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Onde há desespero, a esperança é importante? : uma história da expansão do cristianismo batista em Moçambique (1950-1992)

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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

HARLEY ABRANTES MOREIRA

“ONDE HÁ DESESPERO, A ESPERANÇA É IMPORTANTE”? UMA HISTÓRIA DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO BATISTA EM

MOÇAMBIQUE (1950-1992).

Campinas 2019

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Harley Abrantes Moreira

“ONDE HÁ DESESPERO, A ESPERANÇA É IMPORTANTE”? UMA HISTÓRIA DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO BATISTA EM

MOÇAMBIQUE (1950-1992).

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em História, na Área de História Cultural.

Orientadora: DRª. ELIANE MOURA DA SILVA

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO HARLEY ABRANTES MOREIRA E ORIENTADA PELA PROFESSORA DRª ELIANE MOURA DA SILVA.

CAMPINAS 2019

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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Moreira, Harley Abrantes, 1978-

M813 "Onde há desespero, a esperança é importante"? uma história da expansão do cristianismo batista em Moçambique (1950-1992). / Harley Abrantes Moreira. – Campinas, SP: [s.n.], 2019.

Orientador: Eliane Moura da Silva.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Igrejas batistas. 2. Religião. 3. África - história. 4. Moçambique - história. I. Silva, Eliane Moura, 1953-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "Where there is despair, hope is important"? a history of the expansion of baptist christianity in Mozambique (1950-1992).

Palavras-chave em inglês: Baptist Churches

Religion Africa - history Moçambique - history

Área de concentração: História Cultural Titulação: Doutor em História

Banca examinadora:

Eliane Moura da Silva [Orientador] Lyndon de Araújo Santos

Gustavo de Souza Oliveira

Raquel Gryszczenko Alves Gomes Márcio Ananias Ferreira Vilela Data de defesa: 08-10-2019

Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) ORCID do autor: http://orcid.org/0000-0001-5535-076X

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 08 de outubro de 2019, considerou o candidato Harley Abrantes Moreira aprovado.

Profª Drª Eliane Moura da Silva Profº Drº Gustavo de Souza Oliveira Profº Drº Lyndon de Araújo Santos Profº Drº Marcio Ananias Ferreira Vilela Profª Drª Raquel Gryszczenko Alves Gomes

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de fluxo de Dissertações/Teses e na secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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DEDICATÓRIA

Dedico essa tese à Thaís. Companheira de todos os momentos, esteve comigo no êxtase, no desencanto e na harmonia. Dedico também ao Gabriel. Nosso filho restaurou a visão com a qual, hoje, tento enxergar o futuro.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é mais que reconhecer... é, também, uma ação de introspecção, onde olhamos para dentro de nós mesmos, em busca de fatos, episódios, sentimentos e memórias, na intenção de depurar todas essas substâncias, desprezando resíduos e resgatando o que queremos conservar, em um processo que resulta na purificação de tudo que continuará conosco. Gratidão é leveza, frescor e singeleza.

Começo, então, agradecendo à minha orientadora Eliane Moura: por ter apostado nessa pesquisa, pelas orientações, pelas conversas, pela amizade e pelo acolhimento. Cursar e concluir um doutorado, longe de suas amizades e referências não é fácil e requer de um orientador qualidades de ser humano que ultrapassam a competência e o profissionalismo, com os quais costumamos realizar nossos trabalhos.

A todos os colegas e amigos do Centro de Estudos em História Cultural das Religiões (CEHIR). Um grupo de pesquisa que funcionou como rede de apoio e solidariedade fundamental durante os anos de doutorado.

À professora Teresa Cruz e Silva, pela prestimosidade ímpar com que me recebeu e apoiou em Moçambique. Ao Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (CEA), que me acolheu como pesquisador e possibilitou meu acesso aos acervos da instituição.

Ao grupo Religiões e Trajetórias das Experiências Missionárias em África: Arquivos, Acervos e Pesquisas. Uma rede de pesquisadores na qual me integrei em 2013, em seu primeiro evento, na Universidade do Porto, e, desde então, tem se constituído em um importante espaço de trocas e parcerias.

Aos amigos que me ajudaram a compor a rede de contatos em Moçambique. São pessoas que me ajudaram gratuitamente, pela simples razão de minha necessidade. De pequenos favores a hospedagens em países como a África do Sul, onde não conhecia absolutamente ninguém e nada possuía para retribuir. As experiências de pesquisa oferecem muitos aprendizados adicionais que vão para além de nossas diárias tarefas de trabalho. Entre elas, aprendi, e continuo aprendendo, que ainda vale a pena apostar na gratuidade das relações humanas e na espontaneidade de sentimentos belos.

À Noêmia Cessito e Jerônimo Cessito, que me hospedaram e cuidaram de mim, durante os quinze dias que vivi na província de Sofala. Aos missionários, pastores e demais colaboradores das entrevistas que realizei em Moçambique, nas cidades de Maputo, Beira e Dondo. A tantos bibliotecários com quem dividi as jornadas de trabalho. À secretaria de nosso

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Programa de Pós Graduação em História da UNICAMP, pela impressionante competência com a qual seus funcionários costumam realizar suas tarefas. Aos meus familiares e amigos que, durante esses anos, foram privados de minha presença e, em alguns momentos, tiveram que conviver com alguém presente fisicamente, mas completamente absorto em seus próprios pensamentos. Precisamos, todos, aprender a “desligar”, a nos oferecer, verdadeiramente, para as pessoas que nos fazem bem.

À Universidade de Pernambuco (UPE) que, em suas diversas instâncias administrativas, aprovou meu afastamento, com remuneração, para, durante três anos e meio, dedicar-me integralmente a essa pesquisa. Sempre que um professor protocola esse tipo de necessidade, toda nossa categoria reafirma nossos direitos e consolida as conquistas resultantes de nossas lutas históricas. Sem meu afastamento de tempo integral, essa pesquisa seria impossível e, aqui, registro, também, uma sincera nota de agradecimento aos que tentaram obstruir o usufruto desse direito...cada vez que um ciclo da vida se conclui, adquirimos a capacidade de anistiar as causas de nossas dificuldades, sem as quais não valorizaríamos tanto nossas vitórias.

Ao programa de Mobilidade Estudantil da UNICAMP que, através de edital específico para financiamento de pesquisas de pós-graduação no exterior, possibilitou minha viagem à Moçambique e a coleta de parte importante das fontes documentais utilizadas nessa obra. De modo geral, a UNICAMP merece um agradecimento especial... universidade que me reconstruiu e que, para sempre, me orgulhará por ter seu nome associado ao meu. Na UNICAMP, todos os dias eram muitas as aulas, não só dos professores, mas dos técnicos, dos gestores e servidores de diversas áreas. Olhei para muitos deles com uma admiração que nunca confessei. Minha convivência, durante mais de três anos, com colegas de pós-graduação, bolsistas, secretários e bibliotecários que, ali, trabalham, me ensinaram a apreciar, ainda mais, as palavras “ética” e “competência”. Tentarei conservar esse aprendizado nos anos de serviço público que me restam.

Aos colegas de nosso PPGH, com entrada em 2015.1, pelos debates em nossas aulas, pela partilha de informações, frustrações, piadas, risos e, evidentemente, pela companhia durante as refeições no “bandejão”... escrever a palavra “bandejão”, hoje, me emociona. Comida é cheiro, é sabor, é memória e afeto.

A todos os que “quebraram um galho”, pequeno ou grande, durante todos esses anos e que, sendo muitos, não poderia aqui registrá-los e, por fim, a uma pessoa especial a quem essa tese foi dedicada. Thaís, com sua força e doçura, seu equilíbrio e sua sensatez, seus estímulos e suas atitudes, conseguiu conviver comigo e me apoiar durante todo esse tempo de doutorado

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que, como é sabido, não costuma ser complacente com aqueles que se arriscam nessa maratona. Tentarei atingir a altura de suas qualidades para, daqui em diante, retribuir a tudo que você me ofereceu nessa jornada de abnegação. “Onde morre a trilha do meu silêncio, vou te buscar”. Amo-te.

