• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3. A geopolítica dos EUA e da China e suas implicações econômicas

3.2. A geopolítica da China e suas implicações econômicas

3.2.4. A geoestratégia da “ascensão pacífica”

Nesta seção, foram analisados os fenômenos centrais para a atual conjuntura geopolítica da China, com destaque para a evolução do quadro regional (que inclui as tensões na península coreana, a relação bilateral com o Japão e a questão taiwanesa) e para a questão da vulnerabilidade energética do país. Mencionou-se, também, o tema da instabilidade social latente, resultante principalmente dos desequilíbrios gerados pelo crescimento econômico acelerado. Cabe refletir, neste ponto, sobre a geoestratégia da China contemporânea e suas implicações.

A forma como a China enuncia a sua emergência reitera o perfil relativamente baixo que o país tem procurado manter em diferentes foros internacionais. A “ascensão pacífica” chinesa reflete um discurso de potência emergente muito menos questionador da ordem internacional de que os de potências emergentes de outras épocas. Exemplos destes últimos são a

“Weltpolitik” da Alemanha pós-Bismarck, a doutrina Monroe, com o corolário

Roosevelt do “Big Stick”, dos EUA e a doutrina Amau do Japão militarista da primeira metade do século XX. O melhor paralelo histórico para a doutrina da “ascensão pacífica” é, no entanto, a “Realpolitik” de Bismarck, do período 1871- 1890, que anunciava a Alemanha como uma “potência satisfeita” (KISSINGER, 1995; NIANLONG, 1990).

Esse paralelo provoca algumas reflexões. Em primeiro lugar, por que a China adota um discurso e uma prática mais cautelosa de que o Japão, a Alemanha pós-bismarckiana e os EUA adotaram nos momentos históricos mencionados; ou, expresso de outra forma, por que a China de hoje se comporta mais como a

Alemanha do Chanceler Bismarck de que como a Alemanha do Imperador Guilherme II? Em segundo lugar, é possível prever se ocorrerá no futuro uma transição da atual “Realpolitik” para uma “Weltpolitik” chinesa, com consequências semelhantes àquelas que a versão germânica trouxe para a Europa e para o mundo?

Para se analisar a primeira questão, é preciso comparar as circunstâncias em que operavam o Japão de Tojo, os EUA de Ted Roosevelt e a Alemanha de Guilherme II com aquelas em que operou Bismarck depois da Guerra Franco- Prussiana e em que opera a atual liderança chinesa. Nos três primeiros exemplos, as potências emergentes já tinham alcançado um patamar de produção industrial, coesão social e capacidade militar (efetiva ou potencial) superior à de seus rivais regionais. Para completar, não havia no ambiente internacional de então um ator extra-regional capaz de conter a assertividade dessas potências. Para os EUA do início do século passado, as vitórias sobre o México e a Guerra Civil no século XIX colocavam o país na condição de poder incontrastável na América do Norte. No caso alemão, a produção industrial e tecnológica, a demografia e a disciplina militar faziam do IIº Reich o ator mais poderoso da Europa continental ao final do mesmo século. No Japão, não só a dinâmica interna, mas também o colapso do principal rival regional, a China, permitiam o exercício de uma política externa agressiva (HOBSBAWN, 1988).

Em contraste, a Alemanha de Bismarck encontrava-se em posição bem menos favorável. A coesão interna da recém-unificada nação precisava ser aprofundada por medidas internas; o poder militar, a despeito do formidável desempenho contra a Áustria-Hungria e a França, requeria momento de consolidação depois de anos de mobilização; a produção industrial ainda tinha que

ganhar terreno para aproximar-se da Inglaterra. Apesar dos problemas enfrentados pelas três outras forças continentais, Rússia, França e Império austro-húngaro, a Alemanha ainda não estaria preparada para enfrentar uma grande guerra de coalizões. Ademais, a Inglaterra ainda gozava de posição amplamente favorável, que a possibilitaria arbitrar segundo suas opções estratégicas o desfecho de um grande choque que ocorresse ainda no terceiro quarto do século XIX (HOBSBAWN, 1988; KISSINGER, 1995).

Também a China contemporânea enfrenta estritos limites regionais para uma política externa mais agressiva. Movimentos de Pequim em direção a uma postura confrontacionista teriam por resposta previsível o alinhamento de diversas outras forças regionais em uma coalizão antichinesa, com a possível exceção da Rússia.

