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IONE DE MEDEIROS

2 PREMISSAS PARA PENSAR-AGIR A RÍTMICA CORPORAL DE IONE DE MEDEIROS

2.1 A CONTINUIDADE PARA O APRENDIZADO DA RCIM

2.1.1 Corpo-mente: a base para se pensar-agir o conhecimento no corpo

O problema mente/corpo reside nestes questionamentos: O que é a mente? De que é feita a mente? Onde ela está? Como se relaciona com o corpo? Na tentativa de elucidar esse problema, a discussão concentra-se, principalmente, nas questões da natureza da mente, da sua localização e da sua relação com o corpo. Vale adiantar que alguns pesquisadores consideram tal problema um falso-problema, seja porque a ciência já tem uma resposta para ele, seja porque não há suficiente teoria acerca da natureza do mundo físico que sustente essa discussão (BEAR; CONNORS; PARAISO, 2002; HANNA; THOMPSON, 2003). No entanto, a educação e, especificamente, os estudos de práticas corporais em arte revelam rastros de um dualismo mente/corpo (MERLINO, 2005). Assim, é necessário abordar o problema lembrando que abordar não significa resolver, mas problematizar ainda mais a questão, para incrementar reflexões a respeito do corpo-mente e de suas implicações práticas.

Filósofos gregos concebiam o corpo como canal para manifestação da inteligência divina, ou razão. A natureza era vista como um todo mecânico em contraposição ao divino, ao mental. Desse modo, o corpo era desvalorizado em favor da mente, considerada expressão da divindade (DEWEY, 1959 [1916]).

Platão, por exemplo, afirma que a alma dá vida ao corpo, sendo a fonte de conhecimento associada à razão, ao divino e à individualidade (CHAUI, 2002). Devido à relação da alma com o corpo, ele a subdivide em três tipos: a alma racional, a irascível e a concupiscente. A racional localiza-se na cabeça, sendo espiritual e imortal. A alma irascível, irracional e mortal, relaciona-se à proteção do corpo e situa-se no peito. A concupiscente, também irracional e mortal, é relativa aos desejos, localizando-se no ventre. A alma racional está aprisionada no corpo e tem o objetivo de retornar ao mundo das ideias, que se opõe aos sentidos próprios do corpo. Assim, o filósofo associa a alma racional à mente, localizando-a no mundo das ideias, o único verdadeiro e imitável; e, o corpo, ele o situa no mundo sensível. Com isso, a noção de mente é considerada como ideia, sendo independente e distinguível substancialmente do corpo.

Aristóteles instrumentaliza o corpo ao qualificar os seres de orgânicos (órganon, instrumento), e ao colocá-lo a serviço da alma (CHAUÍ, 2002). Assim como seu mestre Platão, Aristóteles considera que o homem possui várias almas: a nutritiva, a reprodutiva, a

locomotora, a sensitiva e a racional, sendo esta última característica dos seres humanos e a que lhes possibilita adquirir conhecimento. Aristóteles considera que a razão, emoção e memória pertencem à alma, e não separa pensamento de sensação, como o fez Platão, apesar de distingui-los. Se, para Platão, a sensação poderia ser um obstáculo para o exercício da razão e, por isso, indigna de estudo, Aristóteles a torna objeto de estudo e propõe um saber sensível por meio da consciência da sensação. Ainda que Aristóteles valorize o saber sensível, ele considera tanto a sensação quanto a percepção como processos da alma, e que só ocorrem por intermédio do corpo. Para ele, o encéfalo, que inclui o cérebro, é apenas um refrigerador do sangue, e o coração é que estaria associado ao intelecto (BEAR; CONNORS; PARADISO, 2002).20 O corpo e a mente continuam cindidos.

Filósofo e médico grego, mas representante do Império Romano, Cláudio Galeno, assim como o médico grego Hipócrates, relaciona o cérebro às sensações e à inteligência. Dissecando animais, Galeno, um dos primeiros anatomistas, considerava que o fluido vital, o espírito, passava por processos de purificação que incluíam os intestinos, o fígado e o sangue. Quando esses fluidos chegavam aos vasos sanguíneos da base do crânio, eram transformados em pensamentos, sentimentos e movimentos. Em seguida, os fluidos iam para os ventrículos

─ cavidades cerebrais ─ e determinariam o funcionamento do corpo. Com suas três almas,

Galeno considerou ter descoberto a base teórica para as almas de Platão: “A alma vegetativa do fígado seria responsável pelo prazer e pelos desejos, a alma vital do coração seria produtora das paixões e da coragem e a alma racional da cabeça seria responsável pelos

nossos pensamentos e ideias” (CORRÊA, 2010, p.31). O cérebro continuava sendo visto

como bomba que possuía espaços vazios, os ventrículos, nos quais se alojava o intelecto.

