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Capítulo 5. Relações EUA-China: geopolítica ou globalização?

5.2. Comércio

A primeira dimensão das relações econômicas a ser examinada sob a óptica das dinâmicas da geopolítica e da globalização é a comercial. Nesse campo, os principais aspectos a serem considerados são: o aumento da importância relativa dos EUA para a China como parceiro comercial e vice-versa; o aumento do desequilíbrio no comércio bilateral (com superávits crescentes para a China e déficits correspondentes para os EUA); a mudança na composição das exportações da China para os EUA, em direção a produtos de maior valor agregado. Ao analisar cada um desses aspectos, é preciso tomar em conta a perspectiva norte-americana e a perspectiva chinesa e, em cada uma, avaliar o peso da geopolítica e da globalização.

Como foi visto no capítulo anterior, em quatorze anos (1994-2008), as exportações dos EUA para a China aumentaram 650%. Nesse período, o mercado chinês deixou de representar 3,6% das vendas externas norte-americanas para corresponder a 5,4%. Nos mesmos quatorze anos, as exportações em sentido contrário aumentaram 770% e a China passou a fornecer 16,1% das importações norte-americanas, saindo de 10,7%. A China é o segundo parceiro comercial, o maior fornecedor e o terceiro maior mercado para os EUA; os EUA são o principal parceiro comercial, o quarto fornecedor e o maior mercado para a China. Medida pela intensidade das trocas comerciais, a interdependência sino-americana é elevada e crescente.

Esse processo não aconteceu à revelia dos governos dos EUA e da China. Em realidade, ações (e omissões) específicas desses governos contribuíram de forma decisiva para a sua intensificação. Da parte da China, a continuidade das reformas iniciadas em 1978, a determinação em aceder à OMC e as políticas explícitas e implíticas de promoção às exportações em geral, e às exportações para o mercado dos EUA em particular, são algumas das iniciativas governamentais sem as quais a trajetória observada da interdependência comercial em relação aos EUA não se estabeleceria. Adicionalmente, a política cambial de paridade quase fixa dólar-renminbi mantida de 1994 até 2005 (e desde então substuída por uma flutuação bastante contida) estimula desproporcionalmente os laços comerciais com os EUA, na medida em que mitiga o elemento de incerteza cambial para os agentes econômicos nos dois países. Assim, pode-se concluir que a política comercial da China favorece, claramente, o aumento dessa interdependência.

Da parte dos EUA, a ação governamental mais relevante em matéria comercial no início do século XXI foi a conclusão das negociações para a acessão da China à OMC. No terreno das omissões, a lista de medidas anti-China explicitamente cogitadas, mas não adotadas, é longa: retirada do status de NMF, determinação de prática de manipulação cambial, imposição de tarifas unilaterais, adoção de salvaguardas têxteis82. A despeito da existência de vozes no meio político, nas comunidades de defesa e inteligência, na academia, na mídia, no

82

A imposição de salguardas específicas sobre pneus chineses importados – comentada anteriormente – foi percebida por muitos, no primeiro momento, como indicativa de mudança da postura da Administração Obama em relação às práticas comerciais da China. A despeito de exacerbada reação da parte chinesa e de receios de especialistas de que a medida poderia tornar-se a primeira em uma série de ações anti-China a ser adotada por Washington, dois meses depois do anúncio da decisão do Presidente norte-americano não se tem notícia de “efeito multiplicador/demonstração” provocado pelas referidas salvaguardas. É muito cedo, contudo, para se afirmar que o episódio foi um fato isolado e não o primeiro sinal de inflexão da política comercial do Partido Democrata em relação àquela praticada por George W. Bush.

empresariado e nos sindicatos que favorecem maiores restrições nas relações comerciais bilaterais (como sanções unilaterais e aumento das restrições à exportação de produtos contendo tecnologia avançada), a resultante da política comercial dos EUA tem contribuído para o aumento do comércio bilateral e da interdependência entre os países.

A dinâmica dos atores não-estatais mais relevantes, em ambos os países, é ainda mais favorável ao aumento da interdependência. A “normalização” do marco institucional das relações bilaterais liberou forças econômicas contidas, principalmente, pelo regime de propriedade e de comércio exterior vigente na China maoísta. Com isso, a manifesta complementaridade das economias dos EUA (com capital físico e humano abundante) e da China (rica em mão-de-obra) pôde reverter-se em imenso volume de comércio.

A economia política do processo merece destaque. Nos EUA, os déficits comerciais permitem aumento substancial do poder de compra dos consumidores e correspondem, em geral, a transferência de renda do setor de bens (comercializáveis) para o de serviços (não-comercializáveis). Na China, desenvolve-se dinâmica simetricamente oposta, com os superávits equivalendo a transferência de renda do setor de não-comercializáveis para o setor de comercializáveis e com o poder aquisitivo da população sendo mantido em patamares artificialmente deprimidos. Este último aspecto, em princípio negativo, é considerado preço modesto pago pela China para manter a estabilidade do crescimento do PIB, uma vez que, no pasado, a demanda externa mostrou-se mais consistente de que a demanda interna para absorver o aumento acelerado na produção chinesa de bens industrializados. O resultado desse processo é que se constituíram grupos de interesse complementares nos EUA e na China, que limitam

mudanças radicais na política econômica desses países capazes de resultar em ajuste acelerado quer da posição amplamente deficitária dos EUA quer da posição amplamente superavitária da China (FRIEDEN, 2009).

Desse quadro descritivo simplificado, pode-se inferir que a crescente interdependência comercial sino-americana aumentou em função da coincidência de iniciativas governamentais, nos dois países, com a operação de forças econômicas não diretamente relacionadas a essas iniciativas. Aceita essa conclusão, cabe inquirir quanto ao papel da geopolítica e da globalização no processo.

Como foi visto no capítulo 3, os imperativos geoestratégicos dos EUA são: (1) manter a hegemonia na Américo do Norte e no hemisfério ocidental, o que inclui evitar a instalação de grandes potências extracontinentais nas Américas; (2) manter a supremacia naval global, o que depende, no mundo contemporâneo, da proteção a sistemas de informação e navegação instalados no espaço exterior; (3) impedir o controle da Eurásia por uma potência (ou aliança de potências) rival.

No curto prazo, a China não representa ameaça a nenhum desses imperativos geoestratégicos dos EUA. No médio e longo prazos, contudo, a manutenção do elevado dinamismo econômico poderia ensejar: (1) intensificação das relações da China com países da América Latina e Caribe, que poderiam evoluir para alianças de impacto estratégico; (2) aumento do poderio naval chinês a ponto de reduzir a supremacia naval dos EUA, em primeiro lugar no Leste Asiático e, no futuro mais distante, em outras regiões; (3) predominância econômica e política da China na Ásia Central, região considerada historicamente pelos teóricos da geopolítica como a “heartland” da Eurásia (MACKINDER, 1904; BZERZINSKI, 1997).