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CAPÍTULO I – SECURITIZAÇÃO E LOCALIZAÇÃO

1.3 Localização de normas internacionais

A literatura de Relações Internacionais sobre normas21 e sua disseminação no plano internacional será especialmente valiosa para esse trabalho, na medida em que se busca compreender como determinadas normas, criadas para combater o terrorismo internacional, se disseminaram, qual foi o seu impacto no Brasil, quais são as condições para a sua internalização no país, entre outras questões.

A discussão sobre o impacto de ideias e normas na política internacional segue a ascensão do Construtivismo nas Relações Internacionais. Tem como pressuposto que tantos fatores ideacionais quanto materiais precisam ser analisados, conjuntamente, para que o comportamento de Estados e demais atores seja compreendido. Para construtivistas, são as ideias e os processos comunicativos que determinam quais os fatores materiais relevantes e como eles influenciam interesses, preferências e decisões políticas. Afirmam que

Os fatores e condições materiais ganham relevância por meio de processos cognitivos e comunicativos, “a batalha de ideias”, onde os atores atuam para determinar suas identidades e preferências e para desenvolver entendimentos coletivos sobre as situações em que se encontram e sobre os valores morais e normas que guiam suas interações (Risse & Sikkink, 1999, p. 7).

21 Definidas como “padrão de comportamento adequado para atores com uma dada identidade”. Para uma

As normas desempenham um papel fundamental na definição das identidades e das preferências dos atores. É fundamental a compreensão do processo por meio do qual ideias tidas por determinados indivíduos se tornam normas, no sentido de entendimentos coletivos sobre comportamento apropriado, levando à transformação de identidades, interesses e comportamentos. Afinal, “normas influenciam mudanças políticas por meio de um processo de socialização que combina interesses instrumentais, pressões materiais, argumentação, persuasão, institucionalização e habitualization” (Risse & Sikkink, 1999, p. 37).

Inicialmente, vale mencionar a tradicional compreensão do processo de evolução de uma norma no plano internacional. Ele é composto de três estágios: emergência da norma; norm cascade; internalização. O primeiro estágio é caracterizado pela ação dos empreendedores normativos, aqueles que estão promovendo a norma e são os principais interessados, a princípio, no seu desenvolvimento. Em seguida, busca-se expandir o círculo de adesão à norma, por uma série de instrumentos, como a pressão para se conformar e a busca por legitimidade. Por fim, ocorre a internalização22, quando as normas se tornam amplamente aceitas (Finnemore & Sikkink, 1998, p. 895).

O desenvolvimento de novas normas não ocorre dentro de um vazio normativo. Pelo contrário, novas normas emergem em um ambiente extremamente competitivo onde vigem outras normas e percepções de interesse. Portanto, para promover uma nova norma, será necessário, frequentemente, atacar uma norma preexistente, afirmando-se, por exemplo, que ela deixou de ser apropriada naquele ambiente (Finnemore & Sikkink, 1998, p. 897).

O processo de adoção de novas normas pelos Estados não será, na maioria dos casos, simples e direto, com a substituição das normas preexistentes pelas novas. Para estudar como se dá esse processo e em que condições ele se desenvolverá, Amitav Archarya desenvolveu o conceito de localização (2004, p. 245), que pode ser definido como “a construção ativa, por meio do discurso, seleção cultural, grafting23 e framing24,

22 Essa internalização não se refere ao processo pelo qual uma norma internacional passa a viger no

ordenamento doméstico daquele Estado, mas sim a um processo cognitivo interno dos atores, sejam Estados, sejam pessoas. Após internalizada, a norma passa a ser considerada um ponto de partida, ela não é mais questionada.

23 É a tática por meio da qual os proponentes de uma norma buscam institucionalizá-la ao associá-la com

uma norma preexistente na mesma área temática, a qual traz conteúdo semelhante. Assim como framing,

grafting é um ato de representação ou reinterpretação, frequentemente executado por atores externos

(Archarya, 2004, p. 244).

