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Vicente Salles entre o folclore e a história

2. A PELEJA DO CIDADÃO PARA ESCREVER UMA HISTÓRIA DO NEGRO NO PARÁ

2.1 O PROTEGIDO DO PRETO VELHO E DOS PAJÉS

2.1.1 Vicente Salles entre o folclore e a história

Foi justamente aquele quadro de disputas e afirmações por um espaço político e acadêmico que Vicente Salles encontrou quando remanejado por Edison Carneiro para se

integrar à campanha, em 1961. À memória dessas disputas, especificamente sobre o embate entre Carneiro e Florestan Fernandes, Salles se reportou da seguinte forma:

A Academia sempre olhou os folcloristas com certa reserva. Edison Carneiro teve relacionamento difícil com Arthur Ramos e a Academia que resistiu à sua pretensão da cadeira da Faculdade Nacional de Filosofia. É conhecida também a polêmica de Edison Carneiro com Florestan Fernandes. Pessoalmente tive problemas com alguns antropólogos. E fui demitido em 1980 da antiga Funarte, que ajudei a criar, por ter meu trabalho de folclorista desclassificado por uma antropóloga eventualmente no poder. Vinguei-me, em seguida, ganhando o Prêmio Silvio Romero de 1981 com o ensaio “Repente & Cordel”. Guardo da vida funcional, inclusive desse episódio, interessantes documentos.

Ilustrativo da latência daquela questão em torno do folclore como campo de estudos – e então vai ser lícito fazer rapidamente um salto no tempo – é este fato ocorrido na vida de Salles em 1977. Entre fevereiro e março daquele ano, por meio de cartas, Salles colaborou com o etnólogo paraense Arthur Napoleão Figueiredo, professor do Departamento de História e Antropologia da Universidade Federal do Pará, na elaboração do conteúdo da disciplina Folclore no âmbito do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade. O conteúdo dessa conversa mostra como a abordagem do folclore permanecia em terreno movediço, uma vez que o mestre Arthur Napoleão explicava a sua dificuldade, mesmo com toda a experiência em etnologia que acumulava, em ministrar essa disciplina pela primeira vez, “pois o folclore sempre foi periférico para mim”. E reconhecia que o folclore tinha sua metodologia própria.

Arthur Napoleão recorreu não apenas a Vicente Salles como a todas as comissões estaduais de folclore (por carta circular), pedindo-lhes ajuda. E Salles, com sua experiência no ensino de metodologia do folclore, colaborou com o amigo, ajustando partes do conteúdo programático, fornecendo textos seus, que foram utilizados no curso, sugerindo bibliografia – Manuel Diegues Jr. e Edison Carneiro inclusos – e a inserção de exposições de fatos folclóricos regionais. Também afirmava, em carta de 2 de março, que “a principal carência do folclorista brasileiro diz respeito à aquisição de método de pesquisa, por falta de cursos regulares nas Universidades”. Relembrava que, já na década de 1920, o célebre folclorista e filólogo Amadeu Amaral (1875–1929) já reclamava da falta dessa formação.

Feito isto, retomemos a narrativa de Salles em seus estudos. Como já foi mencionado, a influência de Edison Carneiro sobre os trabalhos iniciais de Vicente Salles é evidente, sobretudo no uso da teoria que o antropólogo baiano denominou “dinâmica do folclore”, cuja apresentação está no livro homônimo de 1965. Esta consiste na

compreensão de que o fato folclórico está em permanente transformação, de forma dialética: “... esta situação dinâmica supõe ação e reação, tanto no sentido vertical, entre a cúpula e a base, como no sentido horizontal, entre os elementos genuinamente interessados no folclore – um tipo de relação prática fundamental” (CARNEIRO, 2013, p. 69). Na visão do antropólogo, o folclore é “a expressão ideológica das relações de produção” criadas por certas condições sociais. Assim, percebe essa dinâmica na tensão permanente entre classes dominadas e dominantes, sendo que estas ajudam na conformação do folclore, ao negá-lo.

