• Nenhum resultado encontrado

O clube do livro identidade : uma análise femonológica e gestáltica

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "O clube do livro identidade : uma análise femonológica e gestáltica"

Copied!
114
0
0

Texto

(1)

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Programa de Pós-Graduação

Stricto Sensu

em Psicologia

O CLUBE DO LIVRO IDENTIDADE: UMA ANÁLISE

FENOMENOLÓGICA E GESTÁLTICA

Brasília - DF

2015

Autor: Diego Paulino Galhardo

(2)

O CLUBE DO LIVRO IDENTIDADE: UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA E GESTÁLTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª Drª Ondina Pena Pereira

(3)

G155c Galhardo, Diego Paulino.

O Clube do Livro Identidade: uma análise fenomenológica e gestáltica. / Diego Paulino Galhardo – 2015.

112 f.; il.: 30 cm

Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2015. Orientação: Profa. Dra. Ondina Pena Pereira

1. Psicologia. 2. Desleitura. 3. Gestalt-terapia. 4. Fenomenologia. 5. Grupo terapêutico. I. Pereira, Ondina Pena, orient. II. Título.

CDU 159.9

(4)
(5)

AGRADECIMENTOS

Graças a Deus, consegui concluir essa importantíssima fase de minha vida, o curso de mestrado, que, além de ser algo que eu ansiava e necessitava, me fez crescer como pessoa e como profissional, resultando num sentimento de felicidade. Obrigado, meu Jesus!

Agradeço a minha família: meus pais, Aroldo e Maria, que me apoiaram e me incentivaram a fazer esse curso em Brasília, cidade que eu não tinha interesse em viver, mas onde acabei sendo feliz (conselho de pai e mãe); e aos meus irmãos que, por diversas vezes (talvez sem o perceberem), foram fontes de inspiração para mim, Murilo por sua ousadia e crença, Marcelo por sua frieza e inteligência e Douglas por sua jovialidade e talento.

Agradeço também a minha família de Brasília: tia Sônia e Alcino, que me receberam em sua casa tornando viável minha permanência, desde o período de seleção do curso, passando pelos dias que estive sem casa e chegando aos almoços de domingo; e aos meus queridos primos, com quem estabeleci convivência e quero que continuemos a fazer parte um da vida do outro, Talita, Iugo, Vinícius, Líris e Matheus.

Ao IF-TO, nas pessoas do diretor Miguel Camargo e da diretora de gestão Edileuza França, que me atenderam com prontidão, me liberando para esses dois anos de jornada acadêmica.

À minha orientadora, Ondina, que sempre me deu muita autonomia, mostras de respeito intelectual – na pesquisa, estágio em docência e produção bibliográfica – e que, com certo estilo despojado, me fez ter mais interesse na vida acadêmica.

(6)

Francisco, por se mostrar tão energético (acreditando no meu potencial), com metáforas do meu jeito de ser e me fazer avaliar a minha (falta de) vaidade.

À professora Lêda, que me foi muito importante durante a minha estadia na UCB, desde a banca de seleção, da indicação de um clube de leitura, durante algumas disciplinas até a banca de qualificação.

Ao IFB, com o diretor Gustavo Barros, que se mostrou para mim como um modelo de disposição e gestão, e com a equipe da CDAE, Luciana (sempre solícita e competente comigo) Juliana (psicóloga que me inspirou como ser psicólogo), Carol (alegre e espontânea) e Fernanda (pela assessoria técnica durante a pesquisa e por me ensinar a usar o Google Drive).

À CAPES e à UBEC, pelo auxílio financeiro.

Ao Clube de Leitura Veredas (Lêda, Carla, Darlene, Liliane, Cláudia, Eliene, Anabel, Edna, Marta...), primeiro clube de leitura que participei e que me serviu (além das horas de prazer literário e convivência) de molde e ideias para a fundação do meu próprio clube de leitura para a pesquisa.

Ao Clube do Livro Identidade, sem o qual não seria possível a realização da minha pesquisa. Muito obrigado, Bárbara, Fabiana, Raquel, Samara e Sueli, pelo voluntariado e desculpem-me pelos nomes fictícios. É orientação do Comitê de Ética em Pesquisa.

(7)

Rompi, cortei, amolguei, fiz e refiz Mais que no orbe cavaleiro andante;

Fui destro, valente, arrogante; Mil agravos vinguei, cem mil desfiz.

Façanhas dei a Fama que eternize; Comedido e regalado amante; Foi anão para mim todo gigante E ao duelo em qualquer ponto satisfiz.

[...]

(Dom Belianis de Grécia a Dom Quixote de la Mancha)

(8)

RESUMO

GALHARDO, Diego Paulino. O Clube do Livro Identidade: uma análise fenomenológica e gestáltica. 2015. 112 f. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia. Universidade Católica de Brasília, Brasília – DF, 2015.

A leitura é uma forma de nos achegarmos a nós próprios para possibilitar o surgimento daquilo que se oculta de nós mesmos, do outro que nos habita, isso porque, com a leitura, apreendemos o texto, discurso ou livro, de uma forma muito particular, conforme nossa

subjetividade, e deixamos de ser “leitores” para nos tornar novos “autores” do que foi lido.

Um importante fenômeno nesse processo diz respeito à desleitura, que pode ser considerada um ato em que o sujeito leitor se apropria do que está lendo, tornando sua a obra em questão –

a obra com que está entrando em contato – dando-lhe continuidade, retificando trechos, ratificando experiências similares, trabalhando uma autoidentificação e reconhecimento e etc., ou seja, dando-lhe, assim, um significado todo pessoal. Pensando nessa forma de ler, subjetiva, pessoal e vivencial, isto é, para além de uma forma intelectualizada e objetivada, esta dissertação trata-se de analisar, em termos fenomenológicos e gestálticos, as reuniões do Clube do Livro Identidade, o qual é um clube de leitura de estudantes do IFB que se reuniram mensalmente para discussão de obras literárias. A Fenomenologia surge como um movimento na filosofia europeia iniciado por Husserl, tendo como prioridade a busca da natureza da experiência consciente e imediata em detrimento das preocupações tradicionais da filosofia – como a metafísica e a epistemologia – e das preocupações modernas com a causalidade científica considerando, dessa forma, o estudo e a descrição dos eventos mentais em seus próprios termos em vez de relacioná-los com eventos no corpo ou no mundo exterior. A Gestalt-terapia vê o ser humano como um ser de relação (relação consigo mesmo, com o mundo e com os outros) e propicia um espaço que potencializa a criatividade da pessoa no enfrentamento das questões relevantes de sua atualidade existencial, centrando-se na potencialização da própria eventualidade do vivido, no processo de seu acontecer. O Clube do Livro Identidade mostra-se como uma prática, ao mesmo tempo, alternativa e terapêutica, isto é, que escapa aos moldes tradicionais de se fazer psicologia sem deixar, por isso mesmo, de ser uma prática produtora de saúde mental.

(9)

ABSTRACT

GALHARDO, Diego Paulino. The Identity Book Club: a phenomenological and gestaltical analysis. 2015. 112 leafs. Master’s degree thesis for Stricto Sensu Post-Graduation Program in Psychology. Universidade Católica de Brasília, Brasília – DF, 2015.