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As religiões (e tudo o que nossa cultura codificou como tal) são sempre uma mediação simbólica e prática entre as restrições contingentes da vida e as inevitáveis pressões que estas exercem no pensamento

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RESUMO

Essa tese tem por objeto de pesquisa a expansão do cristianismo batista em Moçambique desde 1950 (ano de fundação da primeira igreja na ex-colônia portuguesa) até 1992, (quando, ao término das guerras civis, nota-se a consolidação do vertiginoso crescimento dessa denominação). Nosso objetivo é apontar os fatores que explicam essa propagação. De acordo com nosso argumento central, o crescimento desse grupo religioso não é apenas consequência do colonialismo e do imperialismo cultural que permeia a história dessas igrejas. Diferentemente, a multiplicação dos adeptos resulta da propagação e do aprofundamento de zonas de contato entre os missionários e as populações negras que, até os últimos anos do regime colonial, ainda não tinham sido alcançadas pelos projetos batistas. A partir de 1970, através do trabalho de Maria Teresa Mendes, uma missionária moçambicana branca, e da chegada do grupo brasileiro que, um ano depois, lhe amplificou, as características daquela experiência religiosa foram profundamente alteradas, na medida em que a segregação do período anterior cedia lugar ao compartilhamento de espaços religiosos comuns a moçambicanos e brasileiros. Assim, o estudo conclui que o colonialismo criou fatores inibidores da expansão religiosa analisada e que essa mutualidade, inexistente nas primeiras décadas desta história, quando apenas os portugueses a protagonizaram, foi, em grande medida, responsável pela construção de um cristianismo africano que, finalmente, foi propagado pelos próprios africanos, tornando-se receptivo e se espalhando por todas as províncias do jovem país.

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ABSTRACT

This thesis has as its object of research the expansion of Baptist Christianity in Mozambique from 1950 (year of the foundation of the first church in the former Portuguese colony) until 1992, (when, at the end of the civil wars, it is noted the consolidation of the vertiginous growth of this group). Our goal is to point the factors that explain this spread. According to our central argument, the growth of this religious group is not a consequence of the colonialism and cultural imperialism that permeates the history of these churches. In contrast, the multiplication of the adherents resulted from the spread and deepening of contact zones between the missionaries and the black populations that, until the last years of the colonial regime, had not yet been reached by the Baptist projects. From 1970, through the work of Maria Teresa Mendes, a white Mozambican missionary, and the arrival of the Brazilian group that, one year later, amplified her work, the characteristics of that religious experience were profoundly altered, as the segregation of the period previous, replaced by the advent of common spaces to Mozambicans and Brazilians. Thus, the study concludes that colonialism created inhibiting factors of the religious expansion analyzed and that this mutuality, nonexistent in the first decades of this history, when only the Portuguese took part in it, was largely responsible for the construction of an African Christianity that, finally, was propagated by the Africans themselves, becoming receptive and spreading throughout the all provinces of the young country.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CBB: Convenção Batista Brasileira CBM: Convenção Batista Moçambicana CBN: Convenção Batista Nacional

CEA: Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane

FRELIMO: (em maiúsculo) Frente de Libertação de Moçambique (movimento nacionalista formado para combater o colonialismo português)

FRELIMO: (em minúsculo) Frente de Libertação de Moçambique (partido único criado após a independência)

IBER: Instituto Batista de Educação Religiosa JME: Junta de Missões Estrangeiras

JMM: Junta de Missões Mundiais JOCUM: Jovens Com Uma Missão MIAF: Missão para o Interior da África

PIDE: Polícia Internacional e de Defesa do Estado RENAMO: Resistência Nacional Moçambicana SEC: Seminário de Educadoras Cristãs

STBNB: Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil STBSB: Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas

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SUMÁRIO

Introdução 21

Fontes documentais, metodologia e estrutura da tese 46

Capítulo 1: O background das zonas de contato 53

1.1. Avançando pelo mundo. Separados do mundo 54

1.2. Alteridade e diferença: as representações da África e dos africanos na revista O Campo é o Mundo 68

1.3. A visão do império nas imagens fotográficas da revista 70

1.4. Textos e cartas nas revistas e jornais batistas 90

1.5. O meio batista que envolvia as (o) missionárias (o) em formação 104

Capítulo 2: Tempos de transição para uma zona de contato e para a expansão do cristianismo batista em Moçambique 113

2.1. O desembarque em terras moçambicanas em tempos de transição 114

2.2. O contexto moçambicano e a cultura política batista em tempos de transição 127

2.3. De Primeira Igreja Batista de Lourenço Marques, à Primeira Igreja Batista de Maputo: uma transição. Muitos Moçambiques 144

Capítulo 3: A expansão do cristianismo batista em zonas de contato moçambicanas 150

3.1. Missionária brasileira. Autonomia moçambicana 151

3.2. Compartilhando infortúnios: a parceria brasileira-moçambicana em zonas de contato 158

3.3. A fome, a guerra, as táticas missionárias e a expansão batista em zonas de contato 161

3.4. A expansão batista e o “sobrenatural” na zona de contato 195

3.5. Valnice “mil homens” e a onda pentecostal na África austral 204

3.6. A trajetória da missionária Noêmia Cessito 225

3.7. O lobolo da brasileira 242

Considerações finais 250

Referências bibliográficas 257

Fontes documentais 266

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PRÓLOGO

Uma pedra, duas, três... estou a caminhar pelas ruas de Maputo. Preciso almoçar. Oque devo comer hoje? Lulas ensopadas? Peru estufado? Vermelho? Cabrito? Grão de bico com mão de vaca? Ainda não sei. Há muitas coisas que não sei! Aqui, o meio de transporte popular é a chapa (mas pode ser love), lugar é sítio, refrigerante é refresco. Pronuncia-se muito o NH e o som do L, em changana, pareceu-me curioso. As pessoas nas ruas estão sempre a conversar em línguas locais (mas também falam em português, o idioma oficial). Chego ao restaurante, recebo o menu e peço um suco de lichia (industrializado) delicioso e animador. Agora, com mais fome, peço a galinha que chega após vinte minutos. Com batatas e salada, parece gostosa. Penso que valeu a pena esperar quando, em um lance de olhos, vejo uma larva na folha de alface! Dançou para mim... deve ter se assustado com o vinagre (e eu com ela!), mas nada de ineditismos, esse tipo de ballet também pode ser apreciado em palcos brasileiros, contudo não é bom dançar. Pedi a conta, me pus a caminhar. Pelas ruas uma pedra, duas, três... um pedaço de calçada em meio a buracos pequenos, grandes, médios. Não há simetria entre algodões, colheres de plástico, mangas, restos e guardanapos KFC. Aqui, estou aprendendo a andar olhando para o chão (não é difícil). Levantando a cabeça, vejo pessoas...Mulheres com suas roupas de todas as formas, cortes e cores. Homens com seus gorros coloridos, turbantes, chapéus da FRELIMO. Alguns até se parecem comigo (mas é preciso andar um bocado). Sigo em frente. Estamos nos olhando... Maputo: uma cidade. Eu: um estrangeiro.

***

Assim começava meu período de pesquisas em Moçambique quando, em 2016, eu, um brasileiro branco, casado há então cinco anos, professor universitário na Universidade de Pernambuco (UPE) e aluno do doutorado em História Cultural da UNICAMP, chegava em Maputo para uma intensa temporada de mais de três meses vividos nos limites do frenesi, do desafio e da resiliência. Quem eram meus conhecidos? Ninguém. Pela primeira vez estava sozinho em um lugar absolutamente estranho, onde nada me era familiar, nenhum caminho já trilhado e nenhuma pessoa para apresentar-me aos meus interlocutores.

