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Compartilhando infortúnios: a parceria brasileira-moçambicana em zonas de contato

Capítulo 3: A expansão do cristianismo batista em zonas de contato moçambicanas

3.2. Compartilhando infortúnios: a parceria brasileira-moçambicana em zonas de contato

MOÇAMBICANA EM ZONAS DE CONTATO.

Nesse contexto de extrema insegurança e descontrole das circunstâncias, proliferavam detenções e acusações realizadas sem nenhuma regulamentação ou procedimento institucional. Muitas pessoas eram raptadas para o trabalho forçado ou forçadamente recrutadas para o serviço militar ou paramilitar. A opção religiosa e de pertencimento a outra comunidade representada pela liderança de Valnice Milhomens e seus apoiadores, consistia em uma alternativa viável para esses indivíduos que, ao encontrarem a missionária, solicitavam sua presença em outras regiões onde a mesma afirmava ser bem recebida por todos em geral e até mesmo pelas lideranças comunitárias instituídas pelo governo, a exemplo da Secretária da

202THOMAZ, O. “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista. Revista de Antropologia, USP, v. 51, nº1, São Paulo, 2008.

Organização da Mulher Moçambicana que, de acordo com o relato, teria, apesar de “bêbada”, se identificado com a pregação evangelística.203

A “boa recepção” é um padrão recorrente na retórica missionária que tendia a atenuar eventuais inospitalidades e otimizar os resultados de sua missão, no entanto, parecia ocorrer, de fato, naquela região de Sofala onde, a partir do município de Dondo, os multiplicadores da proposta difundiam a expansão daquele cristianismo que, enquanto abria veredas a caminho de aldeias e sítios remotos, encontrava novos adeptos em outras localidades e afastados povoados daquela província, onde diferentes etnias eram alvo das políticas de estado que visavam combater o chamado “tribalismo”.

Ao atravessarem as mesmas circunstâncias opressoras, nativos e missionários se encontravam em um ponto de intercessão formado pela sensação de perseguição que sentiam de um agente comum representado pelo Estado, presente através dos soldados encarregados de monitorar essas regiões onde teriam que executar raptos, recrutamentos e suas demais obrigações. Em outro trecho da mesma carta, a missionária narra com alguns detalhes situações desse tipo, ocorridas em Serração, lugarejo próximo à Milha Oito, para onde a mesma, em um Jipe e a pedido dos moradores, teria se deslocado junto a treze irmãos de Dondo. Após iniciar, com os nativos da região, a programação através de um período de oração:

Passou um carro cheio de soldados e abrandou a marcha. Procurei esquecer. Quando íamos iniciar o período, vi um batalhão que vinha longe. Senti que se dirigiam para a escola onde estávamos. Curvamos nossas cabeças e um após o outro começou a orar. Senti passos leves entrando no salão. Na minha mente vi ser os soldados a cercar-nos. Procurei esquecer. Findo o período de oração, levantei a cabeça e tive a visão real. Lá estavam todos eles, de olhos fitos em mim: o comandante e seus soldados. Pensei na oportunidade e continuei o culto. Primeiro prossegui contando histórias de Jesus, para depois apresentar a mensagem que era sobre o filho pródigo. Dei oportunidade para perguntas. Eles fizeram algumas relacionadas com o local, país e continente onde Jesus teria realizado seus milagres e pediram para sair.204

Dias depois, a missionária toma conhecimento da comunicação do comandante feita ao secretário distrital para impedir o funcionamento dos pontos missionários na região de Milha Oito. No comunicado, Valnice Milhomens era chamada de “padre e estava a ser acusada de atividades políticas com capa de religião, ensinando o povo que não se deve matar, desmobilizando-o, para não ir à guerra, etc”205. Com efeito, estudos sobre a relação entre as

203 O CAMPO É O MUNDO. Moçambique. Ed. JUERP, Rio de jan/fev/mar/abr de 1977, p.28. 204Ibidem, p.29.

diversas religiões e o governo da FRELIMO durante o período, afirmam que as hostilidades e as principais medidas contra as organizações religiosas teriam se intensificado a partir de 1977. Outrossim, alcançam seu ponto mais crítico em 1979, quando da publicação de um conjunto de normas restritivas ao funcionamento de atividades religiosas no país. Segundo Cristiane Nascimento da Silva:

As normas valiam para todas as instituições religiosas e na prática tinham por objetivo controlar a publicação, importação e distribuição de material religioso, proibir as organizações religiosas que o governo julgasse como “duplicação” das organizações de massas. Como por exemplo, o grupo das senhoras tão comuns nas denominações protestantes, na análise do partido rivalizava de alguma maneira com a Organização da Mulher Moçambicana (OMM). Estava proibida também a formação de associações e reuniões interconfessionais. A entrada de jovens para a vida religiosa também passaria a ser regulada pelo governo. Só era autorizada a entrada nos seminários após o candidato ter completado 18 anos, ter sido dispensado ou já ter cumprido as obrigações militares e completado a 9ª classe.206

As restrições impostas pelo governo da FRELIMO representavam um grande obstáculo para o avanço das missões batistas, especialmente para a execução de uma de suas estratégias: o investimento de tempo e dedicação na formação dos jovens que deveriam receber um treinamento de seis meses, em preparação para o curso de Teologia no Seminário da Beira ou em outros como os do Brasil. Esperava-se, com isso, atingir os lugares mais afastados através dessa juventude missionária autóctone, no entanto, a ação reguladora do estado nessa matéria praticamente proibia essa prática na medida em que exigia-se que esse jovem tivesse completado a 9ª classe. Segundo as cartas de Valnice Milhomens, faltava-lhes “base” e os índices sociais no país, de maneira geral, eram muito baixos.

Esse conjunto de normas também dificultava a entrada e a saída de missionários do país. Para Milhomens, tais medidas aumentavam o distanciamento em relação à sua pátria, sua família, sua igreja brasileira e seus irmãos em um período de fechamento do regime adotado pela FRELIMO, durante o qual algumas matérias do periódico da JMM lamentavam a escassez de notícias sobre a missionária. Essa falta de contato, por outro lado, aproximava ainda mais a brasileira daqueles que, de fato, preenchiam sua vida, naquele momento, através de um relacionamento diário construído em função das atividades religiosas que liderava. Não obstante, as limitações impostas pelas autoridades moçambicanas tornavam sua tarefa ainda mais dependente dos autóctones, protagonistas da expansão que os batistas experimentavam,

206Silva, C. "Viver a fé em Moçambique": as relações entre a FRELIMO e as confissões religiosas (1962-1982). Tese de doutorado em História Social, UFF. Niterói, 2017, p.125.

sem os quais o objetivo de alcançar as diversas e longínquas populações negras seria impossível.

3.3. A FOME, A GUERRA, AS TÁTICAS MISSIONÁRIAS E A EXPANSÃO BATISTA EM