Em 1969, Salles assinou o artigo “Questionamento teórico do folclore”, na Revista de Cultura Vozes.94 O modo como organizou o texto, com uma abertura, a divisão em

tópicos, com a delimitação do “problema” a ser tratado, assemelhava-se àquele artigo de seu mestre. Mais do que isso, apropriou-se da teoria da “dinâmica do folclore”, à qual se integravam as ideias de folclore como “matéria viva” e como um continuum, do qual fazem parte tanto o “conhecimento empírico do povo” quanto o “conhecimento científico letrado”. Portanto, sujeito a mutações e interpenetrações. Esse ponto de vista da cultura se manterá no seu horizonte teórico, podendo ser visto no último livro do historiador, Lundu: canto e dança do negro no Pará, finalizado em 2012.

Àquela altura, aos 38 anos de idade, ele se inseria também naquele campo de batalha, “na trincheira do folclore”, para relembrar a expressão de Carneiro. Tomava como sua a tarefa de lutar pela inserção do folclore no quadro das ciências sociais, compreendendo-o como um fenômeno de cultura, que não poderia ser olhado isoladamente do contexto social. Esse ponto o encaminharia por uma nova direção.

Dos quatro tópicos em que se divide o artigo, chamo a atenção para dois pontos, que se encontram encerrados no segundo tópico (“A abordagem metodológica”), no item “O folclore é dinâmico”. Ao apresentar uma contraposição aos estudos pioneiros de folclore vinculados às “antiguidades populares”, uma vez que os primeiros folcloristas “chegavam ao Folclore através da História”, ele aponta a um modelo de historiografia encerrado em uma ideia “arcaizante”, a um passado imutável. Também por isso, a seu ver, é que o folclore não poderia ter outro campo, senão o das ciências sociais para uma observação direta dos fenômenos.

No entanto, seguindo o argumento do folclorista belga Albert Marinus, que também teria influência nos estudos de Salles, como poderá ser visto no capítulo quarto desta tese, folclore teria de ser estudado de forma interdisciplinar. Daí a necessidade de

tomar a história como auxiliar dos estudos folclóricos. “Mas, por outro lado, toda ciência é auxiliar da História que, em dadas ocasiões, pode valer-se dos conhecimentos de quaisquer delas” (SALLES, 2013b, p. 98). Chegando à conclusão de que o folclore também poderia, em dado momento, ser uma disciplina auxiliar, ele assume também a reciprocidade entre as disciplinas.

Este ponto seria problemático na argumentação dos folcloristas contra a tese dos sociólogos paulistas de que o folclore integrava o campo das humanidades. Salles reconhecia que essa “fluidez” é que seria responsável por dificultar a luta pela autonomia do folclore. Por isso, ele chamava a atenção para a escolha dos métodos mais adequados “para determinar as formas da dinâmica social e fixar os materiais no seu desenvolvimento progressivo e em suas variações” (SALLES, 2013b, p. 98).

É interessante perceber que, dois anos depois da publicação desse artigo, Salles lançaria o seu O negro no Pará, obra fundamentada no campo da história social. Em uma carta de 1970 a Arthur Napoleão, ele se referiu brevemente aos rumos de sua pesquisa pelo campo da história. Referiu-se também ao artigo que condensava o livro, antecipando a sua publicação, intitulado “Carta do Pará”, publicado na revista Cadernos Brasileiros, em 1966, no qual já percebia o “historicismo” que o tomava “para o bem ou para o mal”.

Esse encaminhamento de Salles para os estudos historiográficos, pode-se dizer, marca uma autonomia do pesquisador em relação aos estudos folclóricos. Esta marca está patente em O negro no Pará, o que não quer dizer, em absoluto, que ele tenha se divorciado do campo do folclore. Pelo contrário, Salles fazia questão de se intitular folclorista. Como escreve a Arthur Napoleão em 25 de maio de 1988, a respeito de Vocabulário crioulo: “Não renunciei à condição de folclorista – o que não cheira bem no meio universitário e derivados – na elaboração do Vocabulário crioulo, que pretende ser estudo interdisciplinar”. Na capa de seu Estórias do Eldorado..., as histórias do Cidadão- de-Arco-e-Flecha são escritas pelo “folclorista e historiador Vicente Salles”.