The reading is a way for us to draw close to ourselves in order to make it possible for the emergence of what is hidden from ourselves, of the other that we dwell, this is because, by the reading, we have learned from the text, speech or book, in a very particular way, as our subjectivity, and we are no longer "readers" to make us new "authors" of what was read. An important phenomenon in this case concerns about the misreading, which can be considered as an act in which the subject player appropriates of which is reading, making his the book in question, giving it continuity, grinding passages, ratifying similar experiences and etc., giving it a very personal meaning. Thinking on this way of reading, subjective, personal, and experiential, which is, in addition to a form intellectualized and targeted, this article intends examining, in a phenomenological and gestaltical terms, the meetings of the Identity Book Club, which is a IFB students club of reading who met monthly for discussion of literary works. Phenomenology emerges as a movement in European philosophy started by Husserl, having as a priority to search the nature of conscious and immediate experience to the detriment of traditional concerns of philosophy - as metaphysics and epistemology - and of modern concerns with the causality scientific whereas, in this way, the study and the description of the events occurring in their own terms rather than relate them with events in the body or in the outside world. Gestalt-therapy takes the human being as a being in relation (relation with himself, with the world and with the others) and provides a space that enhances the creativity of the person to deal with the relevant issues in his existential actuality, focusing on the potentiation of the possibility of lived, in the process of its happening. The Identity Book Club shows itself as a practice, while at the same time, alternative and therapeutic, that is, to go beyond the traditional way of doing psychology without being, therefore, a producing mental health practice.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1 - A RELAÇÃO ENTRE PSICOLOGIA E LITERATURA ... 14

1.1. A psicologia expressando-se na e pela literatura ... 17

CAPÍTULO 2 SOBRE A DESLEITURA ... 22

2.1. Desleitura e crescimento pessoal... 27

CAPÍTULO 3 – O PROCESSO TERAPÊUTICO PARA ALÉM DA QUESTÃO DA CURA ... 30

CAPÍTULO 4 REFERENCIAL PARA CONDUÇÃO E INTERVENÇÃO NO CLUBE DO LIVRO: A FENOMENOLOGIA E A GESTALT-TERAPIA ... 34

4.1. Fenomenologia ... 34

4.1.1. Psicologia fenomenológico-existencial ... 36

4.2. Gestalt-terapia ... 38

4.2.1. Awareness... 40

4.2.2. Contato ... 41

4.2.3. Autorregulação organísmica... 42

4.3. Compatibilidade entre Fenomenologia, Gestalt-terapia e desleitura ... 43

CAPÍTULO 5 MÉTODO ... 40

5.1. Método fenomenológico ... 48

5.2. Pesquisa-ação existencial ... 51

CAPÍTULO 6 O CLUBE DO LIVRO IDENTIDADE ... 54

6.1. Fase A, processo de experiência pessoal ... 56

6.1.1. Clube de Leitura Veredas ... 56

6.1.2. Clube do Livro Com Letras ... 58

(11)

6.3. Fase C, o convite aos participantes ... 60

6.4. Fase D, o contrato psicológico ... 61

6.5. Fase E, as sessões literárias ... 64

6.5.1. Orgulho e preconceito, Jane Austen ... 64

6.5.2. O perfume, Patrick Süskind ... 67

6.5.3. O grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald ... 70

6.6. Fase F, a investigação fenomenológica ... 71

6.6.1. A normatização da sociedade ... 73

6.6.2. Awareness sensorial ... 75

6.6.3. Autossuficiência ... 76

6.6.4. As versões de sentido... 78

CAPÍTULO 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 80

7.1. Do que se poderia fazer diferente ... 80

7.2. Aspectos emergentes ... 81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 84

APÊNDICE A ... 91

APÊNDICE B ... 95

APÊNDICE C ... 102

ANEXO A ... 104

ANEXO B ... 106

ANEXO C ... 107

ANEXO D ... 107

ANEXO E ... 109

(12)

INTRODUÇÃO

A melhor interpretação que posso dar para o livro é que escrever aquilo foi um projeto de terapia autorrealizada.

(Julia em “Verão: cenas da vida na província”)

A leitura é uma forma de nos achegarmos a nós próprios para possibilitar o surgimento daquilo que se oculta de nós mesmos, do outro que nos habita (Freire, 2000). Isso porque, com a leitura, apreendemos o texto, discurso ou livro, de uma forma muito particular, conforme nossa subjetividade, e deixamos de ser “leitores” para nos tornar novos “autores” do que foi lido.

Por meio da leitura, podemos ter ganhos primários, tais como uma melhora na capacidade de nos expressar, verbal e literariamente, da nossa capacidade cognitiva/intelectual e maior chance de nos apropriarmos e de nos adaptarmos ao mundo contemporâneo em que vivemos, atribuindo-lhe significados (Paixão, 2002; Torre, 2012).

Temos exemplos de alguns benefícios, através de experimentos grupais, que a prática da leitura pode trazer a seus participantes.

Paixão (2002), por meio de uma análise fenomenológica, dissertou sobre as mudanças que a aquisição da leitura permite à pessoa, no que se refere à posição que esta ocupa em relação às outras pessoas do seu meio social. Ela averiguou, ao analisar o comportamento em sala de aula de crianças em torno de 07 e 10 anos de idade, que “adquirir, pois, a habilidade

de leitura, capacita o sujeito a ampliar seus horizontes tanto em termos de participação cultural, como em termos de pensamento e atribuição de significados a sua existência e a existência dos outros” (p. 34).

(13)

comunicativas e da compreensão (...) reflexão sobre o modo como vêem o mundo, designadamente os valores, as tradições e as culturas” (p. 65).

No entanto, nosso foco aqui é o de um experimento grupal no qual se coloca em observação os aspectos subjetivos do leitor em relação com uma obra literária, considerando o ato de ler não somente como ato cognitivo, mas também como ato psicológico.

A ideia de que tal interação entre um sujeito leitor e uma obra literária seja possível nos vem a partir da concepção de desleitura, que pode ser considerada como o ato em que o sujeito leitor se apropria do que está lendo, tornando sua a obra em questão – a obra com que está entrando em contato – dando-lhe continuidade, retificando trechos, ratificando experiências similares e etc. Dando-lhe, assim, um significado todo pessoal (Bloom, 1991; Proust, 1991).

Para Bloom, “um leitor, quando entende um poema, está de fato entendendo a sua própria leitura deste poema” (1991, p. 117). No mesmo caminho, Proust afirma que “nossa sabedoria começa onde a do autor termina” (1991, p. 30). Já em Silva (2008, p. 14), uma

experiência de leitura aproximada desse tipo seria um ato de colocar a memória do que é lido lado a lado com a memória do que é/foi vivido.

Nesse sentido, desde o princípio hermenêutico heideggeriano (Freire, 2000), pode-se afirmar mesmo que, para que haja uma real apropriação do texto pelo leitor, é necessária a constituição de um campo intersubjetivo, onde o sujeito leitor se torna sujeito autor. O que envolve, segundo Bloom “o ato de ser influenciado pelo poema e de influenciar qualquer outro leitor para quem seja comunicada sua leitura” (1991, p. 107).

O contato com a literatura (de um modo específico) e a arte (de um modo geral) permite esse crescimento pessoal, pois a arte não tem apenas uma função recreativa e estética, como também é um ótimo instrumento para que o sujeito que está em contato com ela inicie um processo de reconhecimento e autoconhecimento.

(14)

vários modos por uma mesma pessoa em momentos diferentes de sua vida (como ler outras vezes um livro ou rever mais vezes um filme e ter novas ideias e interpretações acerca do assunto); e ter uma informação estética impossibilitada de ser traduzida sem perda de informação relevante.

Dessa forma, nesta dissertação trata-se de realizar um experimento grupal (numa perspectiva gestáltica e rogeriana) no qual se realiza uma descrição e análise fenomenológica e gestáltica de sessões literárias onde os participantes discorrem, depois de interagirem com uma obra literária, sobre suas experiências e sobre si mesmos, através de suas memórias, pensamentos e sentimentos, a outros participantes que também interagiram com a mesma obra em questão.

Para tanto, implantamos o Clube do Livro Identidade no Instituto Federal de Brasília (IFB), montando um grupo de leitura como uma atividade extracurricular com seus alunos. Reunimo-nos uma vez por mês durante o primeiro semestre de 2015 para discutir obras literárias (romances, em sua totalidade) acreditando, com Freire (2008, p. 04), que “a leitura de obras literárias fomenta a criatividade do seu leitor”.

No capítulo 1, procuramos explicitar uma subestimada relação que existe entre a Psicologia e a Literatura, onde, muitas vezes, parece haver certa resistência na academia e demais meios que se afirmam dizer “científicos” em usar do recurso poético para sua expressão e desenvolvimento teórico. Citamos alguns exemplos em que psicólogos e demais

teóricos “necessitaram” usar do recurso literário para se desvincularem da limitação que uma

linguagem técnica e científica impõe sobre um estudo da subjetividade humana.

No capítulo 2, discorremos sobre a desleitura, que é um dos importantes aspectos teóricos desta dissertação e que nos levou a investigar a possibilidade de crescimento pessoal por meio da Literatura, já que tal fenômeno envolve a possibilidade de autoconhecimento e autoexpressão.