24 É o mecanismo por meio do qual as ligações entre as normas existentes e as normas emergentes, que,

de ideias estrangeiras, por atores locais, resultando naquelas ideias desenvolvendo e assumindo significativa congruência com as crenças e práticas locais”. O processo de localização é mais amplo do que uma simples reinterpretação da norma global. Refere-se a um processo de verdadeira reconstituição da norma estrangeira para fazê-la congruente à ordem normativa local, processo no qual os atores locais desempenham um papel muito mais importante que os estrangeiros.

Antes, Archarya (2004, p. 247) diferencia localização de substituição25. A substituição de normas locais por normas estrangeiras ocorre quando existem amplos e profundos questionamentos internos em relação às normas locais, por terem perdido sua base moral ou não serem mais adequadas para cumprir seu objetivo inicial. Ela não acontecerá, todavia, quando a norma local possuir uma reivindicação identitária forte. A localização ocorrerá quando os atores locais compreenderem que suas crenças e práticas são simplesmente inadequadas, podendo se beneficiar de uma infusão de novas ideias (estrangeiras), a serem adaptadas.

Em resumo, Archarya (2004, p. 253-254) sugere três possíveis respostas locais à emergência de novas normas estrangeiras, como indicado na figura abaixo: (i) resistência, quando há fracasso na disseminação da norma e o modelo institucional-normativo preexistente continua em vigor; (ii) localização, quando a norma preexistente é substancialmente alterada, novas tarefas são estabelecidas e novos instrumentos criados – a hierarquia normativa não sofre alteração; (iii) substituição da norma, quando a norma preexistente é removida, em favor da norma estrangeira, e uma nova hierarquia emerge. É possível que, progressivamente, a localização evolua para a substituição da norma, conforme atores locais se tornem mais familiarizados com novas ideias e instrumentos.

e criam questões por meio de linguagem que nomeia, interpreta e dramatiza-as. Bem-sucedido, framing pode fazer uma norma global parecer local (Archarya, 2004, p. 243-244).

Figura 1 – Disseminação de normas (Archarya, 2004, p. 254)

Na realidade, Archarya (2004, p. 239) afirma que a localização, e não a resistência ou a aceitação (ensejando substituição) absolutas, corresponde à forma em que casos de contestação de normas são resolvidos na maioria dos casos.

Alguns fatores podem ser apontados no sentido de representarem forças que exigem novas normas, como crises econômicas ou de segurança, mudanças na distribuição de poder no sistema internacional e até mesmo transformações domésticas. No cenário do presente estudo, é fácil compreender que a demanda por novas normas de combate ao terrorismo internacional surgiu a partir de um atentado de grandes proporções, o qual representou um momento formativo para a política internacional. É importante, no entanto, compreender quais são as condições que levaram ao processo de localização dessas normas na realidade brasileira, e não de simples resistência ou substituição.

São elencadas, a princípio, quatro condições domésticas para que ela seja bem- sucedida: (i) deve haver prospecto de impacto positivo na legitimidade e na autoridade dos atores domésticos que promovem a norma, (ii) as normas locais preexistentes não podem ser tão fortes que, fundacionais, impeçam o surgimento de novas, nem tão frágeis a ponto de serem facilmente substituíveis, (iii) disponibilidade de atores locais com credibilidade e prestígio e (iv) os traços culturais e tradições locais. Também importa para

esse processo, embora não se refira a características dos atores locais, a possibilidade de que as normas internacionais sejam grafted e pruned26 (Archarya, 2004, p. 247-248).

Primeiramente, a localização será mais bem-sucedida quando os atores responsáveis por “receber” as normas estrangeiras acreditarem que elas aumentarão a legitimidade e a autoridade de práticas e instituições existentes, sem fundamentalmente alterar a identidade social delas (Archarya, 2004, p. 248). Normas internacionais são frequentemente empregadas para justificar ações dos atores internos e deslegitimar a de seus opositores. Buzan e Waever (2009, p. 266) assinalam que foi com esse objetivo que China e Rússia, por exemplo, aceitaram o processo de securitização do terrorismo e a disseminação de normas internacionais, as quais foram apropriadas para atuar contra grupos opositores locais.

