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Parte 6: Documentário

2.2 COM ANAÍZA, NAS MESMAS ÁGUAS

Entre 1962 e 1965, enquanto Vicente Salles trabalhava nas pesquisas da CDFB e aguardava a Universidade do Brasil conceder-lhe o direito de concluir o curso de Antropologia, a então estudante Anaíza Vergolino (Figura 26), em Belém, fazia sua graduação em História, na Universidade Federal do Pará.107 Entre 1964 e 1965, ela foi aluna, e depois bolsista, do professor Arthur Napoleão Figueiredo (1923–1989), titular da cadeira de Etnologia e Etnografia do Brasil, do curso de Antropologia, naquela Universidade, no início dos esforços pelo estabelecimento de pesquisas em Antropologia na instituição.

Cursando a disciplina Etnologia e Etnografia no Brasil, ministrada por Figueiredo, interessou-se pelo tema das religiões negras, cuja bibliografia reunia

os cânones da época: Arthur Ramos, Edison Carneiro, Roger Bastide, Melville Herkovits, René Ribeiro, Waldemar Valente, Ulisses Pernambucano, Octávio Eduardo. Ainda que

107 Anaiza conta, em entrevista a esta pesquisadora, em 3 de outubro de 2013, que pretendia estudar Geografia,

mas como não foi oferecido o Vestibular em 1964, ela teve de concorrer na área de História, mesmo não sendo o curso de sua predileção.

Figura 26: Anaíza Vergolino na sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, que hoje preside © Rose Silveira.

tentasse enquadrá-la nas investigações em etnologia indígena, que era seu domínio, o professor Napoleão Figueiredo concordou em acolher o objeto de pesquisa da jovem aluna bolsista, preparando o Projeto Batuques de Belém, a primeira linha de pesquisa sobre o negro na UFPA. “[...] de certa forma eu me negava a dar continuidade aos estudos de Arqueologia e Etnologia indígena, ramos tradicionais das pesquisas antropológicas do MPEG [Museu Paraense Emílio Goeldi], nos quais o Prof. Napoleão havia sido treinado”, escreveu Anaíza (2008, p. 17).108

As leituras despertaram-lhe a curiosidade sobre casos semelhantes aos mencionados naquela bibliografia e que a levavam à “descoberta de um outro mundo”, o das casas de culto em Belém, que passavam por um processo de institucionalização.

Acho que naquela época eu já estava mordida pelo vírus da pesquisa e do conhecimento. Então, conhecer outro mundo que não era o meu mundo. Hoje em dia é muito diferente, porque as casas de culto estão na mídia, os pesquisadores e seus objetos têm o mesmo estatuto, porque são profissionais liberais, têm escolaridade de terceiro grau. Naquele momento não era assim. A visibilidade era muito pequena, em primeiro lugar. Os cultos, após 64, diga-se de passagem, tinham sofrido uma pressão muito grande do governo militar que se instalou – quando é fundada a Federação Espírita Umbandista dos Cultos Afro-brasileiros do Pará. Então, esses cultos viviam assim, à margem, à sombra, na periferia, na periferia espacial mesmo. Era preciso ouvir a polifonia das cidades, ouvir outras vozes” (VERGOLINO, 3/10/2013).

Essas outras vozes falavam o que aquela bibliografia negava: a existência de uma cultura do negro singular, pura, que merecesse estudos sistemáticos. A grande investigação era a cultura indígena, como se sabe, e da cultura do negro se dizia “que havia se diluído”, indicando a hegemonia das linhas de pesquisa pelas sobrevivências africanas. “O grande entrave era esse”, aponta a antropóloga. “É inegável que o ethos cultural da Amazônia é indígena, mas isso não quer dizer que os negros não tenham tido uma participação grande. Era então negada, obscurecida”, afirma.109

Em 1966, buscando encontrar indícios da presença do negro na Amazônia e, quiçá, das religiões de matriz africana, ela se lançou à aventura de enfrentar a documentação do período colonial (século XVIII) que se amontoava num porão úmido e quase impenetrável da Biblioteca e Arquivo Público do Estado do Pará. Essa documentação era referente à administração pombalina na Amazônia e abrangia o tráfico de escravos e as atividades

108 O livro Nortes antropológicos: trajetos, trajetórias, organizado pelos professores Wilma Marques

Leitão e Raymundo Heraldo Maués, marca os dez anos de implantação do curso de mestrado em Antropologia da UFPA. Reúne relatos memoriais como o de Anaíza Vergolino.

socioeconômicas do negro no Pará. Sozinha,110 durante um ano ela fez o levantamento e transcrição (à mão, a lápis!!!) de documentos selecionados em 388 volumes de códices, totalizando 706 volumes consultados e de 48.816 documentos manuseados. Não havia sistema de microfilmagem à época no Arquivo e seu trabalho acabou por salvar os dados daqueles códices do desaparecimento. Muitos documentos realmente desapareceram por causa da falta de condições de armazenamento, como foi comprovado pela equipe da instituição, três décadas mais tarde.

