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De Primeira Igreja Batista de Lourenço Marques, à Primeira Igreja Batista de Maputo: uma

Capítulo 2: Tempos de transição para uma zona de contato e para a expansão do

2.3. De Primeira Igreja Batista de Lourenço Marques, à Primeira Igreja Batista de Maputo: uma

A Primeira Igreja Batista de Lourenço Marques, que passaria a se chamar Primeira Igreja Batista de Maputo, passara das mãos portuguesas para as de um jovem negro moçambicano chamado Bento Matusse. Foi uma penosa transição para os portugueses que sentiram muitas dificuldades para encontrar alguém portador do que consideravam o perfil ideal para dar continuidade ao trabalho implantado. Os testemunhos orais dessa “passagem de bastão” constituem, hoje, a principal fonte de informação sobre esse processo, dada as circunstâncias caóticas do período e à extinção do periódico O Batista de Moçambique, em 1975.

Em um deles, oferecido por Manuel Quembo, pastor e atual liderança batista no país, afirma-se que os missionários portugueses tinham o controle de informações das populações nativas e que procuravam alguém com “chamada para o ministério” e com grau escolar superior à quarta série. Bento Matusse teria sido o único a preencher os requisitos e, segundo nosso colaborador:

178Cf: O CAMPO É O MUNDO. Ainda em Moçambique. Ed. JUERP, Rio de Janeiro jan/fev/mar/abr de 1979, p.32. Ver também SILVA. C. Viver em Moçambique: as relações entre a FRELIMO e as Confissões Religiosas (1962-1982). UFF, Niterói, 2017, p.81-166.

essa pessoa foi elevada pela Convenção Batista para ser o substituto dos portugueses, com todos os poderes de um presidente que não foi eleito! Então, a Primeira Igreja Batista de Maputo, a Convenção, a infraestrutura, o livro de atas, tesouraria, tudo foi entregue. Ele tinha aquela perspectiva de funcionamento de igreja da União Batista de onde ele veio.179

A União Batista a que se refere Manuel Quembo seria outra instituição, ligada aos missionários batistas suecos, os mesmos que, no Brasil, teriam dado origem à Convenção das Igrejas Batistas Independentes180, grupo distinto da Convenção Batista de Moçambique que por sua vez ligava-se às Convenções Batistas Brasileira e Portuguesa, filhas do missionarismo batista norte americano praticado pela Junta de Richmond do sul dos Estados Unidos, à qual nosso colaborador se conecta. Seu relato se entrelaça, portanto, nessa rede de legitimação de uma narrativa que atrai para si o status de versão verdadeira para a origem daquele grupo religioso no país africano.

Ao se referir à transferência de liderança para Bento Matusse, Quembo faz questão de assinalar que “ele não foi eleito”. Segundo essa narrativa, repetida por outros colaboradores, apesar de Matusse surgir na Primeira Igreja Batista de Lourenço Marques, fruto do mesmo trabalho português auxiliado por brasileiros, o pai do moçambicano seria um crente convertido e formado a partir do trabalho sueco, de quem o então responsável pelas principais instituições batistas no país herdara uma forma peculiar de conduzir os trabalhos. Dessa maneira, os testemunhos orais que nos dão acesso aos primeiros anos de cristianismo batista sem a interferência portuguesa, em Moçambique, precisam ser lidos enquanto "narrativas de identidades"181. Representações da realidade nas quais os narradores também comunicam como eles veem a si mesmos e como pensam serem vistos pelos outros.

Um duelo de alteridades similares e conflitantes se apresenta nas memórias construídas pelos remanescentes dos primeiros anos de presença batista no pós-independência. As dezenas de etnias africanas compunham um grande obstáculo à unidade, não apenas desse grupo, mas da própria nação moçambicana. Foi diante desse enorme desafio que o então

179QUEMBO, M. Entrevista VII. [25 de out. 2016]. Entrevistador: Harley Abrantes Moreira. Beira, arquivo. WAW (54 min.); p.1. A entrevista transcrita encontra-se, na íntegra, nos anexos (nº8) dessa tese.

180Cf: http://www.cibi.org.br/nossa-historia/. Consultado em 13/12/2018.

181ANTOINETTE, E. Mas afinal, a memória é de quem? História oral e modos de lembrar e contar. História da Educação, ASPHE, FaE/UFPel, v.8, Pelotas, set. de 2000, p.2.

presidente do país, Samora Machel, proferiu a frase: “matar a tribo para fazer nascer a nação182”, sentença que resume e explica boa parte das ações políticas aplicadas pela FRELIMO para construir uma identidade nacional capaz de mobilizar tantas comunidades, tantos idiomas, tantas localidades e culturas diferentes.

