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Compatibilidade entre Fenomenologia, Gestalt-terapia e desleitura

CAPÍTULO 4 – REFERENCIAL PARA CONDUÇÃO E INTERVENÇÃO NO CLUBE

4.3. Compatibilidade entre Fenomenologia, Gestalt-terapia e desleitura

Conforme exposto anteriormente, a desleitura envolve um processo de interação do sujeito leitor com a obra à qual ele se propôs a entrar em contato, resultando, deste processo, numa continuação da obra a partir da subjetividade do sujeito leitor, através de reminiscências despertadas por aspectos da obra literária em questão.

Esse processo é compatível com o entendimento que a fenomenologia tem a respeito da obra literária. Bordini (1990), ao discorrer sobre teoria literária em fenomenologia, cita a relação da pessoa com o livro que

Criada pelo leitor, ela lhe proporciona um mundo imaginário quase real, em que as objetividades são testemunhadas como objetos para ele, capazes de provocar vivências emocionais e cognoscitivas com

os objetos reais (...) Ao ler, o leitor preenche os esquemas aspectuais com detalhes decorrentes de seu acervo perceptivo e de sua preferência em termos de sensibilidade (pp. 146-7, grifo nosso).

Isso quer dizer que o leitor não é passivo na sua interação com a obra literária, pelo contrário, ele a completa a partir de aspectos inteiramente subjetivos, adquiridos ao longo de sua experiência de vida (emocional e intelectual).

Essa experiência de vida é única e própria a cada pessoa, chegando a ser diferente mesmo entre duas pessoas que passam pela mesma experiência – “O termo ‘fenomenológico’ implica o processo que a pessoa experiencia como unicamente seu” (Zinker, 2007, p. 94) – como Dexter (Lindsay, 2013, p. 297), ao duvidar que sua nova namorada esteja se sentindo tão bem quanto ele nesse relacionamento, pois “Cada pessoa é diferente, cada uma tem expectativas diferentes, e não há duas que tenham a mesma experiência, mesmo quando a compartilham”.

Por isso, temos razões para acreditar que duas pessoas que se relacionam com a mesma obra literária, passam por experiências diferentes. Mas, anterior ao ato de ler, a pessoa tem que se direcionar para o objeto a ser lido. Tal ação diz respeito, em fenomenologia, à intencionalidade.

Para Husserl (1931/2001, p. 48), a intencionalidade é uma “particularidade intrínseca e geral que a consciência tem de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em si próprio.” Para Dartigues (1973, p. 24), “o princípio da

intencionalidade é que a consciência é sempre ‘consciência de alguma coisa’, que ela só é consciência estando dirigida-para um objeto (sentido de intentio). Por sua vez, o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência, ele é sempre objeto-para-um-sujeito”:

Se o objeto é sempre um objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais um objeto em si, mas objeto- percebido, ou objeto-pensado, rememorado, imaginado, etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que poderá parecer estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. Se a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto para a consciência”, é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que, fora dela, não haveria nem consciência nem objeto (p. 26).

Em Merleau-Ponty (1945/1999), assim como em toda abordagem fenomenológica, toda consciência tem que ser consciência de algo, uma vez que a percepção interior não é possível sem percepção exterior. Assim, a fenomenologia supera a dicotomia sujeito-objeto (Bruns, 2003, p. 68), pois

não há consciência desvinculada de um mundo para ser percebido e nem há mundo sem uma consciência para percebê-lo ou, em outras palavras, não há “consciência pura”, separada do mundo, como afirmam os racionalista, uma vez que toda consciência tende para o mundo. Igualmente, não há objeto em si independente de uma consciência que o perceba, conforme a visão dos empiristas.

Ora, em relação a uma interação sujeito e objeto, “suas propriedades não são restritas ao objeto em si mesmo, mas só existem em função daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido” (Freitas et al, 2012, p. 146). A forma como o sujeito interage com determinado objeto ou fenômeno se dá através da forma de “como” o sujeito percebe tal fenômeno, percepção essa que é sempre uma percepção de algo, uma percepção auxiliadora de “uma função cerebral que confere significado a estímulos sensoriais a partir da experiência de vida ou da memória” (p. 147).

Dessa forma, temos o ato no qual uma consciência se dirige a um objeto (sendo consciência para esse objeto na medida em que há um objeto para essa consciência) e a interação do sujeito com esse objeto que, em nosso caso específico, é a interação do leitor com a obra literária possibilitando, assim, a apreensão subjetiva da obra literária.

Esse processo tem um correlato muito forte com o conceito de agressão em Gestalt- terapia. A agressão – pela qual Perls começou a estruturar a teoria gestáltica, dando um novo contorno a esse conceito que não o da Psicanálise – é entendida como o desestruturar de substâncias físicas, emocionais e intelectuais que o meio oferece a fim de que se tornem substâncias assimiláveis para a pessoa (Perls, 1977c). Na natureza, a agressão é necessária no

processo de assimilação, pois, para crescer e se desenvolver, o organismo precisa incorporar substâncias de fora e, para torná-las assimiláveis, necessita desestruturá-las.

Interessante notar uma semelhança entre essa concepção gestáltica da agressão e a ideia de cultura brasileira proposta pelo Manifesto antropófago (que muitos consideram uma evolução do Manifesto pau-brasil) de Oswald de Andrade, consolidando a cultura brasileira como uma resultante de um processo de assimilação das culturas modernas europeias por parte das culturas locais primitivas (Nunes, 1979), fazendo com que o Brasil se destacasse em produções artísticas no campo da culinária, da literatura, da dança e etc.

Esse manifesto é um gesto “contra todos os importadores de consciência enlatada” (Andrade, 1928, s.p) defendendo, desse modo, uma “agressão” do povo brasileiro em relação ao que é aprendido pelo mundo externo, criando uma brasilidade própria de nossa gente.

De modo que perguntamos se não seria a desleitura, após o ato de intencionalidade, uma tentativa de agressão, de assimilação da obra literária por parte da pessoa, onde essa pessoa “desestrutura” a obra em questão, tornando-a sua, com seus caninos intelectuais e emocionais, ou seja, com sua subjetividade, tendo para isso, como finalidade, o autoaperfeiçoamento e o crescimento pessoal?

Zinker (2007, pp. 295-7) estabelece algumas aproximações entre fenomenologia- existencial e o método gestáltico. Para o autor, na fenomenologia todas as partes do organismo estão interrelacionadas dinamicamente, onde cada parte é compreendida somente em relação às outras, enquanto na Gestalt se dá atenção ao corpo como um todo (postura, respiração, movimento e etc.). Sobre o ser-no-mundo da pessoa, na fenomenologia sua urgência existencial se dá no aqui e agora, em complemento, a Gestalt, direciona sua atenção ao que a pessoa experimenta naquele momento (localizando e descrevendo suas sensações). A respeito da aprendizagem, na fenomenologia esta acontece no organismo total e para ela acontecer, na Geslta-terapia, tem-se o foco nos bloqueios sensório-cognitivo-motores específicos.

O próprio Perls reconhece a influência da fenomenologia no desenvolvimento de seu conceito de awareness em Gestalt-terapia ao afirmar que “fiz da tomada de consciência (awareness) o ponto central da minha abordagem, reconhecendo que a fenomenologia é o

passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo que é possível saber. Sem consciência nada há” (1979, p. 70).

Dessa forma, podemos ter uma ideia de quão compatíveis podem ser a fenomenologia, a Gestat-terapia e a desleitura. E que, em nosso caso específico, como o Clube do Livro Identidade, pode ser um lugar privilegiado para a interação e a realização prática desse tripé teórico.