A visão “ventriculista” da mente perdura por toda a Idade Média (V- XV), e diminui a

pesquisa em busca da relação entre mente e corpo e da localização da mente ou alma, dado que investigar o corpo-cadáver passa a ser considerado um sacrilégio. O cristianismo divide a carne e o espírito, associando à primeira o pecado, e ao segundo a racionalidade e a redenção. Assim, o corpo e a mente permanecem separados. Conforme a doutrina cristã, Deus criou o espaço e o corpo e os colocou entre a eternidade e o tempo; de modo que Deus e sua manifestação, a alma, existiriam na dimensão transcendental do tempo, que é a eternidade, e o espaço e o corpo estariam na corrente finita do tempo. A imortalidade da alma se contrapõe à mortalidade do corpo, reforçando a separação corpo/mente. Segundo Yuasa (1987), a

separação entre mente e corpo ─ que é corresponde à separação tempo e espaço ─ marcou

20 O encéfalo, a medula e os nervos do corpo constituem o sistema nervoso. O cérebro, o cerebelo, o tronco encefálico constituem o encéfalo. Os hemisférios cerebrais constituem o telencéfalo.

fortemente o discurso filosófico ocidental, que tende a conferir mais importância ao tempo e às funções mentais que ao espaço e ao corpo.

No século XIV, durante a Renascença, outro importante anatomista, Andrea Vesalius, não concordando com a localização da mente sugerida por Galeno, realiza experimentos e verifica que os ventrículos humanos e os dos outros animais são muito semelhantes, descartando a possibilidade de as funções mentais humanas estarem neles localizadas. Tal assertiva não soluciona a questão, mas a problematiza e sugere, mesmo que indiretamente, que os animais não possuem mente. Leonardo da Vinci, ainda no século XVI, também testa a hipótese ventricular, mas apenas situa as funções mentais em cavidades diferentes, mantendo o dualismo mente/corpo.

A separação entre mente e corpo tem seu auge no século XVII, com as propostas de René Descartes, para quem a alma e o intelecto são características exclusivamente humanas.

Imbuído de uma visão mecanicista, afirmou que o espírito ─ alma ─ circulava em forma de

fluidos pelos tubos nervosos, levando as imagens visuais, por exemplo, até a glândula pineal, na qual se conectavam o corpo e a alma, ou seja, o corpo e a mente. Descartes postula a separação total entre alma e corpo, e afirma que a glândula pineal é o lugar onde se

comunicam a mente ─ entidade espiritual exterior ao corpo ─ e as sensações e comandos dos

movimentos (HOUZEL, 2005).

Coerente com as propostas medievais afinadas com o cristianismo, Descartes sugeriu a separação das substâncias corporal e mental em res extensa ─ matéria corporal que ocupa espaço, e res cogitans ─ mente descorporificada.21. Sua célebre frase “penso, logo existo” indicou a supremacia da mente no processo do existir, independentemente do corpo e das ações do corpo no ambiente.22 Para o neurocientista Damásio (1996), esse é o erro de Descartes.

Também no século XVII, o filósofo Baruch Espinosa concebe a alma humana como a ideia do corpo humano e, contrariamente a Descartes, sugere que a união da mente com o corpo não é apenas uma mistura de coisas distintas, mas expressões distintas de uma mesma e única substância (GLEIZER, 2005). Desse modo, ele anuncia a possibilidade de se pensar mente/corpo como continuidade corpo-mente e de se compreender a percepção como ação do corpo no ambiente. Para o filósofo, o corpo modificado em razão de sua interação com o ambiente é que propiciará o conteúdo perceptivo da alma. Espinosa surpreende ainda mais,

21 Res extensa é a coisa extensa, o corpo. Res cogitans é a coisa pensante, a mente.

22 A célebre frase causou incômodo na esfera religiosa por incentivar a busca da verdade, confrontando com a

visto que em pleno período de domínio da razão sobre o corpo e a emoção, ele teoriza que o conteúdo cognitivo parte das ideias do corpo alterado, e se dedica ao estudo dos afetos. Com Espinosa esboça-se a diluição da hierarquia entre mente e corpo, assim como entre razão e emoção. Séculos depois, o seu pensamento embasa filosoficamente as hipóteses de Antonio Damásio acerca da íntima relação entre corpo, emoção, sentimento e consciência, como se verá ainda neste capítulo.23

