a circulação e o consumo enquanto elementos constituintes do sistema produtivo partem, primeiramente, da cidade. Nessa perspectiva, ressalta-se a importância do comércio enquanto uma atividade produtora e modeladora do espaço urbano. Sobre essa discussão, Pintaudi (1999) afirma que o comércio revela a evolução do espaço urbano e das práticas de consumo da sociedade.

A atividade de troca, de venda e consumo existe e acontece no dia-a-dia dos citadinos. São ações que, ao mesmo tempo em que animam a vida, se inserem como práticas relevantes na produção espacial da cidade. Conforme Salgueiro (1989, p. 153) afirma que “o comércio desempenha uma importante função social, promovendo o convívio entre as pessoas e animação dos lugares, para além de ser um elemento decisivo na estruturação do espaço”.

As práticas comerciais assim como suas formas de funcionamento e organização no espaço sofrem alterações ao longo do tempo. Entretanto, mesmo sujeitas a tais mudanças, às relações de troca e venda de produtos sempre estiveram presentes nas cidades, atuando como importantes meios de socialização das pessoas, despontando como “partes constitutivas do modo de vida urbano”. PINTAUDI (1999, p. 144).

Acerca da dialética entre o novo e o tradicional, Gomes (1996, p. 29) aponta que: A tradição não significa uma permanência defasada e refratária a qualquer mudança. O mesmo pode ser dito para o novo, o qual não deve nos conduzir a considerar que se trata de um movimento em permanente e completa mutação. Existem tradições no novo e novidades no tradicional.

No contexto da produção, da organização e da dinâmica das cidades, as dimensões das diversas formas comerciais que vão desde o formato das lojas até o seu significado, considerando as formas de venda, os tipos de comerciantes, as estratégias de gestão e a localização dos estabelecimentos repercutem no modo de viver da sociedade.

O comércio tradicional e moderno pode ser comparado a partir das características que são inerentes a tipologia. Fernandes (2000, p. 11) considera que:

O aparelho comercial tradicional é formado por pequenos estabelecimentos generalistas ou especializado na oferta de um número reduzido de produtos afetos a ramos de atividades específicas. Pelo contrário, o aparelho comercial moderno, decorrente da revolução comercial, caracteriza-se, simultaneamente, pela diversidade de formatos e pela grande dimensão de algumas unidades.

Ao abordar a dinâmica do comércio no contexto urbano, Fernandes (2000) afirma que antigas e novas formas comerciais (Quadro 02) diferenciam-se através da estrutura e do modo de funcionamento dos equipamentos. Estas são dimensões desse segmento econômico atreladas às técnicas de venda e a capacidade de atrair consumidores.

Quadro 02- Características do Comércio Tradicional e Moderno