O negro no Pará marca a identidade de Salles como historiador e a reivindicação de um lugar nos chamados estudos africanistas, no Brasil. Neste trecho do livro, ele aponta a diferença de seu trabalho, ao mesmo tempo em que o insere em linha de estudos que, como se viu naquele prefácio de Edison Carneiro, exortava os pesquisadores a uma renovação das pesquisas sobre o negro no Brasil.

O estudo do negro na planície amazônica nada mais é do que o estudo particular de um dos componentes étnicos da população. Aqui o negro não se conservou puro, sofreu pressões segregadoras, mas ainda assim se misturou na massa da população. Através da calha da mestiçagem, a interação social

se consumou completamente. O fenômeno não foi assim tão simples como pode parecer à primeira vista. Resultou de contatos de diferentes grupos tribais, transportados de diversas regiões da África, e que, aqui, se confraternizaram, solidários pela condição de escravos. Aqui também encontraram o elemento indígena reduzido de escravo ou de servo da gleba, numa convivência mais ou menos promíscua com soldados os colonos das classes populares do Velho Mundo. Esses três elementos básicos – o europeu, o africano e o índio – construirão o edifício social da Amazônia. No caso particular da Amazônia, que possui peculiaridades étnicas marcantes, não parece justo transportar e aplicar a conclusão de Arthur Ramos – de que a miscigenação do branco com o negro se processou em larga escala nos meios rurais da colônia e do império, enquanto o cruzamento do branco com o índio operou-se de preferência na área pastoril. Considerando a existência de particularidades étnicas, talvez se queira, aprioristicamente, realizar verificação mais profunda do fenômeno, já que – pode-se arguir – quantitativamente o negro não foi bastante numeroso para constituir, mediante o cruzamento como branco, a base da mestiçagem. Mas não se trata apenas do aspecto quantitativo, que de forma alguma influi na dinâmica cultural, só ou exclusivamente. Considerando os aspectos qualitativos do fenômeno, não há dúvida de que a mão-de-obra escrava, africana, foi a construtora da economia agrária e a grande fornecedora de braços para a incipiente economia regional. Assim, parece válida a afirmativa de que o mulato é o produto direto da sociedade agrária. O branco europeu considerava todo trabalho manual deprimente. E o indígena, senhor dos rios e das florestas, seria chamado a desempenhar importante papel na vida econômica cedo deslocada para as atividades extrativistas e para a locomoção da riqueza, através das estradas naturais, os rios (SALLES, 2005a, p. 106).

O negro no Pará, como se pode ver por este trecho, é uma obra de estreia já impregnada pelo recorte de um objeto que renderia outros temas de pesquisa. Quando lançou esse livro, Salles já antevia a necessidade de ampliar essa investigação, pois sua baliza temporal é a Abolição, quando ele já dispunha de fontes para ir além, e de pormenorizar alguns aspectos, como o vocabulário, que ele foi elaborando simultaneamente àquela pesquisa, e a formação dos quilombos, para citar dois exemplos.

Além desse aspecto, O negro no Pará apresentava uma escrita madura, com assinatura. Escrita que se manteria ao longo da obra deste autor, levando-o inclusive por vias ficcionais, como se vê em Estórias do Eldorado... (2010). Por ora, interessa-nos a leitura de cinco obras basilares, que conformam o que chamarei de Estudos sobre o Negro no Pará: O negro no Pará (1971), Vocabulário crioulo (2003), O negro na formação da sociedade paraense (2004), Os mocambeiros (2013) e Lundu: canto e dança do negro no Pará (2012).95

95 De todas as obras citadas, Lundu: canto e dança do negro no Pará é a única que ainda está sob a forma

O percurso da construção dessa tese será visto daqui por diante: o livro, o panorama em que se insere, o ambiente e a rotina da pesquisa, a busca das fontes, as histórias da publicação e seus desdobramentos.