• Nenhum resultado encontrado

Os elementos da Rítmica Corporal

6 O MAPA DA APRENDIZAGEM DA RCIM

6.1 PROCEDIMENTOS E ESTRATÉGIAS NA EXPERIÊNCIA COM A RCIM

6.1.2 Como o participante “resolve” o desafio?

Parece que os princípios organizativos de alternância, justaposição e interferências quando operacionalizados nos exercícios de RCIM geram processos de inibição, automatização e simulação no orientando participante. Sabe-se que tais processos existem naturalmente em cada indivíduo, mas o que se ressalta neste texto é a intencionalidade de provocá-los nos participantes durante a prática de RJD ou de RCIM.

6.1.2.1 Inibindo para gerar o autocontrole

Jaques-Dalcroze (1914, p.95) propôs desenvolver a faculdade da inibição motora em

seus alunos: “O ritmo musical consiste em movimentos e repressões de movimentos”.127

Com isso, afirmava que o controle do movimento expressivo somente se daria com o treino da capacidade inibitória. Ao reprimir conscientemente os movimentos, cria-se a possibilidade de escolher entre eles. Assim, paradoxalmente, nesse caso a repressão leva à espontaneidade, ou

melhor, à inventividade, pois “para o corpo integrar movimentos complexos, a mente deve lidar com e priorizar múltiplas mensagens” (SCHNEBLY-BLACK; MOORE, 2003, p.33).128

A não atividade muscular, por exemplo, era, para Jaques-Dalcroze, resultado da inibição. Ao fazer uma pausa no movimento plástico corporal ou uma pausa sonora, exercitava-se deliberadamente a inibição motora. Essa pausa, provocada pela inibição, é uma não-ação ativa, dotada de completude e expectativa. É a inibição bem-sucedida que levará à realização dos exercícios. Assim, a RCIM também possibilita a experiência inibitória consciente, pois compartilha com a RJD procedimentos com pausas, necessidade de escolha da resposta adequada ao estímulo, rapidez de reação diante de uma variação no exercício.

Jaques-Dalcroze já havia considerado que, com os exercícios de caminhar pelo espaço no tempo da música, alterando velocidades e respondendo às variações propostas pelo

127 Musical rhythm consists of movement and repressions of movements.

professor, o praticante aprenderia, pela inibição, a criar contrastes, diversificando a duração e a intensidade em seus movimentos. Com isso, ele pensava estar desenvolvendo o que denominou inteligência musical, compreendida como o conhecimento de música. Além disso, a inibição promove o automonitoramento na realização da tarefa, ao possibilitar a repressão de uma ação não desejada, que vem de maneira impulsiva, o que reforça a ideia de inteligência proposta por Jaques-Dalcroze.

A inibição é uma propriedade neural muito importante no aprendizado da RCIM em razão dos exercícios de resposta rápida, de livre iniciativa e das inúmeras variações contidas nessa prática. Berthoz (2009) afirma que a inibição é uma das grandes aquisições evolutivas porque permite a decisão, a estabilidade, aumenta a rapidez de seleção e de ação, sempre em relação ao ambiente-contexto. Inibir é tomar uma decisão; é não prestar atenção em elementos distratores; é escolher pela não-ação. Berthoz (2009) acrescenta que pensar é inibir e desinibir; que agir é inibir as ações que não queremos; e criar implica inibir as soluções automáticas e apressadas. Portanto, pode-se considerar que a inibição promove um espaço para o pensamento reflexivo sobre a ação, o que possibilita respostas coerentes com as demandas do ambiente-contexto (SCHUSTERMAN, 2008). A inibição pode, então, incitar a liberdade de ação.

6.1.2.2 Movimento automático ou automatismo motor?

Às vezes um movimento que surge de maneira automática resulta da incapacidade de inibir, de certa impulsividade que denota a falta de controle motor. O movimento automático, ou mecânico, diferencia-se muito do processo de automatismo. Jaques-Dalcroze (1914, p.96) valorizava o automatismo, como se pode notar no que diz a respeito desse processo:

Ações musculares, após a repetição constante, passam fora do controle do cérebro. Os reflexos novos podem ser criados, e o tempo perdido entre a concepção e a realização do movimento é reduzido a um mínimo indispensável. O cultivo de automatismos deverá ser efetuado em todas as nuances do tempo. A conformidade com essas nuances depende da percepção do grau de força muscular necessário para efetuar os movimentos. Automatismos devem ser capazes de serem substituídos por outros, sem esforço, podendo ser combinados e harmonizados em diferentes partes

do corpo.129

129 Muscular actions, after constant repetition, pass outside the control of the brain. new reflexes can be created,

and the time lost between the conception and realisation of the movement reduced to a strict minimum. The cultivation of automatisms should be effected in all nuances of tempo. Conformity with these nuances depends on the perception of the degrees of muscular energy necessary for effecting the movements. Automatisms should

