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CAPÍTULO I – SECURITIZAÇÃO E LOCALIZAÇÃO

1.4 Combinando tradições

Uma questão essencial que perpassou a discussão deste capítulo é por que Estados obedecem a normas constitutivas de regimes e instituições internacionais? Essa é uma questão central para a teoria das Relações Internacionais e é possível delinear duas tradições que oferecem respostas a essas perguntas, uma racionalista e outra construtivista.

A tradição racionalista enfatiza aspectos como coerção, análise de custos e benefícios e incentivos materiais. Fundamentada no materialismo, afirma-se que os atores realizam cálculos (racionais) em função de benefícios oferecidos pelos regimes ou de mecanismos de coerção empregados por esses regimes. De outro lado, a tradição construtivista destaca aspectos como identidades e discursos, aprendizado social29, socialização30 e normas sociais.

29 Definido como o processo pelo qual os interesses e identidades dos agentes são formados pela e durante

a interação entre eles (Checkel, 2001, p. 561).

30 Definido como o processo universal de introdução em um novo regime; como atores aprendem a adotar

normas, valores, atitudes e comportamentos aceitos e praticados em um dado sistema. É comum relacionar socialização com a internalização, momento a partir do qual valores, papeis e entendimentos passam a ser tidos como ponto de partida, não mais questionados. A socialização poderá ocorrer de três maneiras: mímica (copia-se o comportamento dos outros atores para navegar em um terreno desconhecido), influência social (o comportamento de um ator é julgado pelos outros e recompensado ou censurado, afetando o seu status social) e persuasão (convencimento por meio de um processo cognitivo de que determinadas normas, valores e links causais são corretos e devem guiar comportamento, sem coerção material ou mental) (Johnston, 2008, p. 21-26).

É necessário, no entanto, abandonar a perspectiva exclusivista que exige a escolha de uma ou outra, em favor de um diálogo que possibilite considerações relevantes de ambas as tradições (Checkel, 2001, p. 581). Isso permitirá que se considere o caráter “estratégico” da construção social – como a racionalidade instrumental e a interação estratégica desempenham papel importante na formação de normas, preferências, identidades e conhecimento comum (Finnemore & Sikkink, 1998, p. 910-911).

Por meio de uma narrativa que considera tanto a importância da linguagem e das identidades, quanto o impacto dos aspectos materiais na formação das preferências e nas interações, é possível responder não só por que os Estados implementam normas internacionais, o que, indiretamente explica como elas se disseminam, mas também como o fazem. No caso específico desse estudo, se pretende compreender por que o Brasil implementou determinadas normas de combate ao terrorismo – por meio da Lei Antiterrorismo – e como o fez.

A literatura mais recente sobre a disseminação de normas (Archarya, 2004) oferece importantes lições sobre a segunda pergunta, permitindo que se considere como os elementos particulares de cada país influenciam na maneira como as normas internacionais serão recepcionadas. Deixou de considerar, no entanto, a importância dos aspectos materiais que já havia sido reconhecida previamente por construtivistas. Servem, frequentemente, como gatilho, desencadeando o processo de localização.

Os efeitos de mecanismos de coerção, como blacklisting, certamente são mediados por meio de elementos ideacionais. Sharman (2009) sugere que se compreenda o blacklisting como um ato de fala e que a preocupação com a reputação é a principal razão pela qual ele se mostra efetivo. Além disso, outros elementos mais claramente associados à literatura de disseminação de normas como mímica31 e competição32 atuam de maneira conjunta com o blacklisting (Sharman, 2008, p. 636). É necessário, entretanto, compreender o emprego desses mecanismos também como exercício de poder, com efeitos diretos, decorrentes das normas internacionais que os preveem.

De outro lado, narrativas fundadas estritamente no aspecto material se mostram incapazes de suficientemente explicar esse fenômeno. A narrativa da securitização é essencial para que se compreenda a dimensão e as características do regime internacional

31 A forma como o poder se manifesta em um grupo de pares, onde a busca por aceitação, ou melhor, o

temor da rejeição social é um importante motor da difusão política e normativa (Sherman, 2008, p. 647).

32 A forma como o poder se manifesta no mercado – pela aceitação da norma internacional, por exemplo,

para evitar a perda de posição (sendo considerado menos seguro) frente aos competidores (Sherman, 2008, p. 650).

de combate ao terrorismo. Além disso, existem indícios de que análises baseadas em custo e benefício não são suficientes para explicar a disseminação das normas de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo (Sharman, 2008).

Assim, a narrativa da securitização é perfeitamente compatível com o presente estudo, o qual visa sinalizar a criação de uma determinada realidade, a partir do processo de securitização descrito, e, posteriormente, analisar como os atores e, mais especificamente, o Brasil se colocam nessa realidade. Tantos fatores ideacionais, quanto materiais serão empregados nessa análise, em atendimento à pretensão de se alcançar uma visão ampla e dialogada daquelas tradições.

As perspectivas teóricas consideradas ao longo do capítulo exercem todas um papel fundamental na narrativa que se pretende desenvolver. A literatura de securitização é fundamental para que se compreenda não só o desenvolvimento do regime de combate ao terrorismo, mas também como as discussões sobre esse fenômeno se desenrolam no cenário doméstico brasileiro. As noções de risco e da eminência de um ataque são empregadas com frequência para justificar a previsão e o manejo de mecanismos excepcionais, os quais serão alvo de disputa entre os atores durante o processo político nacional. A posição estigmatizada do terrorista certamente não tem origem nesse processo de securitização, como ficará claro na discussão sobre a definição de terrorismo no próximo capítulo, mas ganhou uma potência particular a partir de 2001, a qual se refletiu nas discussões sobre a definição de terrorismo no ordenamento brasileiro. A percepção de que esse processo de macrossecuritização se desenrolou a partir de uma pretensão hegemônica norte-americana está presente nas críticas de muitos parlamentares brasileiros ao GAFI.

Por outro lado, a literatura associada ao surgimento e disseminação de normas internacionais auxilia a compreensão do surgimento do regime de combate ao financiamento do terrorismo e de suas características, principalmente no que se refere ao GAFI. A partir dessa compreensão, será importante estabelecer quais são os mecanismos empregados pelo GAFI para promover a disseminação das normas que esposa e qual o impacto desses mecanismos nas realidades locais e, principalmente, no processo de localização.

Além de uma narrativa detalhada, inédita, sobre iniciativas legislativas de combate ao terrorismo no Brasil, pretende-se, também, oferecer uma contribuição teórica à literatura de disseminação de normas no sentido de recuperar a importância dos aspectos materiais, especialmente de mecanismos coercitivos, como gatilhos para o processo de

localização. É essencial que sejam considerados, porque podem se demonstrar, como no presente caso, fundamentais para a superação da resistência a normas internacionais e porque influenciam o debate político interno sobre a sua localização.