Desembarcava eu, é certo, com um background repleto de imagens, histórias e estórias do continente africano que, bem sabia, não era homogêneo e mantinha dissemelhanças profundas entre suas diferentes culturas, nações e etnias. Lugares como Moçambique, pensara, poderiam ser muito diferentes de outros como a Etiópia, por onde passara antes de ali chegar. Decerto que minha experiência como professor da disciplina História da África durante dez

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semestres consecutivos me ajudou a suspeitar dessas primeiras impressões e a desconfiar dos possíveis eurocentrismos que nela se escondiam. Por outro lado, o que eu esperava encontrar naquele país? Pessoas simpáticas e acolhedoras que logo me abririam um sorriso fácil ao saber que era um brasileiro? Que, sabendo de minha nacionalidade, logo se desarmariam, quase emocionadas, como quem encontrava um irmão desconhecido, de quem apenas ouviram falar, mas por ele nutriam um afeto natural provindo de um passado comum que, apesar de assimétrico, nos unia sob o desvelo da mesma paternidade colonial? Gnoses ocidentais atualizadas? Com sinais invertidos? Após a experiência de viver ativamente mais de uma década de políticas afirmativas (re?) construtoras das pontes que eu mesmo apoiei, qual África viajava comigo? O que ela substituía e pelo quê?

Eram pensamentos de um estrangeiro que escrevia crônicas e, pelas janelas dos quartos, ouvia buzinas se intrometendo no som das mesquitas. Por uma fresta única, via uma cidade. Corredores de árvores com seus troncos a parecer-me grotescos... lançavam um véu sobre os movimentos dos transeuntes. Os cruzamentos falavam sobre suas próprias lógicas e os outdoors apresentavam uma juventude africana antenada enquanto, pelas ruas, mulheres carregavam bebês em suas capulanas.

Ao fundo, edifícios se erguiam ou se encolhiam, a depender do olhar. Presente e passado, juntos, nas varandas que me diziam de um jeito de morar. Oque fizeram de Maputo? Oque Maputo fez de si? Naquele dia, já tinha aprendido algumas expressões locais. Já não olhava tanto para o chão. Estávamos juntos! Assim sentia. Começava mais uma semana naquela capital que a todo momento acessava minhas imagens de moderno e tradicional e onde me mudei várias vezes...o cansaço provocado pela rotina de arrumar e desarrumar as malas me desanimava...mas estava muito eufórico para dar lugar a pensamentos soturnos que não entravam naquele quarto, mas também não partiam. Estavam ali, parados à porta, como sentinelas.

Na cidade de Maputo tive acesso a fontes documentais valiosíssimas e não havia dúvidas de que estava resoluto. Talvez por isso decidira me deslocar até o centro do país para entrevistar pessoas e coletar mais documentos. Embora as manchetes internacionais não se importassem, pode-se dizer que Moçambique estava em guerra civil, e não era possível viajar pelas estradas, onde os raptos e as bélicas interceptações de grupos armados continuavam a me apresentar realidades que nunca vivera, mas que não eram de todo desconhecidas, afinal, nós, brasileiros, conhecemos bem o medo da violência, e não é de hoje que nos acostumamos a imaginar uma África turbulenta. Sim. Eu estava lá e, talvez pela primeira vez na vida, me sentia um latino-americano.

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Decidi, então, insensatamente, gastar grande parte do dinheiro que recebera por ter sido selecionado através do Programa de Mobilidade Internacional da UNICAMP para essa viagem, comprando uma passagem aérea, de ida e volta, para a cidade da Beira, capital da província de Sofala, onde vários personagens da expansão do cristianismo batista residiam, inclusive Noêmia Cessito, missionária brasileira que morava há trinta quilômetros do aeroporto, no município de Dondo, e que havia se comprometido, caridosamente, com minha hospedagem, em sua própria casa, durante quinze dias.

Começava uma nova etapa da pesquisa, onde viveria experiências intensas para as quais, até hoje, não tenho certeza se estava ou não preparado. Sei apenas que estava ali como um recém-nascido. Alguém que, pelo parto, de sobressalto, abandona seu habitat e passa a depender integralmente de um único ser humano que, dali em diante e sem nada receber, seria responsável por sua alimentação, sobrevivência e, em meu caso, até mesmo pela comunicação com falantes de outras línguas ou do “mesmo” português que me parecia incompreensível. Esse compromisso foi muito bem cumprido pela missionária que viabilizou meu acesso a acervos particulares e a diversas entrevistas como a que realizara com um pastor batista que liderou a comunidade do Dondo durante a transição entre as missionárias Valnice Milhomens e minha anfitriã, ainda na década de mil novecentos e oitenta. Meu encontro com aquele ser humano foi inusitado. Foi compartilhado. Em grupos de WhatsApp. Com emojes:

Eram onze da manhã quando, depois de alguns desencontros, Pedro1 chegou em seu gabinete, na sala de conferência do que seria o equivalente a uma câmara municipal no Brasil. Lá, estava eu, o aguardando animado para fazer mais uma entrevista, desta vez, com aquele que foi discípulo da brasileira Valnice Milhomens e que deu continuidade ao seu trabalho missionário em Moçambique. Era um homem falante, a entrevista concedida em uma cantina, ao lado de sua sala, fluiu muito bem e foi prazeroso coletar suas memórias até que, terminada a gravação, me despedi. Ao sair, aquele homem passa a caminhar atrás de mim e pergunta:

- Podes me pagar um refresco?

Precisei de alguns segundos até me convencer de que era isso mesmo que estava ouvindo e disse:

- Sim, claro. Mas... não vais também almoçar?

O amigo inclinou levemente a cabeça para o lado, assim como alguém que tenta ficar meigo...fofo...E continuei:

-Bem, eu estava preocupado com o horário em razão de minha carona, mas acho que podemos almoçar juntos então.

Nos sentamos. Pedimos frango com arroz e batata. Ele me perguntou se eu queria refrigerante ou suco...Eu sempre prefiro suco, mas só havia sucos de um litro. Ele foi objetivo:

-Não tem problema! Somos duas pessoas!

1Resolvi chamá-lo de Pedro. Um nome fictício adotado por razões éticas. Não é necessário expor meu colaborador.

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O almoço estava saboroso. A conversa estava boa. E eu, seguia fingindo que estava achando tudo normal até que, uma afirmação:

- Podes pagar um pouco a mais. Quero levar o troco para casa. Nesse momento, comecei a contar em silêncio:

-Um...dois... três... E pensei:

-Harley, você está em outra cultura e em um país de passado colonial recente. O que esse comportamento significa?

Lembrei de Stuart Hall, Roque Laraia, Homi Babba...Mas nada ajudava e, enquanto isso, o homem fazia uma cara! Uma mistura de "como assim?"+"que que isso?"+"tô nem aí". Dá pra imaginar?

Ga Ga Ga guejei um pouco e disse:

-Va va vamos ver. Fiquei constrangido, afinal estava a falar com um vice-presidente da Convenção Batista Renovada Moçambicana, ex-vereador que, agora, ocupava um cargo administrativo na câmara. E foi justamente enquanto meu semblante migrava do amarelo ao salmão que meu "colaborador" me fez uma pergunta:

-Sim, mas o irmão é pastor? Ao que respondi:

-Por um acaso fiz Teologia, mas sou professor, segui os caminhos da Educação.

Juro! Ele olhou para mim com uma cara de pena! Por uns instantes o jogo virou! O esfomeado, agora, era eu!