(15)

No capítulo 4, situamos o leitor a respeito do referencial teórico em que nos embasamos para manuseio e intervenção no grupo: a Psicologia Fenomenológico-Existencial (que tem seu lugar no vivido, no imediato, no pré-reflexivo, pré-conceitual e pré-teórico, ou seja, centra-se na experiência mesma do vivido e não na reflexão sobre ele); e a Gestalt-terapia (que busca potencializar a criatividade da pessoa no enfrentamento das questões relevantes de sua atualidade existencial) a partir de alguns de seus principais conceitos, como a awareness, a agressão, o contato e a autorregulação organísmica. No final deste capítulo, fizemos uma correlação entre o tripé teórico fenomenologia/gestalt-terapia/desleitura.

No capítulo 5, enfatizamos os métodos de pesquisa que nos auxiliaram para a realização deste trabalho, métodos esses que não são incompatíveis entre si, sendo, na verdade, um inspirado pelo outro. O método fenomenológico (por meio da redução fenomenológica, das unidades de significado e da versão de sentido) e o método da pesquisa-ação existencial, onde o facilitador do grupo assume uma posição de observpesquisa-ação participante ativa.

No capítulo 6, descrevemos todo o processo de campo para a realização da pesquisa. Esse desdobramento deu-se: 1) com o processo de autoaperfeiçoamento pessoal (participação em outros clubes do livro); 2) com a resolução de pendências burocráticas (contato com a instituição e autorização do Comitê de Ética em Pesquisa); 3) com o convite dos participantes para formação do Clube do Livro; 4) com a reunião inicial do grupo para assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, deliberações coletivas e contrato psicológico; 5) com as sessões literárias de discussão das obras previamente lidas; e 6) com a investigação fenomenológica através das versões de sentido escritas, entrevista coletiva e entrevistas individuais.

(16)

CAPÍTULO 1 - A RELAÇÃO ENTRE PSICOLOGIA E LITERATURA

“Você acredita mesmo nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentidos às nossas

vidas?” “Acredito”, eu respondi. “Um livro

deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós. O que mais ele

seria?” “Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.”

(Julia em “Verão: cenas da vida na província”)

A Literatura pode servir para a Psicologia, bem como para outras ciências sociais (como a Filosofia, Antropologia e Sociologia) como um dizer desvinculado da linguagem técnica, teorizante e delimitante. Como um dizer que alcança outra linguagem, poética e metafórica, para explicar fenômenos, não perdendo, por isso mesmo, seu caráter de cientificidade.

Para Critelli (1984, p. 18, grifo nosso), o recurso poético não é deficiente no que tange a uma explicitação de um sentido, pois “O poema: mostra, alerta, anuncia, denuncia, brinca,

revela. E a estas formas de ‘tornar evidente’ o real, nenhum leitor cobra ‘garantia’ alguma.

Prescinde-se da certificação, do teste, da verificação de suas postulações. O poema não carece de arrazoados explicativos”.

Calvino (2009, p. 222) salienta que, por exemplo, Dante e Galileu são os maiores escritores da literatura italiana por usarem a obra literária como mapa do mundo e do saber: Dante, quando fazia obra enciclopédica e cosmológica construindo uma imagem do universo mediante a palavra literária – e, assim, cruzando dois universos culturais “diferentes”; e

Galileu, apesar de não ser escritor, mas sim cientista, ao fazer os homens notarem pela primeira vez a Lua, descrevendo-a como um objeto real e tangível.

Trazendo esse pensamento de Calvino ao plano de uma produção cultural brasileira, vemos que Oswald de Andrade, em seu Manifesto poesia pau-brasil, concorda que “a poesia

(17)

Com Barthes (2004, p. 04), vemos que toda matéria científica, em algum momento da história, foi tratada pela literatura universal, pois aí todo o saber (social, psicológico, histórico) encontra espaço no mundo da obra enquanto mundo total.

Dessa forma, pode-se mesmo dizer que, muitas vezes, a própria linguagem técnica e

“científica” não é suficiente para se alcançar novos sentidos inteligíveis de algum

acontecimento ou realidade (Pereira, 2005, pp. 38-9, grifo nosso):

É possível, preciso, pois, ir além da linguagem conceitual. Ir além não significa dispensar os conceitos, mas simplesmente delimitar seu alcance, a sua pretensão, compreender o momento que não é mais capaz de avançar, que tem que ceder lugar a uma linguagem indireta, alusiva, que não fixe o devir. Dessa forma, tem que se voltar ao poder criativo da metáfora, do poético, das imagens, e de toda a linguagem que suscite a intuição, tal como Montaigne se serve das metáforas pictóricas, complementado-as com imagens que apropria de diversas outras artes por sua potência de revelação, e tal como podemos observar nos depoimentos dos analisandos, sempre lançando mão de analogias com a literatura, com o cinema, com o teatro, para tentar traduzir uma experiência de difícil comunicação. Calvino (2009, p. 136), em consonância com Pereira (2005), mostra o caráter limitador da linguagem técnica ao afirmar que “O discurso científico tende para uma linguagem puramente formal, matemática, fundamentada numa lógica abstrata, indiferente ao próprio conteúdo”, ao contrário do discurso literário, que pode ajudar indiretamente o cientista como uma mola propulsora para a sua coragem e criatividade.

Na não suficiência da linguagem técnica, científica e objetivista para se falar da dimensão do humano, temos o surgimento da linguagem metafórica e poética não apenas como uma linguagem emergente, senão necessária:

A poesia apresenta-se no espaço do “evidenciar”, promovendo a evidência mesma. O que aconteceria se exigíssemos de um poema, por exemplo, que o que ele evidencia fosse comprovado, justificado teoricamente? Se exigíssemos uma adequação do evidenciado por ele com a “realidade empírica” à qual se refere? Se exigíssemos dele fidedignidade dos conceitos que usa com o mundo objético? Esvaziaríamos a poesia (Critelli, 1984, p. 19).

(18)

Seguindo Adorno, Bloom (2003, p. 52) também veio denunciar essa estratégia pseudoacadêmica, salientando que, no mundo literário, nada “soa tão ridículo” como as declarações apaixonadas de que a poesia deve ser liberada da academia. Tais declarações teriam sido absurdas em qualquer época da história, “mas especialmente dois mil e quinhentos

anos depois que Homero e academia se tornaram indistinguíveis”.

Novamente pelo Manifesto poesia pau-brasil, encontramos consonância desse pensamento através do questionamento sobre o real papel da poesia, a qual “anda nos cipós

maliciosos da sabedoria. Nas lianas das saudades universitárias” (Andrade, 1924, s.p).

No geral, a Arte muito pode servir à Ciência – e a recíproca é verdadeira – e, numa forma específica, a Literatura à Psicologia, uma vez que “falta ao psicólogo aproximar-se da

literatura para intuir o homem” (Freire, 2001, pp. 87-8), pois a literatura lhe possibilita um conhecimento maior sobre a subjetividade.

Psicologia e Literatura são duas ciências bastante convergentes entre si, pois ambas as áreas de conhecimento, apesar das diferenças metodológicas e epistemológicas, buscam abordar e compreender o ser humano a partir de sua constituição existencial e social (Baiocchi & Niebielski, 2009, p. 154).

A ideia de que a literatura, além de fomentar a criatividade do leitor (Freire, 2008, p. 04), também pode ensinar ao psicólogo – investigador do humano – sobre a subjetividade. Tal reflexão é convergente com o pensamento de Quintás (s.d, p. 148) que coloca a obra literária como um instrumento privilegiado de mostruário do comportamento humano e seus desdobramentos:

(...) inspirados na ideia de que uma obra literária não é somente um objeto mas também um âmbito de realidade; não narra somente feitos mas também expressa acontecimentos; não mostra somente o significado das ações, como também sugere seu sentido; não descreve objetos, faz-nos assistir melhor a processos de entrelaçamento de campos que dão lugar a outros campos ou os destroem. Ao conhecer estes processos, descobrimos as leis do desenvolvimento humano1.

É na mostra desses vários campos de existência, mútua complementação, destruição e ressurgimento, que se dão sentidos a uma quase infinita variabilidade de comportamentos

(19)

humanos que muito auxiliam o psicólogo no seu desenvolvimento e em sua práxis (Quintás, s.d, p. 156):

A boa literatura provoca no homem o sentido do essencial, o que constrói a vida humana. Daí, seu grande poder formativo. Cada valiosa obra literária expõe em imagens diversos temas éticos, conecta-os entre si, faz-los entrar em cena, submete-os às múltiplas tensões da vida, clarifica-os. O jogo é fonte de luz e a boa literatura representa o jogo da existência em suas múltiplas vertentes2.

