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Mas as reverberações da reciprocidade não se ficam pela materialidade do

2.3) Genealogia da dívida

2.3.5. Mas as reverberações da reciprocidade não se ficam pela materialidade do

comércio das dádivas. Há algo de imaterial, um resíduo espúrio que subsiste, minando, a ideia de reciprocidade. O que não se deixa perceber naqueles que consideram a

226 Id., p. 192: “anthropology as ´philosophy with the people in´”. 227 Id., p. 167: “Life is theft.”

228 Id., p. 176: “the difference of potential between partners tends towards zero ´but is never completely

76 reciprocidade como a ideia estruturante do socius, contribuindo para a enorme confusão que envolve a dívida, é que aquilo que está em jogo nas sociedades da dádiva não é o puro trânsito material e imaterial – que faria dessas sociedades amigas do equilíbrio –, a troca, mas a marcação de distâncias e a criação de alianças. Com efeito, foi necessário elevar a dádiva a princípio normativo para tornar efectivas as obrigações de si decorrentes. É, portanto, através de um trânsito coxo – assegurado pela tripla obrigação: dar, aceitar, retribuir –, onde o equilíbrio necessário à paz social é arbitrado, que se percebe que a diferença de potencial entre quem dá e quem recebe, apesar de tender para zero na medida do acto de re-dar, o que configuraria a reciprocidade, não deixa de ser mero «em vias de», acaba por nunca acontecer, o que, a ser alguma coisa, faz da reciprocidade um acto falhado. Porém, como forma de aceitabilidade, como maneira que habilita a vida a ser vivida em comunidade, foi necessário paliar este princípio de aliança demoníaco, o que foi conseguido com o sucesso que se vê por via das diversas mistificações que circundam a dívida e que têm o seu ponto de inserção na ideia de reciprocidade enquanto trave-mestra de uma comunidade. Mas não só; este conceito que aparentemente dá conta do comércio intracomunitário tornou-se numa ferramenta que, aliada aos afectos por si sugeridos, serviu como cimento que, ao longo das eras, uniu, vinculou, os indivíduos entre si. Um desses afectos é a gratidão, que, atendendo à boa cotação com que permanece no mercado mundano, pode servir de indicador às balizas de sentido com que, ainda hoje, significámos os nossos mundos.

Na obra coligida sob o título Fidelidade e Gratidão e outros textos229, Georg Simmel dedica-se a perceber qual o nexo de emergência e qual a matéria que enforma estes afectos. Relativamente à gratidão, o autor germânico refere que esta se engendra nas e pelas acções recíprocas entre indivíduos, mas é uma forma interiorizada, ao contrário da relação entre as coisas que se dá para fora; a gratidão é “o resíduo subjectivo do acto de receber ou também do acto de dar”230

. A gratidão é um sentimento que emerge do desequilíbrio, pois exige, daquele que foi dela objecto, a neutralização do desequilíbrio causado pelo acto de dar.

Existe uma incomensurabilidade profunda na sensação de gratidão. Isto porque, quando se é alvo de dádiva fica-se numa situação insanável, pois incapaz de resposta

229 Simmel, G., Fidelidade e Gratidão e outros textos, trad. Maria João Costa Pereira e Michael Knoch,

Lisboa: Relógio d‟Água, 2004.

77 niveladora, uma vez que esta – enquanto resposta – é já um dado segundo, a qual surgirá sem a espontaneidade do favor ou dádiva previamente concedida. É como se se estivesse eticamente obrigado a responder – restituir – o favor\dádiva concedida, sendo que essa coerção é subtractiva do índice de liberdade que constitui a pureza da vontade daquele que nos brindou com a sua dádiva231. Simmel chega a afirmar que o carácter de

dever, que surge com a gratidão e que impele à restituição da dádiva, supõe uma não

liberdade fundamental da nossa vontade. Aí, refere-se a Kant como aquele que, sob a aparência da liberdade, transformou a vontade num imperativo de acção – tu deves! –, resultante de uma atitude coercitiva da Razão. Assim, apenas através do não cumprimento desse dever acharíamos a liberdade, uma vez que esta só pode ser encontrada espontaneamente e não enquanto mediação ou resposta.