No Dondo, meus dias eram assim. Uma sucessão de desafios de interpretação. Compreender quem eram, o que diziam e quem era eu para meus interlocutores. Por que me concediam entrevistas? Eu parecia saber bem o que queria, mas quanto a eles? O que queriam comigo? Responder a esse conjunto de inquietações foi uma tarefa incessante que voltou em minha bagagem. Quando retornei ao Brasil, durante algum tempo passei a classificar todos os meus pensamentos em duas categorias: aqui e lá.

Aqui não, mas, lá, eu ia para a igreja. Quer saber? Era emocionante vê-los cantar e dançar. Caí naquela folia...o corpo duro relaxou e a persona do pesquisador caiu! Queria cair (talvez). Alegria e tristeza, excitação e sofrimento, estavam todos ali e me interpelavam, às vezes, simultaneamente. Em uma noite de quarta-feira, sozinho em meu quarto de hóspede, pensava sobre tudo que observei e sobre as experiências que acabara de viver em um culto de oração. Escrevi:

Na igreja, agora, no momento de oração, fomos orientados a orar em dupla. Procurei uma jovem mãe, sentada sozinha, na última fila, com seu filho, um miúdo2 de um ano, chamado Júnior. Compartilhamos nossos motivos de oração: eu falei de minha gripe insistente e ela das mazelas de Júnior e de suas próprias. Orei primeiro. Ela perguntou se deveria orar, ao que respondi que

2Miúdo era uma das palavras de novos significados que havia aprendido. Naquele contexto significava criança.

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sim. No meio da oração eu, distraído, percebi que ela falava em outra língua. Terminando a oração, soube que falara em Massena (uma das línguas locais aqui de Sofala...comigo falam em português. Com Deus, preferem as línguas maternas). Começamos a conversar. Perguntei quantos filhos tivera e, ao responder cinco, corrigiu dizendo que os três primeiros morreram. Curioso, procurei saber a causa. A resposta foi "nhanga", alguma coisa (uma doença?) que ela não conseguiu traduzir para o português, mas que objetivamente consistiria em uma febre constante acompanhante da criança durante seu crescimento. Perguntei se ela sabia o que era febre amarela, mas para ela febre não tem cor. Feitiço muito menos. Em suas palavras, a nhanga seria uma “doença do sexo da mulher”. Terminamos a conversa olhando para Júnior... que se recupera do resfriado para ser jogador de futebol!

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MAPA DA ÁFRICA

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MAPA DE MOÇAMBIQUE

Disponível em: paginaglobal.blogspot.com/2016/01/mocambique-que-pais-e-este.html, consultado em 26 de abril de 2019.

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INTRODUÇÃO

A tese de doutorado que agora se abre tem sua própria história. Suas raízes se encontram em investigações iniciadas no ano de 2013, resultantes do “Núcleo Internacional e Interinstitucional de História da África: Missões Protestantes em Terras Africanas”, criado na unidade Petrolina da Universidade de Pernambuco onde, através da colaboração de estudantes membros daquele projeto, as primeiras fontes documentais foram encontradas e discutidas com um apoio bibliográfico que, a partir de 2015, adquiriu diversos acréscimos quando ingressamos no Programa de Pós Graduação em História da UNICAMP.

Desse modo, o projeto de pesquisa inicial que consistia em analisar material sobre a presença de portugueses e brasileiros, através de suas agências missionárias cristãs, na África Lusófona, durante o período de descolonização da região, transformou-se, especialmente após a temporada de pesquisas em Moçambique, em 2016, no estudo de um objeto delimitado na expansão de determinado cristianismo batista3 nesse país, desde 1950 (ano de fundação da primeira igreja batista na ex-colônia portuguesa) até 1992, (quando, ao término das guerras civis, nota-se a consolidação do vertiginoso crescimento daquele grupo).

A tese que será defendida argumenta que esse crescimento não foi resultado do colonialismo ou do imperialismo cultural, e sim do aprofundamento e da multiplicação de zonas de contato, já no ocaso do regime colonial português. Nossos objetivos são: primeiramente, demonstrar que, na primeira fase das missões, período em que o trabalho foi conduzido por portugueses, não houve penetração junto às populações autóctones, tampouco crescimento impactante do número de igrejas; em segundo, com a chegada do primeiro grupo de missionários brasileiros, um processo de transição de modelos se projeta a partir da difusão de zonas de contato que passavam a ser construídas sob iniciativa destes; por fim, demonstrar que, através desses espaços de convivência e mutualidade, as populações autóctones foram

3Existem diferentes grupos batistas missionários no mundo. Cada um com suas instituições, agências e métodos. Nessa tese, estudaremos os batistas da Convenção Batista Brasileira (CBB), da Convenção Batista Portuguesa (CBP) e da Convenção Batista de Moçambique (CBM). Essas três Convenções atuaram em cooperação durante o recorte temporal dessa pesquisa e possuem uma identidade doutrinária comum, ligada historicamente à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos (Southern Baptist Convencion) que, através de sua agência missionária, conhecida entre os batistas brasileiros como a Junta de Richmond, foi responsável pela implantação desse grupo no Brasil, na segunda metade do século IXX. Cf:SILVA, Elizete da. Os Batistastas no Brasil. In:Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011, p. 286-290.

Da agência missionária brasileira, por sua vez, saíram os missionários enviados a Portugal para dar origem aos batistas portugueses na segunda década do século XX. Três décadas depois, esses batistas lusitanos fundaram a primeira igreja na colônia moçambicana.

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alcançadas, criando as condições para que cada um dos diversos fatores explicativos dessa multiplicação de igrejas, pudesse emergir.

O recorte temporal iniciado em 1950 com a implantação da primeira igreja, termina em 1992, ano que coincide com o final de um período quase ininterrupto de guerras iniciadas em 1964. No início da década de 1990, já existiam igrejas batistas em todo território moçambicano e, portanto, o final das guerras civis coincide com a conclusão provisória de um processo incitante onde as perguntas por que e como o crescimento do cristianismo batista se deu, abrem possibilidades para diferentes respostas pertencentes a um amplo painel dentro do qual percebemos a existência de tradicionais interpretações que entendiam as missões religiosas em África enquanto consequências diretas de processos históricos mais totalizantes como o colonialismo ocidental na região, a modernidade, o imperialismo ou mesmo a globalização.

Durante a narrativa tecida nos três capítulos, esse tipo de suposição se revela insatisfatório. A suspeita de que esse paradigma, embora útil, não é suficiente para explicar o acolhimento de diversas missões em diferentes pontos africanos e em distintas épocas, nos apresenta a necessidade de eleger um entre os cinquenta e quatro países do continente para investigar o fenômeno da expansão de uma entre as tantas (e metodologicamente inviáveis) vertentes do cristianismo em um recorte temporal específico.

A escolha desse período, portanto, se deu em função da identificação, dentro desses quarenta e dois anos, de todo o processo marcado pela inauguração, a consolidação e a multiplicação numérica do grupo que, durante o período colonial, contava com apenas duas igrejas nas duas maiores cidades da colônia e, ao final de nosso recorte temporal (1992), conseguiu atingir sua meta institucional de se fazer representar em todas as províncias integradoras do jovem país, que não se localiza no continente africano por acaso. A expansão do cristianismo batista em Moçambique participou de um processo de reconstruções mútuas, onde essa cultura religiosa alterou a si própria e as culturas locais, proporcionando um promissor campo de observação para os problemas suscitados pela interculturalidade abundante em variadas regiões africanas, merecedoras de análises preocupadas com suas historicidades.

É nessa direção que o estudo de nosso objeto se comunica com um paradigma político e social marcado pelas rupturas de jovens países com suas metrópoles coloniais durante o século XX, especialmente a partir de seus meados. Esse diálogo lida com a suposição de que o avanço dos cristianismos em África é uma consequência da colonização ocidental no continente e de seus legados, como o imperialismo cultural. A esse pressuposto chamaremos de “paradigma colonial” e, apesar do diálogo com essa chave explicativa, o crescimento da religião que estudamos, e que chegou em Moçambique através de missionários portugueses,

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ocorrera, especialmente, após a partida dos colonos. Assim, compreender sua propagação apenas em função do colonialismo, não é suficiente.