Além desse aspecto, as distâncias locais, a carência de um sistema de comunicação e de transporte eficientes aumentavam as dificuldades para a construção de uma rede de colaboração que conferisse unidade aos batistas moçambicanos naquele momento em que contavam basicamente com as iniciativas da brasileira Valnice Milhomens para a implantação de igrejas e desenvolvimento das missões em território moçambicano. Eram muitos Moçambiques, desconectados por vezes. Manuel Quembo, diferente de Bento Matusse, não residia na capital que passara a se chamar Maputo e, diferentemente de muitos moçambicanos do sul do país, não falava (xi) changana, ronga, tshwa, (bi) tonga ou qualquer outro idioma considerado língua materna das regiões próximas à capital.183 Diferenças como essa, desafiavam as intensões de construir uma unidade e uma identidade batista nesses primeiros anos.

Entre essas diferenças, a heterogeneidade linguística de Moçambique ocupa destacada posição e continua desafiando aqueles que querem compreendê-la. Ainda hoje o português se faz acompanhar de várias outras línguas estrangeiras faladas em território nacional em razão de diversas ondas de imigração, compondo um quadro linguístico muito inferior ao das línguas africanas, faladas pela grande maioria da população que, com elas, aprenderam a se comunicar, bem antes de serem alfabetizadas na língua portuguesa, mais falada em regiões centrais ou espaços públicos. De acordo com o censo demográfico de 1997, as línguas maternas continuam sendo faladas por noventa e três por cento da população, dos quais, noventa por cento as utilizam diariamente como primordial opção de comunicação184em um país onde apenas 6,5% da população tem como língua materna o português.

De acordo com Gregório Firmino, essas línguas autóctones são numerosas apesar da única raiz bantu e estão em constante reelaboração. Interagem com a influência linguística de outros idiomas e ocupam eminente papel na formação do enorme mosaico cultural

182Cf: PAREDES, M. A construção da identidade nacional moçambicana no pós-independência: sua complexidade e alguns problemas de pesquisa. Anos 90, v.21, n.40, Porto Alegre, dez de 2014, p.145.

183Cf: Ibdi, p.139-148.

184Cf: FIRMINO, G. A situação do português no contexto multilingue de moçambique. Comunicação apresentada no Simelp I, Universidade de S. Paulo, 2008. Ver também: THOMAZ, O. Raça, nação e status: histórias de guerras e ralações raciais em Moçambique. Revista USP, São Paulo, n.68, dez/fev 2005-2006, p.255.

moçambicano. Identifica-las, portanto, é tarefa complexa e, mesmo com relação ao seu número, é possível não haver consenso. Fato é que essas línguas locais poderiam representar um elo entre pessoas de procedência étnica e cultural diferentes, reunidas dentro do mesmo território nacional onde a sigla da Convenção Batista de Moçambique (CBM) era uma só, porém, os moçambicanos que se tornariam membros das igrejas dessa denominação poderiam se ver obrigados a dividir a liderança denominacional com indesejáveis indivíduos de outras famílias étnicas. Ademais, a diversidade linguística não seria a única responsável pelos laços de identidade e muros de apartamento cultural no jovem país.

Morador da Beira, capital da província de Sofala, onde se fala ndaw, sena, podzo, entre outras línguas locais ao centro de Moçambique, Quembo pertence a uma região com outra historicidade e, de resto, também faz parte de outra geração. Convertido ao cristianismo batista em 1983, na mesma cidade, esse pastor moçambicano não foi testemunha ocular dos anos seguintes a 1975, quando a cooperação entre Valnice Milhomens e Bento Matusse foi mais intensa segundo nossas fontes impressas185.

Ao narrar o início da história batista moçambicana no pós independência, nosso colaborador tenta lembrar do que não viu e nos oferece uma seleção de fatos protagonizados por uma liderança denominacional que, segundo seu grupo, dificultou um trabalho conjunto a partir da década de oitenta, preferindo conduzir sua igreja por um caminho individual, ainda que levasse consigo atas e chaves que recebera em nome de todos os batistas daquele país. A conexão entre essas duas lideranças moçambicanas representantes de dois processos de desenvolvimento distintos era, portanto, dubitável e não seria correta uma avaliação que lhes considerasse parte da mesma homogeneidade nativa representante da alteridade característica da relação ocidente-oriente.