Apesar da trabalheira, não foi nesse acervo que ela encontrou o que pretendia para relacionar as religiões de matriz africana com a presença do negro no Pará. Simultaneamente, com a colaboração de seu orientador, passou a frequentar os terreiros de umbanda de Belém, levantando dados, durante cinco anos, para os estudos que resultaram na dissertação de mestrado “O Tambor das Flores: uma análise da Federação Espírita Umbandista e dos cultos afro-brasileiros do Pará (1965–1975)”, defendida na Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do antropólogo Peter Fry, em 1976.111

Os primeiros resultados obtidos sob a orientação de Napoleão Figueiredo, de quem continuaria parceira na academia, foram apresentados em 1966, na VII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA/66), dentro da Programação do Simpósio sobre a Biota Amazônica, em Belém. Sob o título “Alguns elementos novos para o estudo dos Batuques de Belém”, em coautoria com Napoleão Figueiredo, aquela comunicação permitiu “o surgimento de um novo objeto e de uma nova linha de pesquisa no cenário da investigação antropológica local” (VERGOLINO, 2008, p. 22).

Foi através do professor Napoleão Figueiredo que Salles tomou conhecimento da pesquisa de Anaíza, quando esteve de passagem por Belém entre janeiro e fevereiro de 1968. A Coleção Vicente Salles, no Museu da UFPA, dispõe de um conjunto de correspondências entre os dois amigos, no período de 1968 e 1988, com evidentes descontinuidades, nas quais trocam informações sobre as venturas e desventuras do mundo acadêmico, livros, eventos, metodologia de pesquisa. Notificam um ao outro sobre envio de publicações. Também trocam informes mais pessoais, mas é, sobretudo, uma correspondência profissional, na qual vão percebendo as afinidades entre as pesquisas de

110 Em entrevista a mim concedida em 13 de janeiro de 2012, a professora Anaíza contou que, nesse

período, apenas um pesquisador norte-americano passou por lá rapidamente.

111 Anaíza dedicou-se longamente a esses estudos. No primeiro semestre de 1968, ela foi morar em Recife

para estudar os fenômenos do transe, do êxtase e da possessão, como estagiária do médico psiquiatra René Ribeiro, da Universidade Federal de Pernambuco.

Vicente e Anaíza, inclusive no título final que ambos deram ao trabalho. Pelas cartas, é possível perceber que só os subtítulos eram diferentes. Mas outras ocorrências selaram o destino das duas obras.

Em 10 de junho de 1970, Arthur Napoleão escreve a Salles informando, entre outras coisas, que

O trabalho final sobre a notícia histórica dos negros no Pará está terminado, aguardando-se publicação, pois é trabalho volumoso e está orçado em perto de 30 mil cruzeiros novos e com a poda orçamentária das instituições nacionais isso representa um rombo tremendo na faixa de publicações, de modo que estamos vendo se colocamos no exterior esse trabalho da Anaíza [...].

Em 1º de julho de 1970, Salles escreve ao amigo no Pará:

[...] Uma das coisas que lamento, quando aí estive, foi constatar que durante muito tempo caminhamos por vias paralelas, dispersando esforços. Para mim teria sido extremamente útil ter conhecido há mais tempo o seu trabalho e o da dra. Anaíza. Durante muito tempo dispersei-me querendo fazer música e literatura. Mas da música cheguei ao folclore e deste à antropologia. Espero haver-me encontrado finalmente. E por isso só agora me encontro com aqueles que devia ter procurado antes.