Mais que consequências das políticas coloniais em África, as missões cristãs podem ser consideradas espaços de contatos, tensões, negociações e reelaborações culturais que facilitaram a expansão numérica das igrejas. Campanhas missionárias no continente se fazem notar ao menos desde o século XV4. O expansionismo ocidental moderno é um processo fundamental, abordado na bibliografia que direta ou indiretamente dialoga com nosso tema e que pode mencionar as missões religiosas como integrantes, muitas vezes coadjuvantes, dos vários contextos políticos e sociais, no entanto, o avanço do cristianismo que estudamos em Moçambique não necessariamente fracassou ou prosperou em razão dos mesmos.5

O caso de crescimento cristão estudado nessa tese é apenas mais um entre tantos outros ocorridos, não apenas em Moçambique, mas em diversas outras regiões africanas. Foi no século XX que essa expansão se fez sentir com maior ênfase. Afirma-se que, antes desse período, apenas 10% da África era cristã e que, atualmente, mais da metade o é. Fundações especializadas em dados estatísticos sobre as religiões no mundo como a Pew Forum on Religion and Public Life afirmam que, no início do período, cristianismo e islamismo somavam apenas um quarto da população africana subsaariana que, em sua grande maioria, praticava as chamadas “religiões tradicionais (RTAs)6”. Enquanto o número de muçulmanos se multiplicava por vinte, o cristianismo experimentou um crescimento ainda maior, multiplicando-se por setenta nessa região7.

4Autores como John Baur, embora constatem a presença cristã em regiões africanas desde o primeiro século, identificam o período de expansão comercial do império português, no século XV, como o momento inicial da história do missionarismo cristão em África, ao menos em sua acepção de estreita união entre comércio, reino e missão que caracterizaria as práticas de evangelismo a partir de então. Cf: BAUR, John. 2000 anos de cristianismo em África: uma história da igreja africana. 2ªed. Maputo, editora Paulinas, 2014, p.42-45.

5 Abordagens historiográficas com enfoque nos problemas políticos e sociais podem enquadrar as missões apenas como parte integrante desses contextos (Ver: HERNANDEZ, L. África na Sala de Aula: Convite à História Contemporânea. São Paulo, Ed. Selo Negro, 2005, p.54), no entanto, temas clássicos como a escravidão em África podem apontar para um destaque maior da presença de missionários no continente. Especialistas como Paul Lovejoy, a exemplo, evidenciam a relevância do estudo das missões modernas, na medida em que a associam ao tema da escravidão e do abolicionismo. Segundo esse autor, apesar de considerar igualmente conservadora a abordagem de católicos e protestantes, as missões cristãs teriam sido os agentes mais ativos na luta contra a escravidão nativa no séc. XIX. Ver: LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.336.

6Esse termo será evitado, por razões que serão esclarecidas ao longo do trabalho. Nas ocasiões nas quais o aplicamos, optamos por sermos fiéis aos autores ou às fontes documentais que o utilizam em situações específicas.

7Com resultados considerados muito aproximados do anuário estatístico da igreja católica, o relatório da fundação Pew Forum on Religion and Public Life é interpretado por instituições católicas que

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Não obstante os questionamentos que se possam levantar sobre esses números,8 essas transformações causaram profundas alterações no mapa global das religiões e nas dinâmicas de redistribuição e crescimento dos cristianismos no mundo. Segundo dados publicados pelo Center for the study of global christianity, 80% dos cristãos eram europeus ou norte-americanos até 1900. Hoje, menos de 40% estão nessas regiões. Em 1910, os dez países com maior número de cristãos não católicos do mundo estavam na Europa e na América do Norte. Em 2015, três desses países estavam na África, onde hoje vivem 41% desse seguimento religioso em todo o mundo, tornando-se o continente mais representado por essa vertente do cristianismo em todo o planeta nos últimos sessenta anos, quando ultrapassou em mais que o dobro desses números a Ásia, segundo colocado nesse ranking9. No início do século XXI, o historiador Ogbu Kalu chamava a atenção para esse advento que, em números, pode ser visualizado no seguinte gráfico10:

explicam essa vantagem numérica cristã em razão da predominância dessa religião precisamente ao sul do Saara. Tal vantagem é reequilibrada pela ampla maioria de muçulmanos no norte da África.

Disponível em:

www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EkZlupZVZuWHmaaUoM. Acesso em: 02 de maio de 2019.

8Entre estes questionamentos podemos destacar os que dizem respeito aos praticantes das chamadas “religiões tradicionais africanas (RTAs)” que, muitas vezes, são apontadas como as principais “fornecedoras” de cristãos recém convertidos no continente africano. É preciso, para além dessa constatação, desconfiar das conclusões estatísticas na medida em que os diversos aspectos das cosmologias africanas normalmente reduzidas ao termo “religiões” nessas pesquisas de dados, podem prosseguir de múltiplas formas dentro dos variáveis cristianismos que se desenvolvem em África a partir de negociações culturais que ainda carecem de estudos.

9Esses movimentos são percebidos como “positivos” por estudos com importantes méritos de pesquisa e que, no entanto, utilizam termos como “correcting”, para se referir à ação transformadora das missões cristãs transculturais, “celebradas” pelos pesquisadores (no original: “scholars celebrate the rise of a positive polycentrism”). Apesar de certa tendência triunfalista, implícita nas notas de pesquisa destes centros de estudo, os fecundos diálogos com determinados estudos culturais pós coloniais apresentados ao longo desse trabalho revelou-se coadjutor para a nossa investigação, ainda que nossa pesquisa não comungue desse mesmo ideal comemorativo. Cf: MOON, Daewon. Mission History and World Christianity. Disponível em: http://www.bu.edu/cgcm/annual-theme/mission-history-and-world-christianity/. Acesso em: 03/03/2017.

10KALU, O. Chapter two - African christianity: an overview. In: African Christianity: an african story. Trenton, World Press, 2007, p.24.

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ANO POP.MUND. CRISTÃ % NÃOOCIDENT OCIDENT 1900 1,620M 558M 34% 14% 86% 1950 2,510M 856M 34% 36% 64% 1970 3,696M 1,236M 34% 44% 56% 1990 5,266M 1,747M 33% 56% 44% 2000 6,055M 2,000M 32% 60% 40%

Considerada a grande multiplicação do número de habitantes do planeta ao longo do período, observa-se que a quantidade de cristãos conservou-se proporcionalmente estabilizada. No entanto, dentro do cristianismo, uma radical alteração pode ser notada. De acordo com o quadro, essa troca de posições, observada com mais precisão nas últimas décadas do século XX, transformou o cristianismo, associado à cultura ocidental e de matriz europeia, em uma religião de maioria não ocidental. Essa transformação, mais que reflexo de sistemas coloniais, estaria associada às novas formas de apresentação e revitalização de cristianismos africanos em contextos culturais bastante distintos.

Essa capacidade de “adaptação” teria afetado as missões como principal forma de nutrição dos cristianismos tornando possível o surgimento de novos fenômenos como as reverse missions, compreendidas como uma das consequências da multiplicação cristã na África e na Ásia, continentes onde as adaptações, as zonas de contato e as trocas culturais criaram novas representações, novas práticas, novas teologias, novas missiologias e novos significados da religião cristã que, então, passava a ser exportada a partir desses novos polos difusores, passando a formar e enviar missionários (a) para a Europa e América do Norte, em um movimento que flui na direção contrária à que existia no período colonial. Ao final do século, os desdobramentos dessas alterações teriam transformado o cristianismo em uma religião policêntrica, com vários polos se comunicando culturalmente, em alimentação relativamente recíproca, onde o continente africano e notadamente sua porção subsaariana ocupariam destacada posição.