Percebe-se, assim, como as ciências no geral, e mesmo a Psicologia, têm subestimado o potencial da Literatura no desenvolvimento de sua própria prática, de seu devir e de seu crescimento. Barthes coloca esse fenômeno em evidência quando acredita que, o que descobrem as ciências humanas atualmente (não importando se é algo de ordem, sociológica,

psicológica, psiquiátrica e etc.) a literatura sempre soube, com a única diferença de que “ela

não o disse, escreveu. (2004, p. 12, grifo do autor).

1.1. A psicologia expressando-se na e pela literatura

Para Santos (2007, pp. 241-2), a obra literária não se limita, apenas, a uma forma de produção de conhecimento, mas também se expressa como “a manifestação experiencial de algo que sistemas filosóficos ou psicológicos objetivam teorizar”, transformando, assim, o relato literário em um “testemunho do dizer filosófico-científico”.

Nesse quesito, podemos perceber que dentro das várias correntes psicológicas, entre seus autores, precursores e demais adeptos, o uso do artifício literário é forte e notório. Ou, de certa forma, percebemos como vários autores fizeram esse “gesto de recusa diante da época”,

apostando na “imortalidade” para além de uma linguagem técnica, tal como Julia dissera uma

vez a um jovem Coetzee, que escrevera sobre si mesmo na terceira parte da série de romances fictícios autobiográficos em Verão: cenas da vida na província (Coetzee, 2010, p. 68).

Em relação ao recurso literário, Barbosa foi além do que se convencionou chamar de literatura, pois “o que lemos como literatura é sempre mais – é História, Psicologia,

(20)

Sociologia” (1993, p. 23). Dessa forma, vejamos alguns exemplos de como a literatura foi usada para se transformar em História, em Psicologia, em Sociologia e etc.

B. F. Skinner (1904-1990), inspirador do termo “Behaviorismo Radical” e um dos principais nomes da ciência behaviorista atualmente, escreveu o romance Walden II pegando carona no primeiro Walden, do poeta naturalista Henry David Thoreau (1817-1862), cujo livro muito influenciou o movimento hippie da década de 70 no século XX. No romance de Skinner é proposto um modelo de “sociedade alternativa”, na qual as pessoas vivem com esquemas de motivação aconselhados pelo Behaviorismo, sem certas regras da sociedade contemporânea com relação a filhos, formas de organização comunitária de trabalho (todos trabalham para todos em vários setores de sobrevivência, acumulando banco de horas) e etc. resultando numa sociedade saudável, feliz e autoprodutiva.

F. Perls (1893-1970), criador da Gestalt-terapia, escreveu alguns poemas ao longo de seus livros enfatizando, ao mesmo tempo, seu conteúdo teórico e sua própria experiência pessoal, prática frequente na filosofia gestáltica, ressaltando conceitos como autenticidade e autossuficiência. Um de seus poemas mais famosos é este: “Mil flores de plástico/ Não fazem

um deserto florescer/ Mil rostos vazios/ Não podem uma sala vazia preencher” (Perls, 1979, p. 105). Outro escrito artístico famoso de Perls é um pequeno poema em que resume sua visão das relações interpessoais, a chamada “oração” da Gestalt-terapia (Perls, 1977b, p. 17):

Eu faço as minhas coisas e você faz as suas coisas. Eu sou eu, você é você. Não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas. E nem você o está para viver de acordo com as minhas. Eu sou eu, você é você. Se por acaso nos encontrarmos, é lindo. Se não, não há o que fazer.

J. P. Sartre (1905-1980), em complemento à sua filosofia existencialista, tem sua veia literária destacada pelos romances Náusea e A idade da razão, o que acabou lhe rendendo o Prêmio Nobel de Literatura em 1964, que o autor recusou antes mesmo de ser laureado por não ser compatível essa honraria com suas concepções filosóficas.

Quando um autor, qualquer que seja, prefere não produzir “artisticamente” por si

mesmo, ele usa da obra de outrem para explicar seu ponto de vista, seu corpus teórico, e desdobrar sua própria teoria.

(21)

a criança tem para com seus pais, enxergando o cônjuge do objeto de seu amor como potencial adversário (Freud, 1969). No livro de Sófocles (427 a.C/2004).

Édipo é um bebê que foi abandonado para morrer, encontrado por um pastor e adotado por um rei. Na idade adulta, Édipo ouve de Apolo que seria o responsável pela morte de seu pai e que desposaria sua mãe. A fim de evitar tal desastre, Édipo foge de sua terra adotiva (sem saber que é adotiva) e encontra Laio, com quem discute e acaba matando-o (seu pai biológico). Depara-se com uma esfinge, de quem resolve um enigma às portas de sua terra natal (sem saber que é sua terra natal) salvando assim sua vida e a cidade. Como recompensa, recebe a mão de Jocasta, sua mãe biológica, e o título de rei.

Muito comum também é a prática de, quando não estabelecer um novo paradigma teórico, fazer um entrelaçamento de uma obra literária com ideias, ideologias, filosofias e teorias específicas, criando novos sentidos e significados.

Pereira (2014) explicou como Baudrillard (1929-2007) desenvolveu sua teoria da sedução usando do romance Diário de um sedutor de S. Kierkegaard (1813-1855). A teoria da sedução baudrillardiana consiste em colocar como próprio do feminino sua capacidade de ser objeto, de ser aparência, que não se opõe ao masculino, desvinculando-se da razão sexual, enquanto produção (que é própria do masculino) – producere – mas que desenvolve sua potencialidade seduzindo o masculino – seducere – (Baudrillard, 2001).

Em Kierkegaard (1843/2002), apesar do exposto no parágrafo anterior, acontece certa inversão de papéis, quando Johannes seduz Cordélia sendo um objeto maior para ela do que ela o fora para ele inicialmente, incutindo-lhe o desejo de que Cordélia conheça Johannes em sua situação de aparência, de objeto a ser apreendido.

Em outra vertente teórica, Galhardo e Bezerra (2012) utilizaram-se do clássico Babbitt de Sinclair Lewis (1885-1951), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1930, para explicar e exemplificar a Teoria Dialógica de Martin Buber (1878-1965). Na obra literária em questão, Lewis (1922/2002) descreve os Estados Unidos do pós-guerra, na década de 20, em

sua sociedade mecanizada, com relações “coisificadas”, na qual e pela qual os autores citaram exemplos práticos da relação Eu-Tu e Eu-Isso de Buber (1923/2006).

(22)

Neto (1920-1999) contrapondo trechos da obra (ficção) com relatos de vida reais de outra

pessoa, destacando sua vida sofrida, migrante e “severina”, de identidade socialmente negada.

Santos (2007) realizou uma aproximação entre a teoria analítica existencial heideggeriana e a obra O rio do meio, de Lya Luft (1938-), para explanar sua crítica com as formas consumistas de vida que a sociedade nos impõe, bem como um movimento de subestimação que temos em relação ao poder do cotidiano.

L. S. Vigotski (1896-1934), um dos maiores nomes da Psicologia Sócio-Histórica e um dos autores mais estudados na Psicologia do Desenvolvimento, publicou algumas críticas literárias e escreveu um ensaio sobre Hamlet (1601), de William Shakespeare (1564-1616), o que acabou sendo a base de sua tese de doutorado (Vigotski, 2001).

A Psicologia se mistura com a Literatura também quando, por exemplo, um professor de Saúde Pública se vale do conto de Machado de Assis (1839-1908), O alienista, para discutir questões sobre a Reforma Psiquiátrica, sobre a corrente tentativa de institucionalização/desinstitucionalização que a sociedade vive hoje, sobre a questão do que é comportamento normal e comportamento patológico e etc3.

Em O alienista (Assis, 1882/2008) temos o competente psiquiatra Simão Bacamarte que inaugura na cidade o sanatório Casa Verde, onde ele interna os cidadãos que precisam urgentemente de uma cura para seu comportamento pseudoanormal, o que resulta, até o final da história, na internação de praticamente todos os habitantes da cidade.

Para outra situação em sala de aula, Yalom (2006) sugere estudar sobre o tratamento e atendimento de uma pessoa em situação de proximidade da morte – de moribundo – o livro A morte de Iván Ilitchde Tolstói (1828-1910). Na obra, o burocrata russo do título busca certa redenção numa tentativa de dar sentido a sua vida, ao perceber quão inútil e vazia esta fora, aprendendo com a sabedoria do camponês que lhe serve nas tarefas domésticas do quarto (Tolstói, 1886/2006).

