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Os elementos da Rítmica Corporal

4 TECENDO A REDE DA RCIM: AMBIENTE E RESSONÂNCIAS

4.1 A RCIM E A METÁFORA DA REDE

4.1.3 Mais um dos pontos: Brita Glathe-Seifert

Por volta de 1980, a educadora Madalena Gastelois presenteia Medeiros com a obra

Initiation à la Rythmique, de Brita Glathe-Seifert. Esse livro enfatiza a prática de exercícios

destinados a crianças de até dez anos de idade e foi esclarecedor para Medeiros, orientando

vários dos procedimentos trabalhados na RCIM. “Foi um estímulo superinteressante. [...] foi o livro mais importante que eu li de suporte para o ensino” (MEDEIROS, 2010a).

Glathe-Seifert apresenta os motivos organizadores de seus exercícios ressaltando-lhes os aspectos cognitivos e afetivos e a autopercepção e percepção do coletivo. Vale lembrar que o motivo que organiza um exercício é, ao mesmo tempo, conteúdo trabalhado e objetivo que se pretende alcançar. No entanto, esclarece a autora, apesar de os exercícios serem apresentados no livro sob cada um dos motivos, um único exercício pode trabalhar vários deles. São estes os motivos: desenvolvimento do sentido de ordem, do sentido social, da atenção, da percepção auditiva e visual; a formação de conceitos; a educação do ouvido; exercícios de memória e de improvisação. Os exercícios de Glathe-Seifert podem ser trabalhados com, ou sem, material.79

Medeiros avalia, em seus estudos teóricos, que os exercícios de Glathe-Seifert devem ter variantes observando-se a alternância entre tensão e relaxamento (MEDEIROS, 1980). A variante auxilia na manutenção do estado de concentração, por proporcionar desafios para o professor e aluno. A criação de variantes de exercícios requer do professor uma atitude constante de invenção. Para o aluno, propicia expectativa motivadora, que torna lúdica a experiência rítmica. Tais exercícios partem de uma filosofia educacional própria da Escola Ativa, segundo a qual os alunos não recebem passivamente o conhecimento; ao contrário, a descoberta e exploração das relações espaço-temporais acontecem numa construção conjunta, em que o artista-professor propositor auxilia os aprendizes. A tabela a seguir traz os motivos- objetivos dos exercícios de Glathe-Seifert, com os respectivos exemplos.

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Os materiais propostos por Glathe-Seifert são “pauzinhos chatos; pauzinhos sonoros; bolas de borracha; balão;

bastão (1m de comprimento); blocos de madeira; caixas sonoras (ou latas cheias com materiais que produzem som); bolas; arcos; cadeiras; cordas (2 a 3m de comprimento); pedaços de tecido; papel; fita; pandeiros e

tambores” (GLATHE-SEIFERT-SEIFERT, 1969, p.59 tradução de Medeiros). No texto original: “Baguettes

plates, baguettes sonores, balles, bâtons ronds, blocs de bois, boîtes sonores, boules cerceaux, chaises, cordes,

TABELA 3

Relações entre motivos organizadores e exercícios práticos de Brita Glathe-Seifert

Desenvolvimento do sentido da ordem no espaço 1- Andar seguindo a música pelo espaço sem

esbarrar um no outro.

V: Crianças andam de costas sem esbarrar (lenta ou rapidamente, olhos abertos ou fechados, braços abertos, ponta dos pés etc...). 2- As crianças se agrupam em forma de

circulo, semi-círculo, linha, fila, triângulo, quadrado.

3- Crianças andam desenhando ou formando figuras no chão.

Desenvolvimento do sentido social ─ livre

iniciativa

1- Andando (com música ou não); sem que o professor lhes diga, ir assentando um de cada vez no chão; depois que todos estão assentados, levantar e recomeçar a andar, um de cada vez.

2- Uma criança anda pela sala e para diante daquela que deve substituí-la (com ou sem música, seguindo ou não o fraseado). 3- Passar a palma na pulsação, cada criança

bate uma palma – a um sinal, muda a

direção.

V: Passar a pulsação com gestos, usando da cabeça aos pés, com ou sem deslocamento. Formação de conceitos

1- Onde é? No alto – embaixo; na frente –

atrás; à direita – à esquerda

2- Como é? Curvo – grande – comprido –

redondo –reto – pequeno – curto –

quadrado – duro - mole

As figuras são descritas, mostradas, desenhadas, imaginadas ou imitadas.