Ainda no século XVII, Thomas Willis contrapõe as ideias de Descartes, retirando as funções mentais dos tubos neurais em contato com a glândula pineal e as localiza nos giros cerebrais. Entretanto, Willis ainda via a mente sob a forma de fluidos. Apenas no século XIX, Franz Joseph Gall localiza a mente no córtex cerebral, e esta passa a ser compreendida como produto da atividade cerebral. Como o córtex possui diferentes regiões, Gall sustentava que as diferentes funções mentais estariam situadas em distintos lugares do cérebro. Em 1813, Johann Gaspar Spurzheim publica as ideias de Gall e propõe a Frenologia, teoria segundo a qual as faculdades mentais como esperança, desejo de viver e autoestima, entre outras, estão equivocadamente relacionadas à forma das protuberâncias do crânio.24

Na metade do século XIX, Paul Pierre Broca demonstra a localização cerebral do setor da linguagem, mais especificamente do centro da fala. Essa descoberta reforça as ideias de Gall, e a teoria ganha o nome de Localizacionismo, que situa cada função num lugar específico do cérebro. O Localizacionismo contrapõe-se ao Holismo de Karl Lasley, para quem as funções superiores dependem de uma organização dinâmica do cérebro como um todo e são comandadas por leis cerebrais como a equipotencialidade e a lei de ação de massa.25

Com a descoberta do neurônio por Santiago Ramon y Cajal na virada do século XX, surge a teoria Neuronal, que “compreende o sistema nervoso como um conjunto de células individuais, especializadas segundo a região do cérebro, e organizadas ordenadamente em um

sistema complexo” (HOUZEL, 2005, p. 203). Como nem todas as áreas do cérebro são iguais

e parecem ter funções diferentes, o Holismo enfraquece. Nesse momento, K. Brodmann identifica 52 áreas cerebrais com organização distintas. A descoberta de Brodmann ainda hoje

23 Ressalta-se que vários foram os estudiosos de Espinosa, e por isso diferenciam-se as interpretações de sua

teoria. Há o Espinosa de Damásio, o de Deleuze e o de Chauí, entre outros.

24 A Frenologia é uma teoria que considera a possibilidade de conhecer acerca do caráter e da personalidade pelo

estudo das protuberâncias da cabeça.

25“A equipotencialidade designa a capacidade de qualquer porção intacta de uma área funcional desempenhar,

sem perda de eficiência, as funções de outras áreas danificadas. A ação de massa diz que a eficiência do desempenho de uma função complexa diminui proporcionalmente à extensão da lesão de áreas não

é referência nos estudos cerebrais e corrobora a Teoria Neuronal e também o argumento de que a mente localiza-se no cérebro, sendo manifestação da matéria. Tais perspectivas ligadas à natureza e localização da mente e à sua relação com o corpo geraram correntes filosóficas distintas: o dualismo e o monismo.

No dualismo cartesiano, a mente é algo não físico, temporariamente conectado a um corpo, sendo independente dele. Embora independente do corpo, a mente é que torna possível um corpo ser considerado próprio, e não de outra pessoa. Para Churchland (2004), o dualismo de substância de Descartes gerou dualidades como a concepção popular sobre a existência de um espírito dentro de um corpo.26 No entanto, o dualismo não responde à questão sobre o modo como a mente e o cérebro se influenciam mutuamente, pois,

se a mente é imaterial e totalmente independente do cérebro, como explicar que danos causados a este último possam também afetar as atividades mentais? E, se a mente é imaterial e independente do cérebro, por que temos então um cérebro tão complexo comparado com o de outros seres vivos? (TEIXEIRA, 2000, p. 24).

Frente a esse tipo de questionamento, os monistas materialistas afirmam que a mente é uma variação dos estados físicos e químicos do cérebro. Entre os monistas há aqueles que consideram os estados mentais como cerebrais ─ são os propositores das teorias da identidade

─, os que reduzem a mente a condições físico-químicas cerebrais ─ são os reducionistas ─, e

os que concebem a mente como algo que emerge da atividade cerebral, e estes são os que propõem as teorias da superveniência.