Pode-se pensar, quando ele diz “fora do controle do cérebro”, que Jaques-Dalcroze afirmava que o automatismo não possui uma base física. No entanto, nesta tese considera-se que o “controle do cérebro” é o controle executivo da ação deliberada. Nesse caso, quando o movimento é resultante de um automatismo, não é necessário esse tipo de controle executivo. Também sua assertiva sobre a criação de reflexos pode ser questionada, tendo em vista que os reflexos são ações não mediadas pela consciência, não necessitando desta para ocorrerem.

Jaques-Dalcroze, todavia, parece dizer que se pode desenvolver maior velocidade de reação nas respostas motoras frente a estímulos apresentados, quando se desenvolvem respostas automatizadas concomitantemente a respostas controladas deliberadamente. Ou seja, parecia interessar-lhe a consolidação de uma aprendizagem motora que possibilitasse a atualização requerida pelas variações e também a correspondência entre os diversos tônus musculares em relação com as nuances de tempo da agógica musical.xvii

A justaposição, alternâncias e inversões de estruturas rítmicas são provavelmente facilitadas pela automatização de parte dos movimentos requeridos pela tarefa rítmica. O automatismo pode ser visto como mecanismo protetor capaz de liberar parte do córtex para tarefas novas, devido à ativação simultânea de vários outros circuitos (RIBEIRO; TEIXEIRA, 2009b).

6. 1.2.3 Simulando ao observar o outro

Processos de simulação neural de movimentos também parecem ocorrer na prática de RCIM por meio da observação da tarefa e dos demais participantes e de certos exercícios que estimulam a criação de imagens mentais. Também nesse caso poder-se-ia perguntar: em que tipo de prática corporal não ocorre a simulação motora? Aqui, novamente, o que justifica incluir a simulação como parte desta tese é o fato de esta ter sido pensada como objetivo e conteúdo de RJD.

Jaques-Dalcroze afirmou que a prática de movimentos rítmicos desperta imagens na mente e que, quanto mais forte a percepção das sensações musculares, mais precisas seriam as imagens decorrentes dessa prática; e também criou exercícios de imagens mentais rítmicas. Jaques-Dalcroze (1914, p.95) esperava aprimorar a precisão mediante a inibição da parte visível do movimento concomitantemente ao pensamento sobre o movimento: “Ele continua o

be capable of replacement by others without effort; they may be combined and harmonized over different parts of the body.

movimento no pensamento”.130 A inibição da parte visível do movimento ocorre na RCIM quando se caminha no pulso e, ao ouvir o sinal, interrompe-se o movimento das pernas, mas acentua-se o pulso com palmas. Segundo Jaques-Dalcroze, a precisão do movimento decorrente da automatização relacionava-se à precisão das imagens mentais que também deveriam ser automatizadas. Ele ainda dizia que, quando o professor expunha o ritmo gestualmente, ele estava transpondo para o corpo a sua representação rítmica da consciência, e isso despertava involuntariamente uma representação na criança (JAQUES-DALCROZE, 1907).

Realmente parece haver uma forte similaridade neural entre movimentos executados e movimentos imaginados (JEANNEROD, 2008). Há, inclusive, a possibilidade de o sistema motor ressoar com as ações observadas (BOUQUET et al. 2007), como propunha Jaques- Dalcroze. Ressoar motoramente implica a simulação interna do movimento no cérebro.

Nota-se que realizar o movimento no pensamento, como proposto por Jaques- Dalcroze, é um exercício de imagem mental motora que vem sendo pesquisado a partir da década de 1980. Jeannerod (2008, p.24) declara que “a ação mental pode ser considerada uma

simulação da ação física”.131

Assim, executar mentalmente uma sequência de movimentos rítmicos pode ser uma boa maneira de certificar-se do que foi apreendido na prática ou de melhorar a compreensão da tarefa.

A vivência desses procedimentos neurais na RCIM ocorre unicamente por meio da experiência. Não há como conhecer de outro modo esse tipo de prática artística. Qualquer teoria ou reflexão sobre a RCIM advém somente da experiência prática do fazer corporal.

Com o mapeamento cognitivo-afetivo da RCIM, percebeu-se que sua natureza é complexa. Portanto, propõe-se que a experiência vivida nessa prática seja multidimensional. Abordar cada uma das dimensões da experiência da RCIM visa inventariá-las, buscar relações entre elas, e não separá-las.

130 He continues the movement in thought. ( grifo do autor)