Assim, os sujeitos africanos revelavam suas próprias dicotomias e idiossincrasias. Conforme explica outro depoimento, dessa vez oferecido pelo colega de Manuel Quembo, o pastor batista, moçambicano e negro, Lourenço Antero,

Entre nós, os moçambicanos, havia tribalismo. Tribalismo era de considerar essa língua não ser sua e, às vezes, considerar que os que falam uma língua são superior aos que falam outra língua. Por exemplo, aqui no Sul, onde falamos a língua changana, todos os moradores daqui consideravam que os do Norte são inferiores, são pessoas do mato, pessoas que são desconhecidas, então isso também trazia um pouco de desprezo entre nós os moçambicanos, e esses consideravam que eram pessoas um pouco mais evoluídas, mas quando

185Ver, por exemplo: O CAMPO É O MUNDO. Novas de Moçambique. Ed. JUERP, Rio de Janeiro jan/fev/mar/abr de 1977, p.29.

veio a revolução, a independência, o presidente Samora Machel combateu isso, falou da unidade nacional, falava sempre da unidade.186

Dessa forma, o cristianismo batista africano que viria a se desenvolver nas primeiras décadas do pós-independência carregaria as marcas dessas diferenças locais e também das subdivisões, tão numerosas no cristianismo em geral como entre os batistas, em particular.187 De acordo com o colaborador, as alteridades próprias dos africanos nativos possuíam suas hierarquias e discursos inferiorizantes, em funcionamento dentro de suas próprias historicidades e das zonas de contato domésticas onde elaboravam suas memórias. A expansão analisada nessa tese, portanto, relaciona-se diretamente ao grupo de Manuel Quembo e Lourenço Antero, dentro do qual outros testemunhos se alimentam e indicam as características mais individualistas das iniciativas levadas a cabo pela Primeira Igreja Batista de Maputo.

Ainda que as divisões internas e desentendimentos entre os batistas moçambicanos sejam fruto, também, de razões pessoais típicas dos choques de personalidade comuns às relações humanas, nossas fontes impressas, sem dúvida mais frias e alheias aos desafetos daqueles indivíduos, oferecem-nos informações de um outro Bento Matusse. Os textos publicados pela Revista O Campo é o Mundo na segunda metade da década de setenta eram elaborados a partir de cartas de Valnice Milhomens que, algumas vezes, eram publicadas na íntegra.

Nesse material, no entanto, Bento Matusse era mencionado em passagens da revista que relatavam os deslocamentos do então pastor da Primeira Igreja Batista de Maputo até à cidade da Beira, no centro do país, onde morava Valnice, e de onde partiam com frequência até à localidade do Dondo, acerca de trinta quilômetros da capital da província de Sofala, ambos cooperando juntos para o desenvolvimento daquela comunidade.188 Naqueles anos seguintes à proclamação da Independência, período no qual havia grande carência de lideranças locais e os trabalhos missionários contavam apenas com a condução da brasileira Valnice Milhomens, a cooperação entre ambos foi fundamental para o renascimento de um trabalho que germinaria com características bem diferentes daquele que herdaram de seus irmãos portugueses.

186ANTEIRO. L. Entrevista III. [20 de set. 2016]. Entrevistador: Harley Abrantes Moreira. Maputo, arquivo WAW (45min.); p.3. A entrevista transcrita encontra-se, na íntegra, nos anexos (nº4) dessa tese. 187No Brasil, por exemplo, existem três Convenções Batistas consideradas mais numerosas: a Convenção Batista Brasileira (a maior e à qual se filia a Junta de Missões Mundiais); a Convenção Batista do Brasil (de orientação pentecostal) e a Convenção das Igrejas Batistas Independentes, além de diversos grupos como os batistas regulares, batistas fundamentalistas ou batistas bíblicos. Em todo o mundo são inumeráveis e possivelmente ainda carecem de catalogação.

188 O CAMPO É O MUNDO. Coisas maravilhosas em Moçambique. Ed. JUERP, Rio de Janeiro, Set/dez de 1977, p.21. Ibdi, África. 1976, p.24.

Assim, o suposto isolamento dessa liderança e de sua igreja em Maputo é uma construção das memórias das atuais lideranças batistas do país que nos concediam entrevistas. Esse comportamento individualista possivelmente se deu após o desligamento de Valnice Milhomens, com quem Matusse manteve colaboração, além de outros missionários brasileiros que atuaram na década de 1980.189De todo modo, foi, portanto, durante esses primeiros anos após a Independência de Moçambique, que a missionária conseguiu aplicar um princípio norteador das missões praticadas pelos brasileiros: a transferência de liderança para os nativos.

A curva anunciada, após esse período de transição entre a primeira e a segunda fase da história batista em Moçambique, agora se finaliza, nos colocando em um caminho que, apesar de acidentado, conduz retamente para a expansão das igrejas batistas no país. Fato histórico que, ao final da Guerra Civil (1992), se confirma no terminal de chegada dessa tese.

189 O pastor e missionário Lúcio Guimarães, aparece em diversas passagens das fontes documentais e pode, aqui, ser destacado como exemplo.

CAPÍTULO 3. A EXPANSÃO DO CRISTIANISMO BATISTA EM ZONAS DE CONTATO