Para os monistas reducionistas, os estados subjetivos nada mais são que um tipo de manifestação do mundo físico (TEIXEIRA, 2000). Com o surgimento das técnicas de imageamento cerebral ─ tomografia por emissão de pósitrons nos anos 1970, ressonância

magnética na década de 1980 e ressonância magnética funcional nos anos 1990 ─, que

medem a relação entre a atividade mental, o metabolismo cerebral e o consumo de oxigênio e glicose, evidencia-se a relação entre áreas cerebrais e funções mentais, portanto, a relação entre corpo e mente. Cabe, porém, reforçar que, além da ativação da área esperada, várias

26 Há também o dualismo de propriedades, que, de acordo com Churchland (2004), são especiais e não físicas

como sentir dor, ter a sensação das cores, pensar, desejar e amar, entre outras. O dualismo naturalista (CHALMERS, 1996) não reduz a consciência ao cérebro e consiste de princípios que possibilitam a conexão entre processos físicos com as propriedades da experiência.

outras são ativadas durante uma determinada atividade, o que indica que o funcionamento cerebral se dá pela coordenação do trabalho de várias regiões do cérebro.

Deve-se acrescentar que o sistema nervoso apresenta uma vocação de integração que marca sua essência de unidade. Essa é a hipótese do integracionismo. A ideia de que o mental se distribui pelo sistema nervoso, que, por sua vez, se distribui por todo o corpo, parece ser uma das concepções mais adequadas às pesquisas contemporâneas com tendências à integração no funcionamento cerebral (TEIXEIRA, 2000). Além disso, a ativação de uma área significa apenas que ela está ativa, podendo ser essa uma atividade excitatória ou inibitória.

No entanto, apesar do desenvolvimento e refinamento dos argumentos monistas, o dualismo mente/corpo marca profundamente os discursos filosóficos e educacionais, por exemplo, com a cisão entre razão e conhecimento prático, ou seja, entre conhecer e fazer: mente x corpo. A razão associada ao ato de conhecer foi considerada superior e definitiva, não estando sujeita às instabilidades humorais do comportamento, como acontece no fazer. Essa impossibilidade de coexistência entre conhecer e fazer gera as excessivas distinções e pouca interação entre teoria e prática. Também aí está o problema de o conhecimento ser visto como algo fora do corpo, que se instala na mente racional e, portanto, prescinde dele. Assim como o corpo, as sensações, as emoções, percepções, a imaginação são excluídas da equação do conhecer (JOHNSON, 1987).

A separação entre corpo e cérebro é também uma das heranças cartesianas. No entanto, essa herança pode ser questionada, dado que as células que compõem o cérebro são também corporais. O que diferencia o corpo do cérebro é que este último permite a comunicação do corpo consigo próprio, ou seja, o cérebro comunica-se com o corpo propriamente dito. O corpo envia sinais ao cérebro pelas vias sensoriais aferentes, e o cérebro envia sinais ao corpo pelas vias eferentes e também para suas próprias estruturas, por vias

corticais. Essa interação se dá por sinais neurais ─ pelos nervos ─ e químicos, pela corrente

sanguínea. Assim, tanto os pensamentos podem induzir estados corporais, como o corpo pode alterar a base neural dos pensamentos. Um recebe sinal do outro e ambos interagem com o ambiente por meio dos sistemas motor e sensorial. As informações resultantes da interação do sujeito com o mundo chegam ao cérebro por intermédio do corpo. O cérebro mapeia o corpo alterado pela interação e comunica-se com o ambiente.

O fundamental é estabelecer a distinção, e não a separação, entre corpo e cérebro. Ao afirmar que ambos constituem um sistema de comunicação não se quer dizer que sejam a mesma coisa, ou redutíveis um ao outro. O cérebro faz parte do corpo, o qual, por sua vez, não é o cérebro, e não é redutível a representações ou mapas cerebrais. Além disso, para se ter

um cérebro é necessário um corpo, o que não implica que todo organismo que possua um corpo tenha cérebro (DAMÁSIO, 1996).