Dessa forma, o cristianismo se espalhou pela África, ao longo do século XX, antes e depois dos regimes coloniais e, portanto, estudos historiográficos que enfrentem o tema da expansão dos diversos cristianismos nas culturas africanas se justificam na medida em que as análises focadas nas religiões como parte dos problemas políticos ou econômicos do colonialismo, muitas vezes, não conseguem discutir e explicar a multiplicação de cristãos em determinadas regiões africanas. Assim, embora seja vultoso o crescimento numérico dos

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variados cristianismos no continente, suas causas, em âmbito historiográfico, permanecem, em grande medida, sem respostas convincentes.11

Dessa maneira, o avanço dos diversos cristianismos no continente ainda carece de mais análises que apontem para além do impacto político e social de católicos e protestantes na África (Lusófona no caso desse estudo), abordando também as discussões culturais pertinentes ao encontro de sujeitos históricos culturalmente diversos que, através das experiências religiosas, experimentaram mediações e alteridades nos múltiplos recortes de tempo e espaço enquanto possibilidades de pesquisa.

Compreendendo, portanto, que para além das relações entre religião, política, sociedade e economia, as missões cristãs na África inserem-se em diversas transformações com eixo no campo da cultura, essa tese tem o intuito de destacar, dentro do ambiente historiográfico, o problema das alteridades e de suas mediações culturais em zonas de contato. Nosso recorte na presença de um entre tantos cristianismos africanos destaca uma experiência produtora de trocas e negociações culturais que modulavam os indivíduos, com diferentes antecedentes, que dela participavam.

Sua rota teórica pode ser definida a partir das consequências do que convencionou-se chamar de “virada cultural” dentro das ciências humanas, especialmente a partir da década de 1970, quando os efeitos de uma transição paradigmática já negociavam as propostas mais holísticas e totalizantes das grandes teorias explicativas com a multiplicação dos objetos construídos em escalas reduzidas12, como é o caso do nosso, e da relação que possui com um paradigma explicativo que o associa a processos históricos mais genéricos e amplos.

Dessa forma, o conceito de cultura nos termos empregados por Michel de Certeau, para quem “a cultura apresenta-se como o campo de uma luta multiforme entre o rígido e o flexível13”, se mostrou pertinente e útil à problematização de nosso objeto, na medida em que ele se apresentava através da relação entre um firme paradigma explicativo já consolidado, e

11Estudiosos africanos como Tshishiku Tharcisse Tshibangu, bispo católico e historiador congolês especialista em religião na África do século XX, consideram que os historiadores têm se interessado pelo “fato religioso” na medida em que este contribui para o entendimento da esfera pública, das lutas de libertação colonial, dos combates internos a cada nova nação independente, onde as religiões costumam ser notadas como parte das disputas pelo controle da educação, ou como fator de agregação entre minorias religiosas destacadas como grupos de resistência política. Ver: TSHIBANGU, Tshishiku; AJAYI, Ade; SANNEH, Lemim. Religião e evolução social. In: História Geral da África v. 8. Editor Ali A. Mazrui e assistente de editor. C.Wondji. Brasília/São Carlos: MEC/Unesco/Ufscar, 2010, p.607. 12MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p.15.

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outras possíveis respostas que precisariam com ele tensionar, originando novas dúvidas e conclusões mais maleáveis.

No caso de nosso objeto, a efetiva expansão do cristianismo batista em Moçambique, não ocorreu de modo significativo no período colonial, e sim no pós independência, não podendo, assim, ser considerada um simples reflexo do imperialismo cultural ocidental e de um inflexível paradigma explicativo que lhe associaria ao colonialismo português, encerrando qualquer discussão a respeito, ainda que esse imperialismo cultural pudesse se manifestar antes e depois do regime colonial.

Conclusões precoces ou suposições dessa natureza geram a necessidade de um estudo de caso que participe desse debate através de novos apontamentos. Assim, a constatação do crescimento efetivo do cristianismo analisado nessa tese apenas após a partida dos portugueses que o trouxeram, é o fato histórico responsável pelo nascimento de nosso objeto, pois, essa intrigante confirmação, merece investigações que apontem suas causas e que evidenciem a necessidade de questionar a ideia de “falta de opção” ou de uma suposta imposição cultural que ultraje as capacidades de africanos e africanas enquanto sujeitos históricos que culturalmente interagiam com as propostas religiosas, impostas ou não, fazendo delas outras elaborações culturais moduladas segundo suas próprias experiências e contingências históricas.

Essa trajetória teórica e de pesquisa que situa nossa tese dentro do campo da História Cultural se toca com a referência da Escola Italiana de História das Religiões14, na medida em que esse conjunto de estudos iniciados nas primeiras décadas do século XX com as publicações da revista Studi e Materiali di Storia delle Religione e das obras do pensador Raffaelle Pettazzoni (1883-1953) argumentavam que o estudo das religiões, em suas abordagens históricas, sociais e antropológicas, deveria circunscrever-se a objetos específicos,

14 O percurso da Escola Italiana de História das Religiões é longo. Autores como Adone Agnolin e Eliane Moura da Silva explicam que a principal influência dos estudos era advinda do Istituto di Studi Storico-Religiosi da Università La Sapienza, na cidade de Roma, com a coordenação do professor Pettazzoni. Em texto de nossa autoria, explicamos que o método histórico-comparativo, proposto por esse intelectual, defendia a natureza humana e cultural dos fatos religiosos. A partir da influência do docente, outros pesquisadores contribuíram com essa abordagem, a exemplo de Ernesto De Martino, Angelo Brelich, Vittorio Lanternari, Dario Sabbatucci, Marcello Massenzio, Paolo Scarpi, Gilberto Mazzoleni e Nicola Gasbarro. Cf: AGNOLIN, A. História das Religiões: Perspectiva histórico-comparativa. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 53-68; SILVA, E. História das Religiões: algumas questões teóricas e metodológicas. In: Religião, Cultura e Política no Brasil. Campinas: ed. UNICAMP, 2011, p.15 e MOREIRA, H; MOURA, C & OLIVEIRA, G. História Cultural das Religiões. In: Ecco Clóvis; QUADROS, Eduardo Gusmão de; SIGNATES, Luiz; SILVA, Rosemary Francisca Neves. Religião, Saúde e Terapias Integrativas. Goiânia: ed. Espaço Acadêmico, 2016, p.94.

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reduzidos às suas historicidades e deslocados dos essencialismos que caracterizavam as pesquisas desse campo15.

No itinerário dessas pesquisas é que nossa tese pretende se introduzir nos estudos de História Cultural das Religiões através de uma abordagem mais condizente com nossa área de conhecimento, distanciando-se das posturas fenomenológicas que predominavam nas Ciências das Religiões, e poderiam aproximar a abordagem de nosso objeto de um sentido essencialista das religiões, contrário à forma como entendemos as culturas e suas dinamicidades em constante transformação.

Dessa maneira, a história que vamos aqui contar é uma história de religião e, mais que isso, uma história cultural de religião. Com isso, estamos assinalando que, na medida em que transportamos nosso objeto de estudo para o ambiente mais dilatado e flexível da cultura, entendemos que o próprio social pode se adaptar e se ajustar em uma relação dinâmica que “liberta” a expansão do cristianismo aqui analisada de qualquer “corrente” interpretativa que lhe “amarre” a processos históricos políticos, econômicos e sociais mais amplos. Seguindo essa sugestão paradigmática, estaríamos apenas reafirmando a expansão do cristianismo enquanto reflexo previsível da colonização ocidental em África. Resposta pronta. Pesquisa desnecessária. A compreensão dessa atuação do cultural sobre o social, pode ser ainda melhor compreendida com o apoio da perspectiva analítica do francês supracitado, quando se utilizou da metáfora do urbanista para questionar a aplicação dos projetos urbanístico-arquitetônicos, sempre limitada pelas práticas criativas dos habitantes da cidade que, na analogia de nossa pesquisa, seriam representados (a) pelos (a) missionários (a) e por africanos a serem evangelizados segundo o planejamento das agências de missões que enviavam os primeiros.