Meu ensaio sobre o negro no Pará, há muito concluído (em termos de trabalho imediato, claro) e aguardando publicação, é resultado de pesquisa histórica em arquivos por onde também me meti. E, portanto, sem o saber, eu e a dra. Anaíza viajamos no mesmo barco. Verdade que não contei com a experiência e dedicação de um mestre na matéria. Pode ver, por aquela publicação dos “Cadernos Brasileiros” (que, por sinal, foi mutilada pela supressão dos vários itens em que se dividia), a mostra parcial do que pretendi abordar e a tendência historicista que me absorve talvez por bem, talvez por mal. Se nos encontrarmos em alguns pontos, de qualquer forma espero que dois ensaios sobre o mesmo tema possam despertar a atenção de outros estudiosos brasileiros que veem a cultura negra apenas nas áreas tradicionais da lavoura extensiva e da mineração. O homem espalha cultura, já demonstrou Franz Boas [...]

Em nova resposta a Salles, em 12 de agosto de 1970, Arthur Napoleão faz uma reflexão sobre as sobreposições verificadas entre o trabalho de sua assistente e o de Salles, que, a um só tempo, dá conta: do estado da arte das pesquisas sobre o negro no Pará e o embate com a tradição da Etnologia Comparada de Arthur Ramos e sua continuidade na pesquisa de Edison Carneiro;112 e da orientação historiográfica a que Anaíza e Salles recorreram, mesmo partindo da pesquisa antropológica.

112 A propósito, em A presença africana na Amazônia Colonial, na seção “Percurso da pesquisa”, encontra-

se a seguinte nota: “O projeto denominado ‘Batuques de Belém’ fazia parte das atividades da Cadeira de Etnologia e Etnografia do Brasil, então sob a orientação do Prof. Napoleão Figueiredo e que tinha estudante bolsista e a seguir a Auxiliar de Ensino Anaíza Vergolino e Silva, como assistente de pesquisa. Olhando à distância e com uma visão crítica, o referido Projeto sofria muita influência da

A pesquisa é uma coisa interessante: quando começamos a trabalhar os cultos de Belém, alguma coisa apareceu de novo: entidades, sobrevivências etc. que não afinavam com os modelos clássicos de [Arthur] Ramos, Edson Carneiro, [Roger] Bastide, etc. Estava certo de que o documentário sobre negro na Amazônia estava totalmente destruído e que seria inútil realizar uma pesquisa no arquivo público. Anaíza insistiu e o trabalho teve que ser reformulado, pois fomos às fontes. A abordagem funcional estrutural sobre a qual estava montado o trabalho teve de valer-se uma outra: a histórica. A resultante foi a nota prévia já publicada e o trabalho definitivo aguardando editor. São perto de 300 e tantas páginas, onde todo material existente na BAP [Biblioteca e Arquivo Público] foi revirado até o fim do tráfico. Ela está agora desfiando o material que tem, para escrever os cultos propriamente ditos. Enquanto isso, você estava realizando sua pesquisa; o Nunes Dias a dele e um português António Carreira, nas fontes de Portugal e além-mar. No fundo, tudo vai dar certo.

Em correspondência trocada com Anaíza em 10 de julho de 1968 – documento também acessível na Coleção Vicente Salles –, Salles atesta o recebimento da comunicação “Alguns elementos para o estudo do negro na Amazônia”, aquele apresentado dois anos antes no encontro da ABA. “Já o li e posso dizer-lhe que o li com sofreguidão, pois a matéria também me seduziu”. Na continuação da carta, ele lamenta ter “ignorado” o trabalho dela e do professor Napoleão por tanto tempo, demonstrando interesse em colaborar com a pesquisa.

Vejo agora concretamente o resultado desse trabalho e quero levar-lhe meu aplauso e colocar-me à sua disposição se, eventualmente, desejar obter aqui no Rio alguma documentação que achar necessária. Tenho investigado as coleções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e mais tarde pretendo mergulhar no Arquivo Nacional e a seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, onde também há numerosas pistas que nos conduzirão ao assunto. Verifiquei ultimamente que, entre o Pará e o Maranhão, o porto de Itapicuru (até 1852 sob o controle da província do Pará) foi um porto de contrabando de escravos para ambas as províncias: por enquanto, nada me autoriza a dar excessiva importância ao fato; a documentação é escassa; as fontes obtidas são de segunda mão.

No Pará tive uma grande decepção: encontrei a Biblioteca em ruínas, teto caído, coleções amontoadas no chão, papéis rasgados e molhados. Felizmente você conseguiu manipular a tempo a coleção de códices e retirar as informações necessárias. Seu trabalho mostra as dificuldades dessa pesquisa.