Mas a herança mais forte que os dualistas deixaram é, segundo Teixeira (2000), a divisão do mundo em duas partes: a visão subjetiva característica da arte e a visão objetiva da ciência como pontos de vista incompatíveis entre si. Destaca-se a forte influência, nesse dilema filosófico, da teoria da evolução das espécies em 1859, de Charles Darwin, e da teoria da relatividade, de 1905, de Albert Einstein. Darwin propôs a compreensão dos comportamentos como resultados de um processo evolutivo, o que gerou a teoria naturalista

da mente, que a concebe como parte de um sistema físico, apresentando uma „solução‟ para a

questão da natureza da mente. Einstein afirmou que o tempo deveria ser entendido como dimensão da realidade física em total dependência da posição e do movimento do observador, de maneira que tempo e espaço passam a ser indissociáveis. Tal assertiva gera outra continuidade fundamental para a compreensão desta tese: o espaço-tempo. Como os estados mentais ocorrem no tempo que é inseparável do espaço, então eles ocorrem também no espaço. A mente passa a ser entendida como res extensa, parte do corpo, o que corrobora a visão monista.

Mais recentemente, o desenvolvimento das técnicas de neuroimagem vem confirmando essa perspectiva, dado que elas estabelecem o paralelo entre funções mentais e atividade em determinadas regiões cerebrais (VELMANS, 1990; 2002; HAMEROFF; PENROSE, 1996; KOCH; TSUCHIYA, 2006). Em decorrência da continuidade espaço- tempo e da inerente dependência do ponto de vista do observador na observação dos fenômenos, fragiliza-se a possibilidade de haver objetividade considerada neutra frente aos objetos de investigação científica.

Concorda-se com Damásio (1996, p.282) quando ele reitera sua visão monista e afirma:

No entanto, a mente verdadeiramente incorporada que concebo não renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento, aqueles que constituem sua alma e seu espírito. Do meu ponto de vista, o que se passa é que a alma e o espírito, em toda a sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e únicos de um organismo. Talvez a coisa mais indispensável que podemos fazer no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seria recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam. É claro que essa não é uma tarefa fácil: tirar o espírito do seu pedestal em algum lugar não localizável e colocá-lo num lugar bem mais exato, preservando ao mesmo tempo sua dignidade e sua importância; reconhecer sua origem humilde e sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua orientação e conselho.

A sedução dualista, entretanto, é bastante forte, pois promete, entre outras coisas, uma existência após a morte, possibilitada pela mente ─ alma ─ eterna.27 Mas nesta tese, parte-se da visão monista, segundo a qual o corpo contribui com o conteúdo essencial para o funcionamento da mente, cuja natureza é física. Conforme Johnson (2008), a mente localiza- se no complexo e interativo processo que envolve o cérebro e o corpo propriamente dito, ambos engajados no ambiente sócio-cultural. Para Damásio (2010), a mente consciente não tem localização precisa, mas é resultado da articulação das atividades neurais que ocorrem em varias regiões do cérebro, e sua função maior é gerir e proteger a própria vida. Por outro lado, Dewey (2005 [1934]) afirma que a mente é um processo mais complexo de organização que

emerge da experiência do corpo integral ─ do corpo-mente ─, e que, com o advento da

linguagem, passa a denominar emoções e movimentos.28 E, na visão de Schustermann (2008), a vida mental é a expressão do corpo e não está necessariamente relacionada à aquisição da linguagem discursiva, apesar de poder desenvolvê-la e utilizá-la.

Concorda-se com Yuasa (1987) quando ele afirma que abordar a continuidade corpo- mente implica considerar sua complexidade e o fato de ser operada por conexões flexíveis. Além disso, Yuasa (1987) diz que tal continuidade pode ser cultivada com exercício prolongado, ou seja, com treinamento. Esse filósofo oriental contribui para a reflexão nesta tese ao caracterizar o treinamento como prática disciplinada por meio da qual se trabalha um determinado modo de fazer associado ao enriquecimento da própria personalidade. Aqui importa acrescentar que esse treino de si e da prática não tem fim, devendo ser realizado ao longo da vida artística. Ao considerar que a continuidade corpo-mente pode ser cultivada pela prática, Yuasa credita uma dimensão prática ao problema corpo-mente e o coloca como questão de experiência vivida, reforçando que a prática deve anteceder a teoria, como propõem os artistas-professores aqui estudados.

Portanto, é fundamental compreender que abordar os aspectos do movimento

expressivo ─ elementos como tônus, direção, peso e ritmo ─ desconsiderando a cognição, a

consciência e os afetos, como se esses não fossem físicos, é uma maneira de reiterar o dualismo na atualidade. No entanto, saber da materialidade das funções mentais e de sua