Para Certeau, alguns moradores do subúrbio de Paris oriundos do Norte da África, na segunda metade do século XX, ao serem impelidos a morar nos conjuntos habitacionais previamente planejados por arquitetos e urbanistas ocidentais, passavam a utilizar tais locais de acordo com seus próprios backgrounds culturais e com as contingências próprias da condição de imigrantes, segundo as quais esses sujeitos distorciam as propostas urbanísticas originárias, dobrando-as nessa ou naquela direção.16

15Cf: SILVA, Eliane Moura. História das religiões algumas questões teóricas. In: SILVA, Carlos André Religião, Cultura e Política no Brasil: Perspectivas históricas S. de Moura; SILVA, Eliane Moura; SANTOS, Mário R. dos e SILVA, Paulo Julião. (org.). Campinas: Ed. UNICAMP/IFICH, 2011, p.11-22.

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Semelhante aos estudos que tentam compreender “o plano do arquiteto”, ignorando os usos dos verdadeiros praticantes daquele espaço, é que as pesquisas sobre missões religiosas em África, ou qualquer continente, que se disponham a compreender esses fenômenos históricos a partir do programa das agências missionárias, ou dos governos coloniais e pós coloniais, apenas apontariam para o “planejamento arquitetônico”, nos privando de entender as maneiras como “os habitantes da cidade” utilizavam aquele local e conviviam dentro dele.

É nesse sentido metafórico que as práticas culturais não apenas refletem as identidades sociais, mas atuam em suas construções. Quando a cultura deixa de ser determinada pelas estruturas materiais, passa a representar um campo maior dentro do qual os objetos de estudo da história passam a ser considerados. Dessa maneira, ao entendermos a História Cultural como “uma operação historiográfica que busca, cada vez mais, orientar a sua prática de pesquisa por um ou outro conceito de cultura”17, legitimamos a relação entre este campo historiográfico e a Escola Italiana de História das Religiões, que, desde suas origens, propunha o entendimento das religiões como fenômenos culturais.18

Portanto, apesar da interface com as questões ideológicas mais comuns aos historiadores que se debruçam sobre os fenômenos das colonizações em perspectivas variadas como as da história política, da história econômica ou da história social, o trabalho pretende dialogar com, mas também se distinguir dessas abordagens, discutindo a expansão do cristianismo batista em território moçambicano como uma construção histórica, de cerca de quatro décadas, que tentaremos explicar em função da existência de práticas culturais de uma zona de contato, próprias das alteridades que experimentavam os diversos sujeitos históricos, que conviviam no mesmo espaço e compartilhavam as dificuldades das mesmas circunstâncias históricas.

Uma análise da expansão batista em Moçambique que tente compreendê-la a partir dos problemas culturais, não é a única necessidade que precisamos pontuar no início desse trabalho. Analisar um objeto constituído dentro do espaço africano requer, ainda, outra atenção. Discutir essas alteridades entre missionários ocidentais e pessoas autóctones daquele continente

17BENATTE, Antonio Paulo. A História Cultural das Religiões: contribuições a um debate historiográfico. In. SILVA, Eliane Moura da; ALMEIDA, Néri de Barros (Org.). Missão e Pregação: a comunicação religiosa entre a História da Igreja e a História das Religiões. São Paulo: FAP – UNIFESP, 2014, p. 62.

18 Cf. MOREIRA, Harley Abrantes; MOURA, Carlos André Silva de & OLIVEIRA, Gustavo de Souza. História Cultural das Religiões. In: Ecco Clóvis; QUADROS, Eduardo Gusmão de; SIGNATES, Luiz; SILVA, Rosemary Francisca Neves. Religião, Saúde e Terapias Integrativas. Goiânia-GO: Ed. Espaço Acadêmico, 2016, p.91-102.

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remete para além de uma trajetória de nossa própria pesquisa e do encontro de nosso objeto com seus problemas.

O diálogo com a História da África alerta para a necessidade de superar ingenuidades que prejudiquem os debates suscitados por esse trabalho, aludindo também ao itinerário dessa matéria em âmbito acadêmico e, assim, a proposta pode tornar-se mais nítida se considerarmos o próprio modo como foi tratado, não apenas o estudo das missões em solo africano, mas as diversas temáticas pertinentes à história da África que, em resposta às lentes de um conhecimento ocidental e eurocêntrico, passou a elaborar, a partir de meados do século XX, o que foi chamado de “corrente historiográfica afrocêntrica”, também conhecida como a “corrente da superioridade”19.

Desenvolvidas dentro do período de descolonização, essas pesquisas caracterizaram-se pelo perfil de seus historiadores, em grande medida de origem africana com formação acadêmica em grandes universidades europeias e dos Estados Unidos. Almejava-se nessa produção, a reconstrução da história da África a partir da necessidade de escrever um passado para as recém-nascidas nações e, nesse sentido, construíra-se uma narrativa comprometida com a supervalorização africana, desenvolvida na perspectiva de denúncia contra a colonização europeia, em geral apontada como a grande responsável pelo subdesenvolvimento do continente.

Essa perspectiva, também conhecida como “pirâmide invertida,”20 foi de fundamental relevância em um momento em que a tarefa de combater o paradigma eurocêntrico de escrita daquela história era tão urgente quanto a necessidade, ainda vigente, de apresentar as diversas contribuições africanas para o desenvolvimento da humanidade. No entanto, no que tange ao nosso objeto, não subsidiam o entendimento da expansão do cristianismo batista em Moçambique, notadamente após à independência do país, quando a religião trazida pelos colonos portugueses não abandonou o território nacional nas apressadas rotas de fuga tomadas pelos brancos lusitanos. Ao contrário, a partir daquele momento, as missões batistas, até então acomodadas a um pífio crescimento, se multiplicaram e se espalharam por todas as províncias. Nesse contexto de valorização da África a partir da quebra de paradigmas, as pesquisas sobre o continente tenderiam a valorizar as cosmologias africanas em detrimento do descrédito para com os cristianismos considerados ocidentais e, nesse sentido, poderíamos,

19OLIVA, A. A História da África nos Bancos Escolares: Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, nº3, 2003, p. 441.

20C. LOPES. A pirâmide invertida: historiografia feita por africanos. In: Actas do colóquio construção e ensino da história da África, Lisboa, Linopazas, 1995, p.25.

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também, aguardar pelo crescimento dessas práticas culturais enraizadas na interatividade dos africanos com os espíritos dos antepassados, uma vez que a competição com sua concorrente religiosa universalista e ocidental já não lhes ameaçaria.

Dessa forma, na medida em que a “inversão da pirâmide”, ao rejeitar o eurocentrismo e o protagonismo ocidental nas narrativas historiográficas sobre a África, valorizava os elementos culturais autóctones anteriores à presença do colonizador, por consequência, insinuava determinada tendência a considerar as propostas religiosas trazidas pelos colonos como inadequadas ao futuro das novas nações que, a partir de suas independências, necessitavam escrever, com suas próprias mãos, o passado histórico que legitimaria a elaboração de suas identidades nacionais afrocentradas.