Em resposta a ele, em 30 de agosto, Anaíza agradece-lhe as palavras, dizendo-lhe ser “justamente esse apoio que nos dão os colegas que nos estimulam a prosseguir nesses caminhos ásperos das ciências, que muitas vezes não nos levam às estrelas”. Ela informa que o trabalho deveria entrar em impressão em setembro, mas, pelas cartas de Napoleão Figueiredo datadas de 1970, sabe-se que não ocorreu. Anaíza explicou a Vicente que:

abordagem de Etnologia Comparada que caracteriza o trabalho de Ramos e seus seguidores” (VERGOLINO; FIGUEIREDO, 1990, p. 33).

O apêndice [...] será de transcrição de todo o material coletado [...] pois, como você, acreditamos que esse Arquivo não resistirá muito tempo, e pelo menos a parte de negro existente nos códices não ficará perdida.

Em 1971, como já foi narrado, O negro no Pará, de Salles, foi publicado pela UFPA em coedição com a Fundação Getúlio Vargas. Por causa disto, o livro de Anaíza, apresentado por Arthur Napoleão também à UFPA, na esperança de que a instituição o chancelasse, não foi aprovado para publicação pela reitoria, pois a temática era a mesma.

Sobre o episódio, Anaíza, que hoje é professora aposentada pelo Departamento de Antropologia da UFPA, avalia que foi um “paralelismo” entre seu trabalho e do Vicente Salles. “Eu não tinha

amadurecimento intelectual, acadêmico [na época] para pensar isso, em trabalhos paralelos. Eu simplesmente estava fazendo o meu trabalho e continuei fazendo o que eu queria. Era aquela aluna bolsista que estava descobrindo coisas”, relembra. Indagada se havia se entristecido com a recusa à publicação de seu trabalho, ela responde que não,113 pois não havia encontrado, na história, fontes para sua pesquisa.

Talvez eu tenha ido às fontes erradas. Então, esse percurso histórico, linear, eu coloquei entre parênteses, até porque eu fui para Campinas fazer o mestrado. Aí, sim, você poder falar em referencial teórico, porque eu estava no auge, no ápice da antropologia inglesa.114

Guardado por duas décadas, o livro (Figura 27) foi finalmente publicado em 1990 pelo Arquivo Público do Pará, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Pará (SECULT),115 com o título A presença africana na Amazônia Colonial: uma notícia

113 Entrevista de 3 de outubro de 2013. 114 Idem.

115 Essa publicação coincide com um período, entre as décadas de 1980 e 1990, quando a SECULT, através

de seu Núcleo Editorial, realizou uma série de publicações de autores paraenses, destacando-se reedições de clássicos da literatura produzida no Pará, a coleção Lendo o Pará. Vicente Salles foi consultor em diversas obras desta coleção, incluindo as que ele cita em suas pesquisas sobre o negro, como a de Juvenal Tavares, Serões da Mãe Preta, contos populares para crianças, publicada em 1990, em segunda edição.

Figura 27: Capa do livro de Anaíza, em coautoria com seu orientador, que faleceu antes da publicação.

histórica, assinado por Anaíza Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo – ele havia falecido um ano antes.

Este livro, fora de catálogo há tempos, tornou-se fonte de pesquisa obrigatória, um banco de dados, uma vez que a documentação original manuseada por Anaíza já estava perdida desde a década de 1980. De acordo com a professora, funcionários do Arquivo realizaram um cotejamento entre os dados constantes no livro e a documentação do acervo, e perceberam a defasagem entre um e outro.

Os acontecimentos daqueles anos de 1970 não abalaram a amizade entre Napoleão Figueiredo e Vicente Salles, que continuam a trocar correspondências contínuas. Mas uma carta do professor a Salles, em 29 de agosto de 1972, deixa entrever um certo desconforto em relação à semelhança no título, situação logo minimizada.

Quanto ao título de seu livro, na realidade coincidiu com o do trabalho de Anaíza. O Arthur Reis sabia disso, pois participou da 2ª Reunião de Professores de História à qual compareceu e onde o trabalho foi apresentado. Posteriormente esse trabalho foi publicado na Antologia da Cultura Amazônica, que você deve ter recebido, pois foi enviada uma separata. Isso não tem importância nenhuma, pois os subtítulos são diferentes. Parece que vai haver a oportunidade de publicar o trabalho completo, com os anexos, em Portugal, e o título será outro, fazendo-se evidentemente em rodapé a circunstância da publicação das notas prévias.

