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Como a Literatura Infantil contribui para o desenvolvimento da subjetividade da criança?

1.2. Literatura Infantil

1.2.3. Como a Literatura Infantil contribui para o desenvolvimento da subjetividade da criança?

A literatura infantil explora, através dos contos de fada mais conhecidos pelas crianças e pelos adultos, em versões de vários escritores, a relação com a vida, com os sentimentos que se constroem no espaço e no tempo das narrativas. Nessa

perspectiva, a psicanálise pode ser uma chave de compreensão para analisar como os contos fada provocam emoções nas crianças, desenvolvendo a subjetividade, levando-as a pensar, a refletir sobre como agir e sobre o que podem fazer em situações de conflito. Além disso, a literatura também tem a capacidade de dar prazer ou divertir. A literatura infantil desenvolve a consciência de mundo em seus leitores, as crianças. A literatura infantil é arte (COELHO, 2000).

A importância dos contos tradicionais para a construção e o desenvolvimento da subjetividade humanas já foi estudada e demonstrada, especialmente por Bruno Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos contos de Fadas. Essa obra foi uma experiência pioneira em interpretar exaustivamente os contos fada a partir da teoria psicanalítica, ressaltando que seu uso pelas crianças contemporâneas visa a ajudá-las na elaboração de seus conflitos íntimos. (CORSO; CORSO, 2006, p.21)

Bettelheim explica a importância de as crianças terem contato com as histórias, pois essas têm influência na subjetividade das crianças. A vida das crianças tem conflitos, elas têm medos, angústias, dificuldade de lidar com separações e com mortes, incertezas com o futuro. As histórias ajudam as crianças a elaborarem seus medos e suas angústias, pois trazem conteúdos vivenciados pela humanidade, revisitados pela fantasia.

As histórias, como por exemplo os contos de fada, têm um valor moral a transmitir porque oferecem à imaginação das crianças novas dimensões que seriam impossíveis de descobrir por si só. A forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem às crianças imagens através das quais ela pode estruturar os seus devaneios e, assim, orientar-se melhor na vida. As histórias influenciam o inconsciente da criança, estabelecendo regras comportamentais. (MORGADO, 2011, p.159)

Por exemplo, na fábula Vênus e a gata3, a criança é levada a perceber que uma mudança é exterior, não leva necessariamente a uma mudança interior. Em nossa pesquisa aqui descrita, quando perguntamos às crianças, participantes da pesquisa, após

3Uma gata se apaixonou por um rapaz e pediu por favor a Vênus que fizesse com que ela virasse moça,

pois achava que assim podia conquistar o rapaz. A paixão era tanta que a deusa ficou com pena e transformou a gata numa linda garota. O rapaz se apaixonou por ela no mesmo instante e pouco depois os dois se casaram. Um dia Vênus resolveu verificar se a gata tinha mudado por fora e mandou um rato passear pelo quarto onde estava o casal. A garota, completamente esquecida de quem era, correu atrás do rato para agarrar o bicho. Parecia que estava querendo comer o rato na mesma hora. A deusa, vendo aquilo, ficou tão contrariada que imediatamente transformou a moça de novo em gata. Moral: A aparência pode ser mudada, mas a natureza não. Do livro Fábulas de Esopo Companhia das Letrinhas. Disponível

assistirem ao vídeo dessa fábula, se elas já pensaram em mudar para ouvintes, metade delas respondeu que gostaria de mudar para ouvinte, para ajudar os surdos. Outra metade respondeu que não, pois preferiam permanecer como surdos. Isso mostra que há uma aceitação da surdez por metade delas, que não se sente inferiorizada por sua diferença. Por outro lado, a outra metade que respondeu que mudaria para ouvinte, sente que há uma condição de solidariedade de alguns ouvintes que se mobilizam pelas causas surdas.

Vieira (2012), em sua obra Manual básico de cidadania, citando Freud, explica a importância da relação entre o comportamento de um ser humano adulto e os acontecimentos de sua infância. Desse modo, as histórias de contos fadas, entre outras, são elementos da infância que provocam o estado psíquico da criança, pois a arte literária expressa os desejos conscientes ou inconscientes. A literatura nos fornece c digo de compo amen o e aje ia de de en ol imen o, ao me mo empo em q e nos forneceram termos com que pensar sobre o que acontece em nosso mundo (TATAR, 2004, p. 9). Todas as histórias têm aspectos que orientam as crianças no sentido de descobrir a sua identidade e têm uma natureza subjetiva que provoca efeitos sobre o comportamento.