(23)

Não exagerando, podemos afirmar que o mesmo Yalom tem se tornado um psicólogo e escritor best-seller escrevendo, para além de livros didáticos em psicologia, romances com personagens reais da filosofia, como Quando Nietzsche chorou (1992), A cura de Schopenhauer (2005) e O problema Espinoza (2012), para não falar de Mentiras no divã (1996), onde o autor trata do setting terapêutico e do enquadramento clínico.

Saindo das ciências humanas e indo para as ciências da natureza, um professor de física pode buscar em O retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde (1854-1900) um exemplo literário do princípio da entropia, a segunda lei da termodinâmica.

O princípio da entropia envolve o processo inevitável de degeneração das coisas, que pode ser retardado, mas não revertido, aumentando a entropia em outro sistema – quando, por exemplo, uma geladeira retarda o processo de apodrecimento da comida, ela retira energia de outro sistema – (Villate, 2006), que é o que acontece com Dorian Gray, que não envelhece, mas sim seu quadro, ou mesmo quando vive feliz e próspero, mas à custa da infelicidade dos outros a seu redor. É um exemplo na literatura de uma lei da física.

Apesar dos exemplos mostrados, é com certo embaraço que constatamos psicólogos behavioristas que nunca ouviram falar de Walden II; de psicanalistas que nunca leram Shakespeare ou Dostoiévski, dois dos principais escritores que Freud admirava e que o ajudaram em suas formulações teóricas acerca do inconsciente (Pontalis, 2014); de existencialistas que somente conhecem o Sartre filosófico e não o Sartre romancista, e etc.

Por isso, não deixamos de ressaltar a rica variabilidade de formas pelas quais a Psicologia e demais ciências (humanas, naturais e etc.) podem interagir com a Literatura.

(24)

CAPÍTULO 2 – SOBRE A DESLEITURA

Procedamos com cautela, prestemos atenção, toda a atenção às ressonâncias que as palavras despertam em nossa alma.

(José Maria em “Lições de abismo”)

Desleitura é um conceito desenvolvido por Bloom (1991; 2003) a fim de indicar um fenômeno psicológico/literário que diz respeito ao fato de que escritos poéticos contemporâneos e passados são de tal forma influenciados por seus predecessores que seus escritores o fizeram a partir de sua própria leitura, mesmo que não tendo consciência ou

concordando com isso. Tal ocorrência Bloom chama de “angústia da influência”.

Para se tornar um poeta forte, o poeta-leitor começa com um tropo ou defesa que é uma desleitura, ou talvez seria melhor dizer tropo como desleitura. Um poeta interpretando seu precursor, e qualquer intérprete forte posterior lendo qualquer dos dois poetas, deve falsificar por meio de sua leitura (...) mas deve ser uma falsificação, porque toda leitura forte insiste que o significado que encontra é exclusivo e correto (...) Para que uma leitura (desleitura) seja ela mesma produtora de outros textos, é obrigatório que afirme sua singularidade, sua totalidade, sua verdade (Bloom, 2003, p. 85, grifo nosso).

Em outro momento, Bloom (1991, pp. 106-7) afirma que “por conseguinte, todo leitor

é um efebo, todo poema, um precursor, e toda leitura, um ato de “influência”, ou seja, o ato de

ser influenciado pelo poema e de influenciar qualquer outro leitor para quem seja comunicada

sua leitura.”

Dessa forma, a desleitura se refere a esse movimento de interpretação ou falsificação que o escritor/leitor faz de seu predecessor, uma vez que “a leitura, como o título indica, é um ato tardio e inteiramente impossível que, quando forte, trata-se sempre de uma desleitura”

(Bloom, 2003, p. 23) em complemento com a ideia de que “se conhecemos um texto o que conhecemos é a interpretação que fazemos dele” (p. 83).

(25)

Mas uma obra, que sob uma determinada forma em seus efeitos sobre os leitores, pode também afetar suas ações, pensamentos e emoções, uma vez que se torna parte de sua vida psíquica: antes de tudo, as preferências dos poetas, como leitores, podem influir em sua criação literária, sem que eles estejam conscientes disso. Nós nos referimos aqui ao problema da influência (...) Agora, utilizamos um processo diferente: o centro de nosso interesse não é a obra sofrendo influências, mas exercendo-as. Se devemos analisar o efeito literário de uma obra, não podemos limitar-nos aos casos de influência direta, consciente ou inconsciente. Devemos incluir também todos os casos em que novas obras literárias possam frutificar de modo pleno esteticamente, contra a herança de uma obra mais antiga que elas põem em valor, exatamente por lhe serem contrárias (p. 308, grifo nosso).

Em um primeiro momento, Vodicka (1978) reconhece o papel influenciador na constituição da subjetividade da pessoa através da leitura para logo em seguida, num segundo momento, colocar em evidência os efeitos a nível coletivo desse ato, inicialmente, individual:

Sabe-se que as qualidades estéticas de uma obra poética podem afetar profundamente a sensibilidade do leitor, assim como o modo pelo qual a obra se aproxima da realidade, ou a implica, pode ter um efeito sobre ações desse mesmo leitor. Basta que citemos alguns casos bastante conhecidos, tais como: a influência de personagens típicas da Literatura sobre a estilização dos tipos sociais de uma época; o efeito da moralidade de uma obra sobre a moralidade da sociedade; o papel atribuído a uma obra, pela sociedade, na luta para realização de certos objetivos sociais, econômicos, nacionais, etc. (pp. 308-9, grifo nosso).

Embora o “apelido” da desleitura seja a angústia da influência – devido ao receio e à negação dos autores de se autoreconhecerem como influenciados em seus escritos ou, num caso mais extremo, de serem cópias de seus predecessores – há também aqueles que assumem abertamente essa influência anterior, como o poeta Glauco Mattoso que, segundo Silva (2008, p. 13), em seus poemas associa “de modo direto e indireto, autores, textos, períodos, línguas, culturas, tradições” fazendo de sua arte escrita um “momento de reelaborar o lido, momento de metamorfosear o repertório” (p. 63), já que não existe nenhum Adão em termos de escrita (p. 59).

Nesta pesquisa, tomamos o fenômeno da desleitura não como algo exclusivo de poetas e demais escritores, mas sim como algo possível e provável a qualquer sujeito leitor que se dispõe a entrar em contato com alguma obra literária – e aqui entendemos o contato na concepção da Gestalt-terapia, que melhor será explicado no capítulo 04 – ou que se dirige a essa obra literária numa intencionalidade (sentido de intentio) própria da Fenomenologia.

A desleitura também pode acontecer quando, em contato com uma obra literária, perguntamo-nos se tais significados que apreendemos estavam já implícitos no texto ou se tais significados são nossas deformações, dilatações ou incrustações (Calvino, 1998, p. 11).

“Naturalmente, isso ocorre quando um clássico ‘funciona’ como tal, isto é, estabelece uma

(26)

Outros autores desenvolvem esse fenômeno da desleitura quando reconhecem que

“afinal todo texto é inacabado e toda a crítica possível são seus suplementos” (Freire, 2001, p. 86), ou seja, “sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina”

(Proust, 1991, p. 30).

Em Calvino (2009, p. 346, grifo nosso), acreditando que “o que os livros comunicam por vezes permanece inconsciente para o próprio autor, que os livros dizem por vezes algo diferente daquilo que se propunham a dizer, que em todo livro há uma parte que é do autor e uma parte que é obra anônima e coletiva”.

Em Barthes (2004, p. 28, grifo do autor), “associa ao texto material (a cada uma de suas frases) outras ideias, outras imagens, outras significações”.

A título de exemplo, forçando de nossa própria interpretação, vemos como Santo Agostinho (398/2002, p. 307, grifo nosso) também acredita nesse processo, ao afirmar:

“Assim também a narração do ministro de tua palavra, que deveria alimentar a tantos intérpretes, faz brotar de seu estilo sóbrio e conciso torrentes de límpida verdade, de onde cada um tira para si a verdade que pode, para depois desenvolvê-la em longas sinuosidades de palavras”. Percebe-se que Santo Agostinho não se atém somente ao texto, mas faz crescer

o texto (e seu sentido e interpretação) em “longas sinuosidades de palavras”.