A dificuldade que essa premissa anuncia, associa-se aos números estatísticos (sempre relativos e passíveis de apreciações críticas) que apontam o grande crescimento numérico dos cristianismos e a redução de adeptos das chamadas “religiões tradicionais africanas” após as independências, afinal, se as “RTAs”21 representam as raízes das populações locais que então se nacionalizavam, esses sujeitos africanos deveriam por elas optar, mas “aparentemente” não o fizeram. Dessa forma, a abordagem de nosso objeto a partir de chaves interpretativas comprometidas com uma leitura inflexível do crescimento dos cristianismos em África se desgasta e a consequência que desse modelo germina, se encontra, paradoxalmente, com as conhecidas inferiorizações dos povos africanos que continuariam sem discernimento

21Chegado o oportuno momento para esclarecermos nossas opções em torno desse termo, destacamos que consideramos seu uso inadequado em razão da tradição histórica eurocêntrica que constrói um sentido e um significado para a palavra “religião”, ligado ao próprio cristianismo construído concomitante à própria cultura ocidental. Ademais, as maneiras como as religiões se desenvolvem mediante aos diversos contextos culturais que modelam suas práticas torna necessário o emprego do plural em todas essas situações. No caso do continente africano, o emprego da palavra “religião”, ou mesmo “religiões”, requer uma atenção ainda maior, uma vez que as grades eurocêntricas desses termos são inadequadas para a compreensão de diversas culturas e cosmologias africanas, dotadas de suas próprias historicidades. Para maiores discussões a respeito, ver: AGNOLIN, A. História das religiões: perspectiva histórico-comparativa. São Paulo: Paulinas, 2013, p.11-21; 51-66; 239-241; Ibidem, História das Religiões: Teoria e Método. In: Reconhecendo o Sagrado. São Paulo, Fonte Editorial, 2013, p.31-45; GASBARRO, N. Missões: A Civilização Cristã em Ação. In MONTERO, P. Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, p.67-78; Ibidem, A Modernidade Ocidental e a generalização de “Religião” e “Civilização”: o agir comunicativo das missões. In: Missão e Pregação. (Ogs.) ALMEIDA, N; SILVA, E. São Paulo, ed. FAP-UNIFESP, 2014; MASSENZIO, M. A História das Religiões na Cultura Moderna. São Paulo: Hedra, 2005, p.37-40; OLIVA, A. A História da África nos Bancos Escolares: Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, nº3, 2003, p.452. Ibidem, Em Busca de um Diálogo Afrocentrado Acerca das Cosmologias Africanas. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro - Junho de 2017, Vol.14, ano XIV, nº 1 e DIAS, J. Pensar em Deus em África: um Problema de Conceitos e Mudanças. Sankofa, São Paulo, 4(8), 2011, p.83-96.

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para tomar suas próprias decisões, uma vez que, erroneamente, optaram por uma religião trazida pelo “colonizador”, ou seja, a “religião errada”, ao menos do ponto de vista ideológico.

Seguindo essa rota, torna-se difícil escapar da ideia de que a multiplicação dos cristianismos em África é tão somente uma das consequências do assimilacionismo, do abandono das raízes culturais e das escolhas sempre equivocadas das populações africanas. Esse ponto crítico é central na problematização de nossa tese e determinante para os caminhos adotados em nossa pesquisa, uma vez que, aceitando essa perspectiva, teríamos que nos comprometer com a necessidade de conscientizar esses povos, sem autonomia, para um retorno essencialista ao que lhes identificasse enquanto peculiaridade cultural homogênea e genuinamente africana. Ao contrário, optamos por não julgar suas próprias escolhas e nos comprometermos tão somente com o desafio de entendê-las.

O estudo de nosso objeto, dessa forma, passa a evitar associações diretas e causais com os processos políticos que exigiam e continuam exigindo respostas anticoloniais, mas que, como pode acontecer com qualquer paradigma, se prende a um único e hermético olhar que também possui suas limitações. Além disso, quando tentamos nos colocar na rota de uma história cultural em perspectiva crítica, estamos, de início, rejeitando qualquer espécie de essencialismo, não apenas o epistemológico e o religioso mas também o político e o ideológico, que implicaria em um reconhecimento quase “fenomenológico” e politicamente essencialista das religiões cristãs enquanto reflexos do imperialismo cultural em África, em detrimento das “religiões tradicionais” como símbolos de resistência.

Ao perceber a existência do paradigma colonialista que tende apenas a enxergar nas missões cristãs uma face do etnocentrismo ocidental, nossa tese propõe a análise do crescimento de uma denominação cristã em um país africano como uma lanterna que tenta iluminar aspectos até então escondidos pelo predomínio de generalizações que, a rigor, são muitas vezes verdadeiras, porém inadequadas para objetivos como o nosso, e insuficientes quando nos impedem de notar relações culturais que escapam da redução binária de posições essencialistas representadas em uma de suas extremidades pela figura do colonizador imperialista, com quem o missionário se confundia e, de outro lado, pelo africano a ser subordinado e que, de tal destino só escaparia quando, em atitude de resistência, optava por suas cosmologias ou ancestralidades e que, quando convertido ao cristianismo, inevitavelmente ocidentalizava-se abrindo mão de sua africanidade.

Esse paradigma generalizador cumpre seu papel quando aponta as intenções originais das empresas missionárias. No momento em que as atividades batistas se desenvolveram em período colonial, e especialmente antes da chegada das (o) brasileiras (o),

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não foi difícil notar a participação de sua agência de missões no diálogo, no compartilhamento de significados e na construção de sentidos culturalmente imperialistas. Com estes, o discurso missionário se integrava dentro de uma única ordem discursiva que pode ser melhor compreendida na formulação de Valentim Mudimbe quando afirma que:

Tendo em consideração a teologia da salvação missionária, e mais precisamente as políticas gerais da conversio gentium, torna-se evidente que a mesma violência está associada ao processo espiritual e cultural de conversão na união hipostática. Todos os missionários, independentemente das suas denominações, operam de acordo com o mesmo cânone de conversão. [...] Todos eles tendem a integrar objetivos culturais e religiosos, sendo a missão no seu todo orientada para a promoção cultural e salvação espiritual dos “selvagens”.22

Com outras palavras, Mudimbe estava nos dizendo que a ideia de uma salvação através da fé em Jesus Cristo foi rigorosamente presente nas intenções de qualquer projeto missionário que pudesse ser diferenciado em suas práticas culturais. Disso não duvidamos e, dessa forma, posto que os cânones teológicos e as propostas primordiais das instituições missionárias são bastante conhecidas, nossa pesquisa não cogita analisar políticas de conversão ou teologias missionárias, mais ou menos canônicas ou ortodoxas, por compreender que tal procedimento pouco ajudaria a entender as relações culturais que ocorrem dentro de um campo missionário e o crescimento do cristianismo que analisamos.

Não se trata, portanto, de refutar as afirmações generalizantes que dialogam com esse paradigma e que, como habitualmente ocorre com as generalizações, podem se confirmar em diferentes graus de veracidade mas, ao analisar o estabelecimento do cristianismo batista em Moçambique ao longo de seus quarenta e dois anos iniciais, o que pretendemos é compreender porque essa proposta foi aceita por tantos africanos, em um diálogo inevitável entre nossa tese e o que temos chamado de “paradigma colonial”.

Esse modo de interpretar a presença e a expansão dos cristianismos em África nos foi apresentado por retrospectivas acadêmicas mais recentes acerca dessa temática. A aplicação do paradigma colonial, com suas possibilidades e limitações, já foi criticada dentro da historiografia das missões cristãs em escala global e pode ser conhecida através da crítica historiográfica de especialistas como Dana Robert, que apontam a insuficiência desses estudos quando tendem a negligenciar as experiências concretas de missionários e de convertidos nos

22MUDIMBE, V. A Invenção de África, Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento. Ed. Pedago, Mangualde-Portugal & Ed. Mulemba, Luanda-Angola, 2013, p.76.

Referências

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