Outra condição importante é a força das normas locais preexistentes. Muitas vezes, normas têm caráter fundacional para um grupo. Elas podem derivar de crenças e práticas culturais muito antigas que representam aspectos essenciais daquela sociedade ou terem sido consagradas em documentos constitucionais daquela ordem local. Nesses casos, mais do que regular comportamento, essas normas constituem identidades e interesses dos atores. Quanto mais fortes forem as normas locais, portanto, maior a probabilidade de que normas internacionais tenham que passar por um processo de localização e não simplesmente substituam as normas locais (Archarya, 2004, p. 248).

A terceira condição se refere à disponibilidade de atores locais com credibilidade suficiente para manejar uma influência discursiva maior que os atores internacionais. Só assim que o processo de localização será considerado necessário, em detrimento da simples absorção sem filtro das normas estrangeiras. A credibilidade dos atores locais depende do contexto social. Eles serão mais críveis se percebidos como defensores das normas e da identidade locais, e não simples agentes das forças estrangeiras (Archarya, 2004, p. 248).

Por fim, são os aspectos próprios daquela determinada comunidade – sua identidade, seu senso de unidade, seus valores – que facilitarão (ou não) o processo de localização (Archarya, 2004, p. 250).

Embora se trate de um processo dinâmico, é importante considerar a compatibilidade existencial entre as normas internacionais e as locais. Quanto mais

26 Pruning se refere a possibilidade de a norma vir a sofrer uma seleção para que apenas os aspectos

compatíveis com a estrutura normativa prévia sejam incorporados ao ordenamento doméstico como normas locais.

flexíveis forem as normas internacionais, maior será a possibilidade de elas se tornarem, pelo processo de localização, compatíveis com as normas locais preexistentes. A possibilidade de se realizar grafting e framing, o que depende, em larga medida, do conteúdo das normas internacionais afetará a interação entre elas e as normas locais (Archarya, 2004, p. 250).

O processo de localização, quando bem-sucedido, pode ser dividido em quatro fases. Na primeira delas, chamada de pré-localização, prevalece a resistência e a contestação em relação à norma estrangeira. Os atores locais resistem porque duvidam da utilidade e da aplicabilidade daquela norma, temendo que ela ameace crenças e práticas preexistentes.

Na segunda fase, os atores locais tentam estabelecer o valor daquela norma para a audiência interna, utilizando a estratégia de framing, ou enquadramento. O enquadramento é um fenômeno que implica agência e contenção no nível da construção da realidade, permitindo que indivíduos localizem, percebam, identifiquem e rotulem ocorrências em suas vidas e no mundo. De modo geral, permite que eventos e ocorrências se tornem significativos, organizando experiências e guiando ações. Esse fenômeno pode ser dividido em três fases, quando tratando especificamente do seu aproveitamento por movimentos sociais: (i) diagnóstica, quando se buscam as fontes de causalidade e se estabelecem quem são os responsáveis ou culpados por determinada situação; (ii) prognóstica, quando se delineiam a solução e as estratégias para atingi-la; e (iii) motivacional, com a conclamação de agentes para a ação coletiva e a criação de um vocabulário específico a ser empregado por todos (Benford & Snow, 2000, p. 614-617).

Especificamente no campo da difusão normativa, empreendedores normativos têm como objetivo enquadrar ideias e normas de maneira que ressoem positivamente com a audiência. O processo de enquadramento é, portanto, um mecanismo persuasivo usado para estabelecer significados, organizar experiências (prévias), alertar os outros sobre interesses e identidades em jogo e propor soluções para os problemas enfrentados. Permite a identificação, interpretação e dramatização de um tema ou evento, possibilitando que defensores ou opositores de uma norma criem, expliquem ou explorem significados sociais mais amplos. Um quadro estabelecido oferece uma interpretação singular de determinada situação e indica o comportamento adequado naquele contexto. Serve, portanto, para legitimar ordens normativas. Em cenários de normas promovidas por elementos coercitivos, as quais carecem de legitimidade, esse mecanismo se torna ainda mais necessário (Payne, 2001, p. 39-43).

