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Os elementos da Rítmica Corporal

5 Aspectos cognitivos e afetivos da RCIM

5.3 ATENÇÃO SUSTENTADA EM FOCO: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE UM EXPERIMENTO

5.3.3 Discussão e reflexões

A segunda hipótese da pesquisa que gerou esta tese é que a RCIM está relacionada à maior capacidade atencional dos que a praticam, em relação ao grupo-controle. Por ser a RCIM uma prática corporal de forte cunho musical, pensou-se inicialmente que ela geraria um efeito de longo prazo na capacidade atencional de seus participantes. Isso porque a educação musical tem sido associada a um incremento cognitivo (SHELLENBERG, 2004). As pesquisas apontam tanto para a existência de efeitos cognitivos permanentes (HETLAND, 2000; RAUSCHER; ZUPAN, 2002) quanto transitórios (COSTA-GIOMI, 1999) em crianças. Em músicos profissionais adultos, constatou-se um impacto de longo prazo na atenção visual e maior eficiência na capacidade de respostas visuais e motoras (RODRIGUES, 2007).

Tendo em vista que o grupo-caso ficou sem praticar a RCIM por três meses antes de se submeter pela primeira vez ao CPTII, e que não foi constatada nenhuma diferença significativa entre os resultados do grupo-controle e do grupo-caso antes da prática, pode-se inferir que a RCIM não produz um impacto prolongado na capacidade atencional de seus praticantes.

A comparação entre os dados do grupo-caso antes x grupo-caso depois da prática demonstrou uma tendência de diminuição do tempo de reação após a prática. Os atores do GOM também relataram estar mais bem-dispostos e atentos depois de realizar a RCIM. Para os atores do GOM, a capacidade de responder prontamente aos diversos estímulos e demandas multissensoriais presentes na RCIM e nos seus espetáculos é extremamente necessária e valorizada. Jaques-Dalcroze já declarara que não somente os músicos, mas também dançarinos e atores deveriam desenvolver maior velocidade de compreensão das informações constantes na música e, principalmente, no contexto de sua atuação artística (JAQUES-DALCROZE, 1914).

Portanto, foi necessário indagar se haveria algum problema na análise dos testes, tendo em vista os dados obtidos pela análise subjetiva dos atores após a experiência corporal do ritmo e, principalmente, devido à importância que tem um aumento de velocidade de reação no âmbito das práticas corporais cênicas. Considera-se que, no contexto desta tese, a velocidade de reação não implica necessariamente uma resposta objetiva a algo externo, mas sim resulta em capacidade de o participante ser afetado pela prática e então agir em decorrência disso.

Dois fatores podiam estar contribuindo para que a diferença observada não fosse estatisticamente significativa. Primeiro, está o fato de o CPTII ser comumente utilizado na

prática clínica em pacientes com transtornos neurológicos e psiquiátricos, o que poderia implicar a sua pouca sensibilidade para aferir parâmetros atencionais em indivíduos saudáveis (RICCIO, REYNOLDS; LOWE, 2001; ALVES, 2008; MIRANDA; SINNES; POMPEIA; BUENO, 2009). Segundo, a amostra referente ao grupo-caso é demasiado pequena. Como o que se investiga são os possíveis impactos atencionais decorrentes da prática de RCIM, e os atores do GOM a praticam de modo sistemático, não foi possível aumentar o n do grupo-caso. Então, decidiu-se empregar a estratégia estatística que permite extrapolar os dados obtidos, o

Bootstrapping Statistical Analysis.

O resultado da análise da comparação entre o grupo-controle x grupo-caso continuou sem apresentar diferenças estatísticas, reforçando a argumentação de que o tempo de prática dos integrantes do GOM não é suficiente para gerar um efeito de longo prazo na capacidade de atenção. Já o resultado da análise do grupo-caso antes x grupo-caso depois da prática apresentou diferença no tempo de reação. Esse aumento de velocidade no processamento cognitivo pode ser coerente com a sensação subjetiva de capacidade atencional aumentada relatada pelos atores. No CPTII o tempo de reação é um dos paradigmas de atenção e revela a medida da velocidade de respostas corretas. A rapidez na capacidade de processamento parece estar associada a um estado de atenção sustentada e difusa que, imbuída de atenção executiva, possibilita a efetivação da escolha de resposta adequada diante de estímulos diferentes, como frequentemente solicitado na RCIM.

