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Com a pretensão de actualizar o monumento teórico de Mauss, Maurice

2.3) Genealogia da dívida

2.3.3. Com a pretensão de actualizar o monumento teórico de Mauss, Maurice

Godelier, em O enigma da dádiva198, percebe que, nas dádivas, o objecto posto a circular “é simultaneamente dado e guardado”199

, sendo guardada a propriedade do objecto por parte do doador e dado, concedido como donativo, apenas o seu uso, o direito de titularidade do objecto.

Durante o seu percurso expositivo, confrontando-se com o facto de a dívida ser eterna, isto é, apesar da dádiva ser reembolsada, o efeito da dádiva inicial não é cancelado, Godelier observará uma cisão entre os conceitos de propriedade e de titularidade. De acordo com o autor, se a contra dádiva não anula a dívida implicada na dádiva original é porque há algo na “«coisa» dada que não foi verdadeiramente separada, desunida completamente daquele que a deu”200

; apesar da coisa ter sido dada, ela não foi alienada daquele que a deu, o seu proprietário mantém sobre a coisa dada o seu direito apesar de entregar a tutela dessa coisa – a sua titularidade – ao seu congénere

197 Id., p. 214.

198 Godelier, M., O enigma da dádiva, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2000. 199 Id., p. 109.

69 alvo de dádiva. É por isso que “a coisa dada carrega consigo algo que faz parte do ser, da identidade daquele que a dá”201. Isto pode parecer paradoxal para o cidadão do mundo ocidental contemporâneo, habituado a que os agentes contratantes sejam independentes entre si, isto é, que estejam desobrigados a partir do momento que a viabilidade do contrato esteja garantida; a obrigação a que aquele que recebe está sujeito relativamente àquele que lhe cede algo termina assim que este é restituído por intermédio de um elemento abstracto, mediador, unidade de medida: a moeda. Percebe- se, então, que a coisa cedida é alienada assim que restituído o devido pagamento, isto é, que os agentes do contrato se encontram desobrigados entre si. Porém, esta relação de compra-venda é muito estranha ao circuito económico-moral da dádiva, uma vez que a coisa dada continua a permanecer como património daquele que a deu e este continua a retirar daí “uma série de «vantagens»”202

. Para um observador ocidental, este vai-e-vem implicado na dádiva não fará grande sentido. Isto quando consideramos o caso em que o objecto dado não é retribuído mas re-dado, o que faz paradigmaticamente a ocasião enigmática da dádiva. Todavia, este percurso de ida e volta nada tem de acidental, nele se estabelecem ou fortificam laços, criando uma “dupla relação de dependência recíproca”203

. Esta relação é dupla porque o doador não só continua presente na coisa dada como exerce uma força, determina de certa maneira “aquele a quem dá”204

e a aceitou. Assim, aceitar uma dádiva encontra-se para além de aceitar uma mera coisa, implica, acima de tudo, aceitar que o seu doador exerça sobre si uma força determinante, obrigando-o à retribuição. Ora esta força reside exactamente na ideia de propriedade eterna que o doador tem sobre a coisa doada onde, apesar de delegar a sua titularidade, o seu direito de uso, ele continua, qual marca-d‟água, miscigenado na coisa dada e, com isso, segue exercendo a sua influência através dela.

Assim, o sistema de dádivas funciona como um elástico em que as duas pontas asseguram, simultaneamente: a sua dilatação, no acto de dar – estendendo o seu poder de uso –, assim como a sua contracção, no facto da propriedade da coisa dada ser mantida, guardada pelo doador, o que garante não só a circularidade, a homogeneização, a coesão e a paz social de determinada comunidade como, também, as relações de vinculação pessoa a pessoa. O efeito boomerang protagonizado pela dádiva é, assim,

201 Ibidem. 202 Id., p. 57. 203 Ibidem. 204 Id., p. 58.

70 uma arma de arremesso que visa capitalizar o nome do doador, pois ao longo do seu percurso, quando posta em circulação, o interessante é que ela “se carregue cada vez mais de vida, de «valor»”205

, o que criará prestígio ao engrandecer o doador.

Percebe-se assim como, ao transformar a «velha moral da dádiva em princípio de justiça»206, as sociedades ancestrais conseguiram, através da circulação das riquezas – uma vez que nem sempre a riqueza era completamente destruída, mas recolocada no sistema de bens da comunidade –, dois feitos de ordem antagónica: a homogeneização material do grupo, o que lhe vai conferindo consistência, solidez, paz social ao colocá-lo ao abrigo das desigualdades e, simultaneamente, a criação imaterial de hierarquias perversas, pois tendo por génese um mecanismo que parece visar o desmantelamento das hierarquias entre os homens207, o que se consegue é exactamente aprofundar a clivagem entre homens capazes – os superiores –, e inferiores. Se a moral da dádiva, tomada enquanto princípio de justiça, cria a sociedade – um tipo de sociedade –, ela cria, também, subjectivamente o Homem menor.