Ao se interagir com a obra literária, o sujeito leitor “continua” essa obra literária a

partir de sua própria singularidade, individualidade e subjetividade, enfim, suas experiências

pessoais, “deslendo” a obra previamente lida e tornando-a sua.

Freire (2000, p. 18) reconhece o que pode lhe vir à tona quando se lê um livro, especialmente, em seu caso particular, quando se propôs a ler o clássico de Marcel Proust (1871-1922), À la recherche du temps perdu, numa semana de folga que se autopresenteou na praia, numa errônea ideia de que uma semana seria tempo suficiente para degustar da obra, pois percebeu que: “em mim ressurgirão e se criarão a um só tempo novas sensações, personagens, lugares, desejos, que não mais dizem respeito ao conteúdo da Recherche, mas às minhas recordações e esquecimentos”.

(27)

desleitura, dando a esse fenômeno o nome de texto-leitura, o qual é um texto que escrevemos em nós mesmos quando estamos lendo.

José Maria, personagem de Corção (2004, p. 46) em Lições de abismo, ao receber um diagnóstico de câncer, começa a relembrar muitas cenas de sua vida e, em especial, repara no grande poder que as palavras podem causar, como se apertasse um gatilho que permitisse a

liberação de um certo fluxo de ideias e lembranças, “toda a atenção às ressonâncias que as palavras despertam em nossa alma”.

Esse relacionamento, fruto do processo de desleitura, não é resultado de uma interação, exclusivamente, com a totalidade da obra, mas também pode ser dar com passagens isoladas e trechos minúsculos ao longo da obra.

Proust (1991) aponta sua experiência de captar certas reminiscências internas ao ler essa pequena passagem de Capitão fracasso (1863) de Théophile Gautier (1811-1872):

“O riso não é absolutamente cruel por natureza; ele distingue o homem do animal, e é, como aparece na Odisséia de Homero, poeta grego, o apanágio dos deuses imortais e bem-aventurados que riem olimpicamente toda a sua bebedeira durante os lazeres da eternidade”. Esta frase deixava-me verdadeiramente embriagado. Acreditava captar uma antiguidade maravilhosa através desta idade média que só Gautier podia me revelar(p. 29, grifo nosso).

E aqui chegamos ao que consideramos como a característica mais importante no fenômeno da desleitura. O ato de se autoconhecer melhor, de se trabalhar o próprio self e de crescer como pessoa a partir disso.

Nesse sentido podemos falar de uma leitura que é produzida pela própria obra, mas que transcende aos seus elementos explícitos, que é da ordem do tácito, daquilo que está nas entrelinhas do discurso ou do texto e que nossa escuta (ou leitura) propicia o surgimento (...) Por outro lado, o leitor comunica-se consigo mesmo, com os aspectos de si que a obra despertou ou engendrou, com a inarredável sombra que lhe coloca ao encalço, no trajeto pelas páginas e nas idéias com que o defronta. E nesse mirar descontínuo em espelhos diferentes, ora côncavos ora convexos, penetra no fundo de si mesmo(Freire, 2000, pp. 20-3, grifo nosso).

A obra literária não se reduz apenas ao prazer ou para passar o tempo, mas também possui, pode-se dizer, seu caráter terapêutico na medida em que se transforma numa essência

com a qual interagimos e que nos faz ser mais “nós mesmos”.

(28)

seria, então, entrar em jogo com ela, refazendo suas experiências-chave e sendo iluminado por suas intuições originais”.

Também Quintás (s.d, p. 148) discorre sobre esse processo “interacional” do sujeito e

a obra lida:

(...) interpretar uma obra não se limita a enxergá-la de fora e se ocupar de saber o que acontece nela. Significa entrar em jogo com ela, refazendo pessoalmente suas experiências-chaves. Na base de obra de qualidade se encontram uma ou várias experiências que impulsionam a ação e lhe dão sentido. Ao vivê-las por sua própria conta, ilumina-se, no leitor, as intuições fundamentaisque impulsionaram a gênese da obra4.

O leitor agora pode estar se perguntando se tal prática já não fazíamos nas aulas do ensino médio. Pensemos em um caso hipotético bem factível ao ambiente escolar brasileiro. Em certa aula de literatura brasileira, o professor passou o dever para os alunos apresentar e discutir Dom casmurro (1899) de Machado de Assis.

A discussão em sala de aula gira em torno de aspectos exteriores a obra, do tipo “essa é uma obra que marca o Realismo no Brasil, cuja característica principal é o domínio da razão sobre a emoção, ao contrário do Romantismo, em que há uma admiração da natureza, uma idealização da mulher e etc.” Nada muito profundo ou pessoal nesse caso. Até porque, mais do que isso, não seria cobrado no vestibular e as escolas secundaristas, atualmente e lamentavelmente, têm abandonado seu papel de educadoras e de formadoras de cidadãos para serem uma instituição preparatória para o vestibular.

O que acontece é racionalização. Memorização. Decoreba. Não contribui para o crescimento pessoal. No máximo a discussão iria para o questionamento se Capitu traiu ou não Bentinho.

Concordamos com Barthes (2004) na denúncia dessa racionalização da literatura, falando de sua experiência de escrever um texto-leitura ao ler Sarrasine (1830) de Honoré de Balzac (1799-1859):

(29)

(...) não falei nem de Balzac nem do seu tempo, não fiz nem a psicologia das suas personagens, nem a temática do texto, nem a sociologia do enredo (...) faz séculos que nos interessamos demasiadamente pelo autor e nada pelo leitor (...) procura-se estabelecer o que o autor quis dizer, e de modo algum o que o leitor entende (pp. 27-8, grifo do autor).

Segundo Leite (2002), os leitores são pessoas diferentes, cada uma com sua personalidade e subjetividade. E por meio destas diferenças, resultam diferentes interpretações que uma obra literária pode fornecer.

O ato de ler não engloba somente uma atitude, mas também envolve uma experiência e uma apropriação de determinado conteúdo por meio do pensamento, da atenção, da percepção, da memória, da imaginação e da inteligência. Por isso, o sujeito leitor, por meio das diferentes interpretações e leituras advindas de sua singularidade, também cria, elabora, imagina e realiza um pensamento produtivo e criador, semelhante ao sujeito escritor em seu processo de criação (Leite, 2002).

Voltando ao nosso caso hipotético, usando do recurso da desleitura em grupo, a discussão prosseguiria: com depoimentos dos que acreditam que Capitu traiu em confronto com os que não acreditam; com o levantamento de passagens da obra que as fazem crer nisso, com o paralelo entre as experiências pessoais, investigando como chegaram a isso; com citações de casos e causos; com verbalizações do que sentiram com a crença de que ela traiu ou não, dando espaço para a opinião dos outros participantes sobre isso e presenciando outros pontos de vista, dizendo qual trecho mais gostou e por quê, expressando quando tal passagem lhe fez lembrar de certa coisa em sua vida e etc.

O que procuramos é – diferentemente do que se propõe numa sala de aula, que busca saber o que o autor quis dizer – construção, autoexpressão e crescimento, através do que o próprio leitor entende.

2.1. Desleitura e crescimento pessoal

(30)

crescimento pessoal e isso, por si só, pode ser considerado terapêutico, pois a psicologia hoje, mesmo nos consultórios particulares de atendimento individual, ultrapassa sua prática voltada

apenas pela questão da “cura” e de tratamento de comportamentos “patológicos”. Mais sobre a questão da psicologia terapéutica para além da questão da cura será melhor trabalhada no próximo capítulo.

Calvino (1998, p.12) empodera os clássicos da literatura, ao afirmar que “um clássico

é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si”, ou que “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos” (p. 16).

Bloom (2003, pp. 99-100) também segue essa linha, mas não credencia somente aos clássicos tal vantagem, mas a literatura no geral, pois acredita que a poesia tem o poder de nos fazer lembrar de algo que conscientemente não tínhamos mais noção, que julgávamos que não mais tinham relevância em nossa vida. Santos (2007), nesse mesmo critério, dá muito crédito

a obra literária quando afirma que esta é o “espelhamento de sentimentos, dúvidas, projetos,

modos de relação e todo tipo de vivências que qualquer pessoa pode experimentar em sua

existência” (p. 241). E Calvino (2009) complementa esse sentido quando diz que “cada um

tira de um livro o que precisa” (p. 232).