Na terceira fase, a norma estrangeira é reconstruída, por meio do grafting e do

pruning, para se encaixar com as práticas e com as crenças locais, que, por sua vez,

também serão ajustadas de acordo com aquela norma. É um processo simultâneo de busca de um meio-termo. Na quarta fase, novos instrumentos e práticas são desenvolvidos, dentro dessa estrutura normativa mista que se desenvolveu (Archarya, 2004, p. 251).

A ênfase de Archarya é no processo doméstico e no papel que os diversos atores internos podem assumir na localização. Risse e Sikkink (1999, p. 11), por outro lado, ao descrever o processo de adesão de Estados ao regime internacional de proteção dos direitos humanos, destacam a importância que pressões externas podem ter como catalisadores do processo de mudança normativa dentro de um Estado. Uma reação inicial pode ser a adaptação puramente instrumental, ou seja, sem haver alteração de crenças e valores, o Estado se adequa, de alguma forma, à norma internacional em face da pressão sofrida, seja na forma de sanções e do corte de pacotes financeiros de ajuda, seja em ameaças à sua reputação. Essa reação é condizendo com a prescrição materialista de que o Estado faz o necessário para maximizar a sua utilidade, alterando comportamentos para alcançar suas metas.27

Se Archarya (2004, p. 269) oferece uma estrutura teórica capaz de explicar como os “agentes locais promovem a difusão normativa ao tomar e modificar normas internacionais de acordo com suas crenças e práticas normativas pré-constituídas”, faz-se necessário recorrer àquela literatura desenvolvida anteriormente para compreender o papel das pressões externas como propulsoras desse movimento de difusão. Combinar essas duas perspectivas é não só possível, como necessário, já que a forma de exercício dessa pressão impactará sobremaneira o processo de localização.

Outro ponto importante para a difusão normativa é a existência de redes de advocacia transnacionais28 e as ligações entre elas nos níveis global, regional e nacional. Elas podem promover normas, exigindo o seu respeito pelos governos e apontando eventuais violadores. Referindo-se, inicialmente, às redes de advocacia relacionadas a

27 Essa é a primeira fase conhecida como adaptação e barganha estratégica. Na estrutura proposta por Risse

e Sikkink (1999), existem duas outras fases: argumentação e persuasão (as normas influenciam o comportamento do Estado, que desenvolve novos entendimentos coletivos que integrarão sua identidade e definirão seus interesses) e institucionalização e habitualization (quando os atores domésticos tomam como ponto de partida o cumprimento da norma, que já foi internalizada).

28 Definidas como “uma rede de advocacia transnacional inclui os atores trabalhando intencionalmente em

uma questão, ligados por valores compartilhados, um discurso comum e densas trocas de informação e serviços· . Podem ser compostas por atores econômicos, empresas, cientistas e ativistas. São motivadas por valores e não preocupações materiais. Cortando fronteiras, atuam no espaço transnacional, multiplicando caminhos de acesso ao sistema internacional e construindo links entre sociedades civis, Estados e organizações internacionais (Keck & Sikkink,1998, p. 1-2).

Direitos Humanos, Risse e Sikkink (1999, p. 18) chamam de “bumerangue” a estratégia de grupos domésticos que buscam apoio diretamente (evitando o Estado) nas redes globais, para adquirir recursos, conhecimentos ou acesso que sejam fundamentais na luta por uma demanda em particular.

Serão mais importantes para este estudo, entretanto, as redes transnacionais de regulação – definidas como redes horizontais que reúnem reguladores (agentes estatais) de uma área temática para trocar informações, propor programas de cooperação técnica e treinamento, e para compartilhar ‘boas práticas’ (Slaughter, 2004, p. 19). Justamente porque o Grupo de Ação Financeira constitui uma dessas redes (Slaughter, 2004, p. 6), exercendo papel fundamental na difusão normativa é que essas redes e sua dinâmica particular de funcionamento serão importantes para o presente trabalho.