Para completar, é preciso tomar em conta fatores globais e internos. Em primeiro lugar, a ordem internacional contemporânea tem em seu ápice um ator político que está em patamar superior aos demais nos campos econômico, militar e tecnológico: os EUA. Não parece razoável supor que, em caso de ações agressivas de Pequim, os EUA se esquivassem de cerrar fileiras com o Japão, Taiwan ou a Coreia do Sul.

Outro fator geopolítico relevante é a vulnerabilidade energética da China. De grande exportador até o começo da década de 1990, a China transformou-se no segundo maior importador mundial de petróleo. Uma vez que rotas terrestres de suprimentos (como oleodutos e gasodutos ligando o país às ricas fontes de hidrocarbonetos da Ásia Central e da Sibéria) não existem ainda e que a Marinha de águas profundas da China é relativamente débil, o país permanece dependente de terceiros para a proteção de suas rotas marítimas de abastecimento. Em um

cenário de confronto, a China sofreria de escassez de combustível incontornável no curto prazo (LOHBAUER, 2003; COOPER, 2008).

Do ponto de vista interno, a RPC está longe de ser um país coeso. As desigualdades sociais e regionais, a emergência de uma classe média sem participação política e os crescentes vínculos entre agentes econômicos domésticos e estrangeiros seriam fatores explorados em um contexto de enfrentamento. Esses fatores domésticos e sistêmicos somam-se à dinâmica regional para explicar a postura atual da China. Para as elites dirigentes chinesas, o foco de curto e médio prazo é o fortalecimento do país.

Esse diagnóstico leva à segunda questão formulada acima: “é possível prever se ocorrerá no futuro uma transição da atual “Realpolitik” para uma “Weltpolitik” chinesa?”. Embora a resposta a esta pergunta mereça um estudo, de natureza especulativa, só para si; é possível apresentar uma sugestão de resposta com base, mais uma vez, em uma comparação simplista entre a Alemanha de fins do século XIX e a China que se projeta para as próximas décadas.

Quando Bismarck deixou o poder em 1890, a Alemanha era uma potência que maximizara seus recursos humanos e físicos internos (o PIB per

capita alemão era um dos maiores do mundo), atingindo o que seria, na concepção

da época, o ponto de saturação de suas potencialidades domésticas. Assim, a expansão colonial ou continental era vista como o único caminho de manutenção da trajetória ascendente. A China, ao contrário, mesmo que mantenha as atuais taxas de crescimento, levará décadas para alcançar o nível de prosperidade per

capita de nações de alta renda. Assim, o país poderá sustentar a trajetória de

desenvolvimento acentuadamente positiva por todo o próximo século sem que se precise expandir, fisicamente, para além de suas fronteiras.

É verdade que os recursos naturais relativamente escassos da RPC poderiam ensejar disputas em torno de seu controle, mas, se mantida a lógica do mercado global, continuará sendo muito mais barato comprar esses recursos de que conquistar as suas fontes. Nesse sentido, a “ascensão pacífica” tem bons prognósticos de ser um processo longo e, em última análise, benéfico para a prosperidade mundial. Isso não significa que a China é uma potência essencialmente benévola, mas sim que a conjuntura geo-histórica em que está inserida condiciona a sua emergência nessa direção (FRANK, 1998).

Nessas condições, podem-se identificar os seguintes imperativos geoestratégicos da China contemporânea: (1) manter a coesão social e a unidade política de seu núcleo demográfico (províncias centrais e orientais); (2) controlar regiões periféricas que aumentam sua profundidade estratégica (Tibet, Xinjiang, Mongólia Interior e Manchúria); e (3) proteger suas províncias litorâneas contra penetração ou invasões estrangeiras. Como meta de longo prazo, pode-se acrescentar (4) a mitigação da vulnerabilidade energética, por meio do incremento do poderio naval; esse objetivo deve ser visto, no entanto, em perspectiva dinâmica (i.e., o aumento dos investimentos chineses em sua marinha de guerra pode estimular outros países a responder com esforço correspondente). Para promover cada um desses imperativos, o foco de curto e médio prazo das autoridades chinesas é fortalecer a economia, aumentar a densidade tecnológica da indústria nacional e estimular a produção científica no país. No capítulo 5 abaixo, será analisado como esses imperativos podem ser enxergados à luz do aumento da interdependência sino-americana nos planos comercial, financeiro e produtivo.

Capítulo 4

As relações econômicas EUA-China no início do século XXI