Ora, tal fenômeno que nos suscita lembranças e nos proporciona ressignificações dessas lembranças não se assemelha ao fenômeno que acontece dentro de um relacionamento

terapêutico no consultório? “É isto uma espécie de efeito pos-facto, como o que ocorre na situação analítica, quando o analisando ao resgatar uma situação passada e os sentimentos nela envolvidos, sob efeito de um retardamento, de uma postergação, ‘cria’o trauma” (Freire, 2001, p. 84).

Como consequência, temos o crescimento pessoal, tão almejado pelas ciências humanas e, especificamente, pela Psicologia:

O autoaperfeiçoamento é projeto suficientemente grandioso para ocupar a mente e o espírito: não existe a ética da leitura (...) Não devemos recear o fato de nosso crescimento como leitores parecer por demais autocentrado, pois, se nos tornarmos leitores autênticos, os resultados dos nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz a outras pessoas (Bloom, 2001, p. 20).

(31)
(32)

CAPÍTULO 3 – O PROCESSO TERAPÊUTICO PARA ALÉM DA QUESTÃO DA CURA

Só para a sua exclusiva diversão é que se retraíra, só para estar mais perto de si mesmo. Banhava-se em sua própria existência, não se desviando por nada mais, e achava isso maravilhoso (...) e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum libertino jamais viveu no mundo.

(A respeito de Grenouille, em “O perfume”)

Contemporaneamente, no senso comum ou mesmo entre profissionais da área

psicológica, o processo terapêutico tem sido muito usado para propósitos de “cura” e/ou de

restabelecimento do indivíduo à sociedade no seu lugar anteriormente ocupado.

Machado, Lima e Ferreira (2011), através de uma experiência grupal com nove mulheres entre 20 e 56 anos de idade, mostram como uma experiência grupal de escuta psicológica (evitando uma forma fixa, rígida e imutável) em Gestalt-terapia (referencial teórico que também foi usado neste trabalho), ajudou-as a buscar a superação de modelos de vida da cidade interiorana em que moram (Cariacica – ES) e a inventar novas formas de ser, de estar e de agir no mundo. Ao longo do processo, as participantes demonstraram vontade de mudança e tiveram a oportunidade de “exercitar outros modos de olhar o mundo e a si próprias, experimentar novos sentimentos, procurando aprender com os sintomas” (p. 111).

Timm, Pereira e Gontijo (2011), também em experiência com um grupo de mulheres, mas desta vez vítimas de violência doméstica, mostraram como os serviços de acolhimento psicossocial são bastante limitados – para não dizer que, muitas vezes, aderem a uma lógica normatizadora imposta pela sociedade, não respeitando a singularidade da pessoa – e propuseram uma clínica política para mulheres.

(33)

em seu discurso sobre a violência, na qual se busca, em suas narrativas pessoais, os elementos que não condizem com representações hegemônicas e que podem produzir contra-discursos emancipadores.

Tais iniciativas auxiliam a clínica psicológica a romper com esse modelo biomédico de atendimento, que visa somente à cura, e abarcar outros sentidos para o que pretende ser

“terapêutico”.

Vemos com Foucault (1977) que o modelo biomédico de atendimento, o qual visa uma cura para um comportamento ou sintoma, surge com o nascimento da própria clínica em si (muito parecida com a que ainda temos atualmente). Enquanto que as disciplinas diretamente relacionadas a ela, como a Psicologia e a Psiquiatria, propõem um atendimento terapêutico para indesejados males psíquicos, resultando num controle de normatizações de comportamentos e pessoas (tão bem demonstrados em O alienista, de Machado de Assis) que serviram a interesse de terceiros.

O nosso ponto, neste capítulo, não consiste em denunciar certos modos perversos de se fazer psicologia, mas demonstrar como a própria ciência psicológica supera o modelo biomédico de atendimento, voltado apenas à erradicação de sintomas.

Para Polster (2001), a Psicologia, na sua função de psicoterapia, é por demais boa para

ser limitada aos “doentes” – não em seu sentido pejorativo, como se convencionou chamar àqueles que freqüentam o consultório psicológico – pois não é usada como “cura” somente, mas também como crescimento pessoal, autodescoberta, formas de se viver mais feliz e etc.

Buscando na ficção literária um exemplo da importância da autodescoberta, vemos o apelo de José Maria para saber mais de si mesmo antes que abandone para sempre o mundo dos vivos (Corção, 2004, p. 168, grifo nosso):

Quem sou eu? Para que a vida tenha sentido, e para que a morte tenha alguma decência, eu preciso saber quem sou, por que vivo, por que morro e por que choro. De que me vale apreender o milhar de relações do mundo exterior, se não consigo apreender a substancial realidade que me diz respeito? Que me adianta medir a distância do sol e analisar a configuração do átomo de urânio, se desconheço a largura, a altura, a profundidade de meu próprio ser? De que me serve ganhar o universo se ando perdido de minha alma?

(34)

de sua previsibilidade, replicabilidade e controle, é uma tentativa de refinamento da experiência humana como autoconhecimento” (p. 38, grifo nosso).

Pereira (2005), ao analisar a cena analítica na sociedade contemporânea a partir da perspectiva dos próprios analisados, traz a perspectiva destes a respeito do seu próprio processo de análise (e aqui não tomamos o papel da análise em si, mas sim enquanto um processo terapêutico geral), mostrando que, apesar de, um dia, terem se dirigido ao analista na busca da cura, talvez imediata ou o mais rápido possível, de seus sintomas, em um segundo momento, tal vontade tornou-se secundária porque se abriu espaço ao prazer da fala e de uma

“outra escuta” (p. 48).

Uma de suas entrevistadas relatou que:

“(...) a cena analítica veio a se constituir para mim não exatamente como uma solução para os meus sofrimentos, mas como um problema, um objeto de reflexão sobre o significado daquele encontro, daquele tipo de fala, daquele tipo de relação. Em uma palavra, tornou-se um motivo de estranhamento, de espanto, de admiração” (p. 24).

Chama a atenção essa ruptura com a ideia de que estar submetido a um processo terapêutico tem que, necessariamente, servir para algo imediato – muitas vezes uma demanda que não é da própria pessoa e sim de alguns a sua volta – desviando o foco de outras questões, também importantes e necessitadas de um espaço para se trabalhar:

Apesar de tantas mudanças e do desenvolvimento de tantas técnicas terapêuticas que prometem efeitos curativos rápidos, uma camada da classe média intelectualizada procura a cena analítica. Em um primeiro momento, o móvel é o sofrimento pessoal e a demanda é a de livrar-se dele. Porém, após um certo ponto do processo, alguma coisa muda. Tendo havido cura ou não daqueles sintomas que as levaram à análise, as pessoas aí permanecem. É justamente essa permanência na cena – que parece realizar um movimento suplementar para além da cura, gerando um efeito de outro tipo na existência dessas pessoas – o objeto da minha abordagem. Esse efeito parece ser o de trazer à tona a miséria simbólica a que estão submetidas no mundo atual, o que dá origem à demanda de constituição de uma cena na qual possam entregar-se a uma forma de existência contrária a de seu automatismo cotidiano e cultivar uma posição filosófica de admiração e desestabilização de si mesmas e do que as circunda, coisas que se perdem constantemente no seu cotidiano apressado e pragmático. Assim, uma outra queixa vai-se agregando à queixa inicial de uma vida pessoal sofrida: a de que foi o próprio mundo que se tornou sem encanto, sem poesia, em uma palavra, dessimbolizado (pp. 16-7).

E, mais a frente:

(35)

o tempo, que é deixado sob os cuidados de um outro, cuja presença se caracteriza por ser, simultânea e paradoxalmente, absoluta e rarefeita (pp. 30-1).

Percebemos, desse modo, como a situação de análise, nesse caso específico, e o processo terapêutico, como um todo, escapa do estigma negativo, por parte das próprias pessoas que usufruem desse espaço, de que a psicoterapia serviria apenas para quem está

“doente” (e aqui não entramos na diferenciação do que é normal e do que é patológico). Ao contrário, vêem-na como um espaço para outras possibilidades de existência, conforme

demanda de cada um. Não sendo um “processo ‘puramente racional’, esvaziado das paixões,

das emoções” (Pereira, 2005, p. 211), mas também um lugar em que o verbal aceita a dimensão afetiva como parte de nossas representações, produzidas a partir de nosso corpo.

Nesta dissertação, buscamos realizar uma atividade baseada no ideal humanista de Rogers (2009), na qual se procura criar condições que promovam a “tendência para o crescimento”, isto é, a ânsia de se ampliar, de se expandir, de se autonomizar, de amadurecer,

de se desenvolver, de se expressar e de se liberar.