Os psicólogos e os psicanalistas recorreram a contos de fadas como estratégias terapêuticas para ajudar crianças e adultos a resolver seus problemas relativos aos dramas ali representados. E iden emen e, pe onagen de con o n o o pacientes, e nenhuma deles recebe algum tipo de diagnóstico. Trata-se apena de histórias que nos permitem abordar questões sobre os sonhos e pesadelos dos seres h mano (CORSO; CORSO, 2006, p.22).

Todos os contos são materiais riquíssimos na simbolização de sentimentos como medo, frustação, fantasia, entre os outros, que os leitores enfrentam p icologicamen e. Ing e ando no m ndo da fan a ia e da imagina o, c ian a e adultos, garantem para si um espaço seguro em que os medos podem ser confrontados, dominado e banido (TATAR, 2004, p. 10). Po e e mo i o, a li e a a de e ia fa e parte das experiências educacionais das crianças surdas, envolvendo o seu caráter subjetivo, de forma que lhes permita se identificar com personagens e/ou heróis.

Na criança surda acontece o mesmo, é a partir do conto que ela constrói a sua identidade e adivinha a sua vocação. Por esse motivo necessita de aceder às histórias, incluindo aquelas que tratam temas de

surdos, como é o caso de Mamadu, o herói surdo (MORGADO, 2007) e Sou asas (MORGADO, 2009). (MORGADO, 2011, p. 160)

O magnífico pesquisador Bettelheim, especialista em psicanálise infantil, se apropria profundamente da psicanálise freudiana, relacionando-a à literatura. Segundo o psicanalista, através da literatura, muitos conceitos da vida humana são apresentados e elaborados, como, por exemplo, a história Os três porquinhos, que mostra as vantagens de amadurecer, pois o porquinho mais velho e mais sábio fez sua casa de tijolos, tão forte que o lobo não conseguiu destruir. O tijolo representa o material mais duro, que simboliza a necessidade de ter mais resistência e segurança (BETTELHEIM, 2014).

Nessa perspectiva, o conto As luvas mágicas do Papai Noel, escrito por Alessandra Klein e Cláudio Mourão, tem a possibilidade de estimular a autoestima das crianças surdas, permitindo que elas reconheçam sua própria língua. Muitas vezes, as crianças surdas chegam à escola, sem ter uma língua. No contato com o adulto surdo, ela se percebe igual a eles. Essa identificação promove um alento à sua angústia de solidão. Histórias que tematizam a surdez têm também essa capacidade. No citado conto, as luvas têm poderes mágicos especiais, quem usa as luvas aprende a Língua dos Sinais. O primeiro a aprender é o próprio Papai Noel, depois algumas crianças, pois a tarefa é a seguinte: sempre passar adiante as luvas para que outros possam aprender. Nesse conto, há uma simbologia alusiva à cultura surda: a luva simboliza a língua de sinais, a qual é defendida pela comunidade surda como a língua de instrução na ed ca o do do. A co a l e colhida pa a ep e en a Se do . Seg ndo Ladd (2003), essa cor é um símbolo em homenagem a todos os sujeitos surdos que morreram usando a estrela de Davi da mesma cor no peito, nos campos de concentração, durante o nazismo alemão.

Co o e Co o (2006, p. 178) e plicam q e o con o de fada é terapêutico porque o paciente encontra sua própria solução através da contemplação do que a hi ia pa ece implica ace ca de e confli o in e no ne e momen o da ida . Também no processo educacional, e não somente na clínica, as histórias permitem às crianças refletir sobre o que acontece no momento, elaborar sentimento de perda, ang ia , of imen o . Uma hi ia pode no emp e a m en ido q e a p inc pio n o no o, ma d m con o no ao no o of imen o (CORSO; CORSO, 2006, p. 179). Por exemplo, uma criança surda, que esteja se sentindo sozinha neste mundo, porque é diferente do ouvinte que se comunica usando a fala, pode achar no conto As

luvas mágicas do Papai Noel uma ideia que defina sua angústia: ela pode acreditar que as crianças surdas não poderiam se comunicar o Papai Noel, mas poderia imaginar que as luvas transformariam as pessoas em sinalizantes, inclusive o próprio Papai Noel, permitindo assim a comunicação dele com todas as crianças surdas. A partir disso, ela poderia fantasiar uma hipótese sobre seu sofrimento e, com isso, reduzir sua angústia.

No caso das histórias que tematizam a surdez, é necessário que o narrador tenha, de fato, experimentado a surdez no próprio corpo, para poder falar sobre ela. É o que discutiremos a seguir sobre literatura e representação.