1- Forma-se um círculo com alguma parte do corpo: mãos, pés, cabeça, braços. O círculo pode ser grande, pequeno, pode se levantar ou abaixar.

2- Escolhe-se uma figura; desenhar a figura escolhida no ar com alguma parte do corpo: mãos, pés, cabeça, braços.

V – O exercício pode ser aprofundado se a figura for pesada, se os olhos estiverem fechados).

Desenvolvimento da atenção 1- Andar (com ou sem música) mantendo com

o companheiro um contato pelo olhar (não esbarrar nos outros, não perder a cadência se houver música)

2- Uma pessoa anda pela sala fazendo um som;

os outros, olhos fechados, devem

acompanhar o seu percurso pela sala com a mão.

3- Deitados, devem levantar-se e balançar o corpo ao ouvir determinado som; e tornar a deitar-se ao ouvir outro som.

Exercícios de memória 1- Cada criança fixa sua atenção sobre

determinado lugar da sala; depois deve descrevê-lo para as outras crianças. 2- Uma criança faz um percurso na sala: ir e

voltar de costas, sem esbarrar ou mudar o caminho.

inventou.

Desenvolvimento da percepção auditiva e visual 1- Todos andam (cantando ou não) pela sala;

a um sinal, mudam de direção.

2- Andando; a um sinal, parar como uma

estátua. Observar para não modificar a

posição, não balançar ou mexer (este exercício deve ser estruturado em cada

aula porque exige reação rápida,

desenvolve o ouvido e a faculdade de concentração).

Educação do ouvido 1- Deitados no chão, escutar os sons de

dentro e de fora da sala e depois descrevê-los.

V. Deitados, repetir os sons que ouviram de olhos fechados.

2- Deitados, levantar-se e balançar o corpo ao ouvir determinado som; tornar a deitar-se ao ouvir outro som.

Fonte: MEDEIROS, 1980.

Pode-se correlacionar esses motivos-objetivos, e seus modos de exercício, com os exercícios da Rítmica Corporal de Medeiros. O desenvolvimento do sentido social, proposto por Glathe-Seifert por meio principalmente de exercícios de livre iniciativa, é apropriado por Medeiros de maneira especial nos procedimentos preparatórios para a prática de RCIM. O desenvolvimento do sentido de ordem no espaço transparece em todos os exercícios da RCIM, assim como o da atenção e memória. As percepções auditiva e visual e a rapidez e sensibilidade de resposta são também reconhecíveis nos exercícios de Reflexo. A formação de conceitos, proposta por Glathe-Seifert, foi imbuída no uso das direções no espaço durante os exercícios da RCIM e também na experimentação das qualidades de movimento. A educação do ouvido e o desenvolvimento da percepção, que Medeiros denomina sensibilização auditiva e trabalho com o corpo perceptivo, respectivamente, são outra clara apropriação das ideias de Glathe-Seifert. Para Medeiros, o livro de Glathe-Seifert representou a organização de conceitos e práticas que ela vinha experimentando desde o início de 1970. Pôde-se verificar, pela análise de conteúdo realizada nos 75 cadernos da artista-professora, que a partir do contato com essa autora, no início de 1980, houve uma proliferação de exercícios nas duas últimas décadas do século XX.

Partindo dos pontos referenciais que compõem a rede da qual participa e emerge a RCIM, é possível traçar algumas relações transversais a essa prática. A análise de conteúdo

mostrou a presença de outros pedagogos musicais anteriores a Glathe-Seifert, que é sua única influência consciente. Esses pedagogos aportaram à RCIM elementos da proposta de Jaques- Dalcroze que atravessam a rede da qual a RCIM faz parte.

A grande rede da qual emerge a RCIM caracteriza-se pela relação entre o ensino do ritmo e o movimento corporal, os professores, os alunos, as escolas e teóricos do ensino de música. Verifica-se, assim, o compartilhamento de ideias pedagógicas provenientes dessa relação. Nota-se tal compartilhamento no discurso falado, escrito e praticado de Medeiros, por conter ideias atribuídas a Jaques-Dalcroze.