A ideia de gratidão implica, ainda, um vínculo indelével, infinito, pois o que está em causa não é o objecto oferecido pelo qual a gratidão emergiria, mas a consciência, fabricada pela ausência de espontaneidade da vontade no acto de resposta, de não haver resposta satisfatória capaz de cancelar o desequilíbrio, capaz de anular a diferença de potencial, entre aquele que dá e aquele que recebe, de não se poder “retribuir uma dádiva”232

. Mais, a gratidão parece residir nas profundidades do sujeito, o que o torna num sentimento “particularmente indissolúvel”233

. Simmel parece querer dizer que a gratidão é o sentimento estruturante da relação social porque é o sentimento que provém de uma memória, daí permitir-se dizer que a gratidão é “a memória moral da humanidade”234

. Esta memória desenvolve-se como vínculo eterno para com aqueles com quem criamos laços, para com aqueles de quem recebemos dividendos, devido à noção de que a nossa retribuição, por ser de carácter segundo, uma forma de resposta, uma reacção, já não contém a espontaneidade, logo, a liberdade, envolvida na dádiva inicial.

A gratidão, pela mão de Simmel, é signo de candura, de beatitude e de reverência, impondo-se como o cimento que liga as relações intersubjectivas que se dão na esfera social, mas que saem da regulamentação jurídica. Por outro lado, a gratidão pode também ser pensada em contra efectuação com a ideia de Simmel, desta vez

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Id., p. 48: “É que, eticamente, estamos obrigados a retribuir o benefício, agimos sob uma coerção que, não sendo social-legal mas moral, é ainda assim uma coerção.”.

232 Ibidem.. 233 Id., p. 50. 234 Id., p. 43.

78 enquanto sentimento decorrente de uma má consciência, de uma consciência fundada no ressentimento que se exprime através da gratidão enquanto sentimento que mistifica a dívida, a dependência, em que incorre. A gratidão, assim pensada como ressentimento, está do lado da resposta, é uma força reactiva. Pertence assim ao reino do ressentimento, dimensão onde imperam as forças reactivas, daí a gratidão implicar uma resposta, ou dispor a uma resposta, porque o dispositivo que absorve a dádiva, absorve-a enquanto algo que cria uma perturbação no equilíbrio social, equilíbrio esse que urge restaurar, e que é o suposto, o truísmo que fundamenta toda esta posição acerca da gratidão. Porém, é nesse desequilíbrio eterno, pois o cancelamento da dádiva é impossível por ser de natureza segunda, isto é, uma resposta e, portanto, não espontânea e não livre, que a memória dos sujeitos se cria.

O caso paradigmático da gratidão – “(…) a gratidão consiste, de facto, não na retribuição de uma dádiva, mas na consciência de que ela não pode ser retribuída, de que há alguma coisa que coloca a alma do receptor numa certa posição permanente relativamente ao dador, e que o faz tomar vagamente consciência da infinidade interior de uma relação que não pode ser esgotada nem realizada por uma qualquer retribuição finita ou por outra actividade”235 – dá-se exactamente quando a dívida é interiorizada

pela consciência e formata a subjectividade, predispondo-a a um laço inquebrável com o dador, tornando-se esse vínculo, edificado sobre a dívida eterna, um traço de carácter inapagável. Trata-se de uma ortopedia radical da alma, que este sentimento de gratidão tenta mistificar, apaziguar, paliar.

Se, com Simmel, a gratidão é muito mais o sentimento decorrente da impossibilidade de cancelamento de uma dádiva inicial, portanto, o afecto-camuflagem sentido por quem está em dívida e não pelo doador, nada mais resta à gratidão senão ser um sentimento que mistifica uma dívida impossível de cancelar. A gratidão seria assim um afecto reactivo, gerado por uma má-consciência, mas visando camuflar o ressentimento inerente a essa consciência.

Para nos libertarmos desta lógica, desta engrenagem moral que moleculariza a dívida, que a inserta no mais profundo de nós, temos que colocar o foco no nosso sentido ético e passar a vermo-nos como actores históricos, como agentes capazes de produzir a diferença, capazes de trazer algo de novo ao mundo. Nunca a ideia de

vandalismo cultural de Morse Peckham fez tanto sentido, a ideia de que apenas uma

79 atitude subversiva face aos “valores estabelecidos, mediante actos arbitrários de destruição, podem libertar-nos do peso do passado e estimular a inovação social”236. A pretensa espontaneidade dos afectos pertence, também, ao relicário dos anais da História que, neste capítulo, me esforcei por desnaturalizar.

236 Shaviro, S., Doom Patrols: A theoretical fiction about postmodernism, New York: Serpent‟s tail,

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