Considera-se que a velocidade aumentada na capacidade de processamento pode estar relacionada à maior capacidade de tomada de decisão. No caso da prática de RCIM e no contexto dos espetáculos do GOM, os atores, além de tomarem decisões a todo instante, devem estar prontos para responder aos estímulos, que são, em geral, imprevisíveis. O estar atento de modo ativo significa, na RCIM, estar receptivo. A receptividade é fundamental para os espetáculos do GOM, nos quais os atores lidam com diversos materiais, de tamanhos e pesos variados, simultaneamente ao uso do corpo com movimentos expressivos, uso da voz com textos, além da imaginação na criação de situações e personagens. O treino cognitivo- afetivo experienciado ao fazer a RCIM parece ser propício a essa disponibilidade cênica.

A receptividade corporal apresenta-se como tendência de manutenção de um estado de prontidão atencional, que, por sua vez, possibilita respostas corporais mais rápidas.

Portanto, a receptividade não é uma condição passiva, mas sim “porosa”, no sentido que

propõe Ferracini (2011), ou seja, trata-se de atitude análoga à escuta ativa, somada à capacidade de inclusão do outro. O estado de prontidão relaciona-se com o estado de alerta que, de acordo com Damásio (2000), implica uma visível inclinação para perceber e agir.

Ressalta-se que a velocidade de reação aumentada não significa maior precisão. A inclinação para a ação reforça a condição processual de possibilidade e não assegura um resultado

considerado “correto”. Tanto a adequabilidade das respostas quanto sua precisão deverão ser

monitoradas pela atenção executiva, que inclui outros processos cognitivos. Estar em prontidão, no contexto desta tese, tem relação com estar imerso na experiência do fazer atento.

Como num sistema que se retroalimenta, ou sistema autopoiético, o aumento da velocidade de reação incrementa a prontidão, que por sua vez gera maior receptividade, possibilitando a escuta ativa e porosa, e mais prontidão por meio da atenção sustentada e

difusa. Esse conjunto de aspectos cognitivos ─ processamento cognitivo, atenção, tomada de decisão ─ estão intimamente relacionados em processos de criação artística.

Com os resultados da análise qualitativa da percepção subjetiva do grupo-caso acerca dos sentimentos após a prática de RCIM, pode-se reiterar que os aspectos cognitivos estão imbricados com os afetivos. A alteração qualitativa da disposição e o maior número de atores alegres no pós-prática indicam que a RCIM parece impactar a motivação. Pode-se pensar, inclusive, que a alegria e o sentimento de disposição podem ser decorrentes do prazer de ter experimentado diversos desafios na RCIM, assim como sugeriram Schnebly-Black e Moore (2003) em relação à RJD.

Portanto, se o modelo utilizado estava correto, e se a exigência de mensuração foi satisfeita, pode-se inferir positivamente acerca da segunda hipótese desta tese, ou seja: a RCIM pode impactar positivamente a capacidade de atenção.

5.3.4 Ressalva

Ainda que Leark, Wallace e Fitzgerald (2004) tenham indicado que a reaplicação do CPT é confiável num intervalo de uma semana para crianças, e Soreni, Crosbie e Ickowicz (2009) relatado confiabilidade no teste-reteste com 15 dias de intervalo para crianças, pode-se considerar que o tempo mais adequado à reaplicação do CPTII deveria ter sido três meses depois da primeira aplicação, como propõem Zabel, Thompsen, Cole et al. (2009), devido ao risco do efeito de aprendizagem.

Como tratou-se de um experimento com grupo de teatro, o protocolo do desenho experimental também teve que ser flexibilizado para sua adequação às condições impostas pela amostra. Isso levou à necessidade de se realizar o re-teste logo após um mês da primeira aplicação do CPTII. O GOM tem agenda concorrida, e seus membros dedicam-se a uma série

de eventos, o que impossibilitou sua ampla disponibilidade para esta pesquisa. Portanto, a reaplicação foi feita depois do maior tempo conseguido.

Além disso, os resultados e reflexões decorrentes do experimento partem do pressuposto de que não se pretende aqui a construção de um experimento replicável, tratando- se de um resultado pontual e singular. Essas duas últimas características são geralmente qualificativas de objetos de pesquisa em arte cujos resultados não se destinam a re-aplicações em outros estudos.

Também é importante considerar que todos os aspectos cognitivos e afetivos apresentados como constituintes da experiência corporal na RCIM podem também ocorrer em outras práticas. No entanto, a observação e o experimento foram realizados com a RCIM, tema desta tese, em razão de esta prática considerar alguns desses aspectos como objetivo e conteúdo de seus exercícios. Futuramente pode ser interessante analisar outras práticas corporais artísticas, visando a verificação da ocorrência, ou não, desses aspectos.

Assim, realizar esse tipo de experimento no âmbito de práticas corporais artísticas com indivíduos saudáveis, num contexto de grupo de teatro, é um primeiro passo na tentativa de estabelecer um programa interdisciplinar e colaborativo entre arte e ciência.