(36)

CAPÍTULO 4 – REFERENCIAL PARA CONDUÇÃO E INTERVENÇÃO NO CLUBE DO LIVRO: A FENOMENOLOGIA E A GESTALT-TERAPIA

Cada pessoa é diferente, cada uma tem expectativas diferentes, e não há duas que tenham a mesma experiência, mesmo quando a compartilham.

(Dexter em “Dexter em cena”)

Nesta dissertação, temos como referencial teórico para manejo do Clube do Livro e prováveis intervenções psicológicas ao longo das sessões de discussão (bem como o método de investigação e análise) a psicologia de base fenomenológico-existencial e a Gestalt-terapia, as quais agora explicitamos.

No último item deste capítulo, faremos uma aproximação e uma correlação mais direta no tripé teórico de todo o trabalho, a saber, a fenomenologia/gestalt-terapia/desleitura.

4.1. Fenomenologia

Apesar dos esforços de Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Hegel (1770-1831), a Fenomenologia é considerada em sua forma estruturada a partir de Edmund Husserl (1859-1938) ao censurar as ciências sociais, especialmente a Psicologia, por ter incorporado os métodos próprios das ciências humanas e aplicá-los sem discernir que seu objeto é diferente (Dartigues, 1973).

(37)

Para o positivismo, o conhecimento que veio da metafísica, da teologia e, por conseguinte, da filosofia, deveria ser descartado, ou pelo menos, não ser considerado ciência, uma vez que só é ciência – conhecimento – aquela que se conseguiu apreender por meio de comprovação pela experimentação e pelos sentidos (Schultz & Schultz, 2001).

Ora, “assimilar os fatos humanos a objetos físicos equivale a deixar de lado a

dimensão subjetiva e intencional que, precisamente, os torna humanos” (Dartigues, 1973, p. 53).

Com essa crítica à Psicologia, Husserl realiza o movimento de “ultrapassamento” da simples psicologia descritiva, trabalhada por seu antigo mestre, Franz Brentano (1838-1917), chamando esse movimento de ultrapassamento da simples psicologia descritiva de Fenomenologia, a qual tem por objetivo “ir ao encontro das coisas em si mesmas” (Husserl, 1934/2008, p. 17).

A Fenomenologia surge, então, como um movimento na filosofia europeia iniciado por Husserl, tendo como prioridade a busca da natureza da experiência consciente e imediata em detrimento das preocupações tradicionais da filosofia – como a metafísica e a epistemologia – e das preocupações modernas com a causalidade científica considerando, dessa forma, o estudo e a descrição dos eventos mentais em seus próprios termos em vez de relacioná-los com eventos no corpo ou no mundo exterior (APA, 2010, p. 420).

No entanto, a Fenomenologia, na forma estruturada por Husserl, não aparece somente enquanto um movimento filosófico, mas também como uma proposta de método de investigação de fenômenos (aquilo que aparece ou se manifesta), abandonando a práxis das ciências positivistas e, ainda assim, não perdendo seu rigor científico (status de ciência) tão almejado pela Psicologia e demais ciências humanas que desejam ser consideradas

“científicas”.

Para Merleau-Ponty (1945/1999, pp. 01-2), que contribuiu, criticou e enriqueceu o sistema teórico da Fenomenologia, esta “é a tentativa de uma descrição direta de nossa

experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às

explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer”.

(38)

diretas de fenômenos que são experienciados pela consciência da pessoa, sem teorias sobre a sua explicação causal e o mais livre possível de preconceitos e pressupostos.

Na busca das “coisas em si mesmas”, tem-se a busca de sua essência, isto é, do que permanece invariável em várias situações, levando-se em conta que, para a fenomenologia, acredita-se que a essência estaria na própria aparência das coisas, entendendo que as coisas (fenômenos) pareçam diferentes sob diferentes olhares (Freitas et al, 2012, p. 152).

Além de Merleau-Ponty, outros autores enriqueceram a Fenomenologia, associando-a a outras vertentes, como o Existencialismo de Jean Paul Sartre (1905-1980) e a Psicologia Fenomenológico-Existencial, inspirada pela fenomenologia existencial de Martin Heidegger (1889-1976).

A teoria existencialista, costumeiramente representada pelo existencialismo sartreano, contém algumas correntes não totalmente convergentes entre si, mas no geral promulga que a existência precede a essência, uma vez que a existência do ser humano só se efetiva em sua relação com o outro, com o mundo e consigo mesmo e é nessas relações que sua essência vai se constituindo e se transformando (Sartre, 1946/1987).

Uma de suas principais características é a questão da liberdade, sintetizada com a famosa frase de Sartre (1943/1999, p. 543) a respeito de nós, humanos, estarmos condenados a ser livres, causando-nos certa angústia, isto é, a liberdade não nos isenta do erro, pois não é tão simples viver sob a égide de “faça a sua escolha e assuma as consequências”.

4.1.1. Psicologia fenomenológico-existencial

A psicologia de base fenomenológico-existencial direciona o método fenomenológico para a experiência existencial ou vivida, procurando alcançar o significado dessa experiência vivida por uma cuidadosa análise dessa própria experiência vivida (APA, 2010, p. 420).

(39)

nos coloca em um plano fenomenológico-existencial” (Freire, 2008, p. 05). Prioriza a relação imediata do homem consigo mesmo e com o mundo.

Relação essa com o mundo que se dá, em Heidegger, pela ontologia do cotidiano. Para Heidegger (1927/2005), a tarefa da ontologia é “Apreender o ser dos entes e explicar o

próprio ser” (p. 56).

Mas para isso, a ontologia e o próprio método fenomenológico deveriam se desvincular do passado a que estão presos, isto é, de uma tradição que lhes antecede obrigando-os a usar formas e modelos de pensar historicamente construídos, já que “Em cada

um de seus modos de ser e, por conseguinte, também em sua compreensão de ser, a pre-sença sempre já nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdada da tradição”

(p. 48, grifo nosso).

Dessa forma, Heidegger (1927/2005) sugere que, para melhor uso da ontologia por parte da fenomenologia, deve-se “corrigir” as concepções correntes sobre a ontologia – “A

questão do ser só receberá uma concretização verdadeira quando se fizer a destruição da

tradição ontológica” (p. 56) – para, em seguida, os filósofos se valerem de uma ontologia desvinculada de aspectos históricos que lhe formatam em seu modo de apreensão do ser.

Assim, temos a ontologia do cotidiano, a qual é “o esforço compreensivo para tirar do encobrimento aquilo que já está aí, cotidianizado e encoberto pela familiaridade que com ele experimento, existindo. Ela é um compromisso com o desvelamento, com a verdade e, portanto, com o ‘deixar em liberdade’” (Critelli, 1984, p. 23).

Essa concepção da fenomenologia existencial muito se adequa a esse trabalho, no que consiste a sua consideração sobre a arte. Heidegger reconhece o grande papel da Estética moderna no pensamento ocidental, mas se separa de sua concepção, analisando a arte em seis modos e formas de acordo com a época em que se destacou (Nunes, 1986, pp. 251-2):

 No primeiro momento, na fase da arte helênica, quando há a ausência da reflexão estética;

Referências

Documentos relacionados

A Psicologia, por sua vez, seguiu sua trajetória também modificando sua visão de homem e fugindo do paradigma da ciência clássica. Ampliou sua atuação para além da

Otto: Este filósofo e teólogo toma como base para sua definição de religião a experiência religiosa e introduz na discussão um conceito que muito vai influenciar a compreensão

Os participantes do Programa LeME são estudantes de um dos oito cursos profissionalizantes (Manicure, Culinária, Panificação, Informática, Recepcionista, Auxiliar

Como no homem o objeto a tem forma de fetiche, para alcançar o passe clínico, o homem tem que resolver a questão de sua fantasia, a forma fetiche que impõe

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

O novo sistema (figura 5.7.) integra a fonte Spellman, um novo display digital com programação dos valores de tensão e corrente desejados, o sinal visual do

- A fotobiomodulação laser na superfície dentária e na entrada do alvéolo antes do reimplante (G3) favoreceu o processo de reparo tecidual após reimplante dentário em

O período analisado dos artigos publicados foi de 2000 a 2013 totalizando 577 periódicos da área, considerando nacionais e internacionais, mas em apenas treze (13)