Salles também teve a oportunidade de inserir, já na primeira edição do livro, os agradecimentos aos pesquisadores pela atualização daquelas informações. E, no conteúdo, acrescentou dados da pesquisa de Anaíza quanto à procedência dos africanos que chegaram ao Pará. Ele e Anaíza continuariam, portanto, as trocas generosas. Ela, em seu livro, na revisão bibliográfica sobre os estudos do negro no Brasil, ressalta a existência de três trabalhos que, para ela, começaram a “reescrever a história do negro na Amazônia”:

São eles: “A Amazônia na Era Pombalina” (1963), de Marcos Carneiro de Mendonça; o trabalho de Manuel Nunes Dias (1970), “Fomento Ultramarino e Mercantilismo: a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão” (1755- 1778), e, finalmente, ‘O Negro no Pará sob o Regime da Escravidão”, de Vicente Salles (1971), que nos parece ser a fonte mais completa sobre o assunto. Não só pelo fato do livro revelar dados até então inéditos, mas porque ele reúne e sistematiza informações publicadas anteriormente sob a forma de pequenos ensaios, notas e separatas. Por se tratar de uma coletânea de ensaios, o livro tem algumas partes que são mais conclusivas. Outras, apesar de reconhecidas pelo Autor como sendo pobres de material elucidativo, mesmo assim são relevantes porque vêm estimulando a revelação de novas fontes e dados sobre a escravidão na Amazônia. Aliás, a própria temática do livro – História Social do Negro no Pará – começa a despertar o interesse dos pesquisadores da região [...] (VERGOLINO, 1990, p. 32).

Ela ainda escreveu o prefácio de O negro na formação da sociedade paraense, uma coletânea de textos complementares a O negro no Pará, publicado em 2004, reiterando a

importância da pesquisa do autor. Anaíza também deixou seu depoimento registrado no documentário do IAP em homenagem a Vicente Salles. Na ocasião do lançamento, fez a saudação a ele.

Na sua entrevista,116 avaliando o legado de Salles, ela destaca três pontos:

O que eu destaco é a capacidade de investigar, um investigador que ia ao mínimo do mínimo e tinha a capacidade de reconstruir vários fragmentos, como se fosse um tabuleiro, e escrever coisas interessantes. E nunca conheci uma pessoa que soubesse tanto das fontes menores, miúdas, mais escondidas, como o professor Vicente Salles. Em rodapé, em revistas, em notas, em autores que ninguém fala. E ele tinha essa capacidade de costurar tudo e apresentar uma leitura nova, que ninguém tinha percebido. A questão começa onde não se pensava e termina aqui, onde estou apresentando.

E também destaco isso: nunca vi uma pessoa tão desprendida do seu saber. Ele tinha isso, mas não entesourava, como alguns intelectuais entesouram suas fontes. E mais do que isso: se fosse necessário, até doava isso para quem precisasse. Isso é imorredouro na pessoa dele e até se coloca acima do que ele produziu. [...] A forma como ele construía, não precisava de grandes arcabouços e conhecimentos teóricos, tantas elucubrações, porque ele pegava os dados e mostrava coisas novas. E o homem que ele era, enquanto pesquisador, que era o reflexo da pessoa que ele era.

A pesquisa realizada sobre os batuques de Belém promoveu uma série de transformações na relação da UFPA com a comunidade, estimulando inclusive a realização de projetos de extensão. Exposições, cursos e encontros acadêmicos foram realizados, valorizando as casas de santo e seus líderes. Apesar disso, a professora Anaíza se manteve sozinha nos estudos sobre religiões afro até a década de 1990. Os demais estudos sobre o negro incidiam, segundo ela, sobre minorias étnicas relacionadas a classes sociais, com um viés marxista, não sobre religião. Com a Constituição de 1988, houve uma revalorização da cultura negra e um despertar para estudos mais amplos sobre o negro. De acordo com ela, foi necessário “encontrar o rosto do negro na sociedade” em associação à discussão que se abriu no país sobre direitos humanos e à obrigatoriedade do ensino da cultura negra.

A importância do trabalho de Anaíza, finalmente, pode ser percebida na expressão com a qual é reconhecida pelo pessoal do santo: “mãe da nossa memória”.