A tese fundamental desta obra de Godelier consiste na verificação da existência de dois pólos contraditórios na estruturação das práticas sociais: “trocar e guardar, trocar para guardar, guardar para transmitir”208

. Segundo Godelier, é necessário, a par daquilo que circula, que existam âncoras, pontos fixos que funcionem como limiares mínimos de identidade que é suposto preservar. Esses momentos de fixidez, isso aí que é posto fora de circulação, funciona como o batente regressivo do circuito de bens materiais e imateriais que fomentam a proliferação de uma comunidade que, assim, não deve esquecer a sua história e, com isso, preservar a sua identidade. Esta ideia apenas retoma a evidência da necessidade de um princípio de estabilidade implicado no funcionamento das sociedades ancestrais que visaria a previsibilidade, a normalização da vida. O homem parece ter necessitado de apagar da sua consciência “a presença

activa do homem na sua própria origem”209, o que faz com que o sagrado torne o social

205 Id., p. 111.

206 Mauss, M., Op.cit., p. 76.

207 Ibidem: “Némesis vinga os pobres e os deuses do excesso de felicidade e de riqueza de certos homens

que delas se devem desfazer: é a velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça; e os deuses e os espíritos consentem que as partes que se lhes davam e que eram destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças”.

208 Godelier, M., Op. cit., p. 201. 209 Id., p. 222.

71 opaco a si próprio. Mais, seria uma necessidade que o social subtraísse de si a consciência de ser uma construção humana, isto é, foi necessário que o social se sacralizasse de alguma forma. É dai que surgem as personagens míticas enquanto bastiões do um modo de vida, de um status quo, “sacralizados, idealizados”210 e que, portanto, não podem sofrer contestação. A bem da preservação da sociedade, um fundo de opacidade referente às suas origens, ao papel activo e criativo do homem na sua destinação, teve que ser posto fora do seu circuito, teve que ser sacralizado, tornado monumento, alvo de culto, preservado, continuado a fim de que o comum, o bem de todos, fosse servido.

Esta deriva pelo sagrado revela, então, que a relação entre deuses e homens é de uma assimetria insanável, e isto por três razões: primeira, porque os deuses, no início, deram aos homens sem que estes algo tivessem pedido; segunda, aquilo que foi dado: “o mundo, a vida, a morte”211

é de tal magnitude que ao homem nada resta para re-dar; terceiro, porque a maior dádiva dos deuses é, uma vez que deles está ausente o circuito das obrigações, a sua permissão em receber, quando “têm «a bondade» de aceitar”212, quando adoptam uma atitude passiva.

No sentido de aprofundar a importância da religião nas sociedades arcaicas, Godelier vai mais longe ao dizer que, ainda que não tenham sido as religiões a criar as assimetrias sociais, elas forneceram o paradigma da assimetria ao plantar a ideia de “seres infinitamente mais poderosos do que os humanos e aos quais estes estão encadeados por um dívida original que nenhuma contra dádiva da sua parte poderá anular”213

, aos quais é necessário oferecer preces, sacrifícios. Foi neste contexto que as religiões forneceram o molde das “relações hierárquicas, assimétricas, origem simultaneamente de obrigações recíprocas e de relações de obediência situadas para além de qualquer reciprocidade”214

.

O autor francês termina a sua obra afirmando que, hoje em dia, a política ocupa o lugar que outrora fora da religião. Através da inalienabilidade dos direitos individuais que os indivíduos dão a si próprios, através desta dádiva, os homens fundam e orientam

210 Id., p. 225. 211 Id., p. 238. 212 Ibidem. 213 Id., p. 247. 214 Ibidem.

72 “as suas relações sociais públicas”215

, o que concede à Constituição o cariz de objecto sagrado que os homens sempre pensaram ser proveniente dos deuses, prótese que estes lhes haviam dado para os ajudar a viver juntos. Ora, tomando a política o lugar que outrora fora da religião, o risco em que incorre é o de sacralizar-se. Neste sentido, torna- se capital profanar a política, entregá-la, redá-la ao domínio dos homens, que não é mais do que criar estímulos para que os homens se encarem a si próprios como motor e autores da História.