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O mesmo é questionar: como se tornar um leitor hábil?

A leitura, como já aqui deixámos, ―resulta da interacção de dois componentes essenciais: a descodificação e a compreensão‖ (Carvalho, 2011, p. 34).

E porque ―ler é compreender‖ (Carvalho, 2011), o mesmo é dizer que a compreensão é o objectivo último da leitura (Nation, 2007), teremos de entrar agora pela forma como poderemos aceder a esse processo e atingir a função desse processo – a compreensão, assunto que será retomado ainda nesta I parte, no capítulo III.

Muito embora nas faixas etárias onde se situam os sujeitos do presente estudo já se esteja para além da aprendizagem do código alfabético, quando falamos em competências essenciais para a aprendizagem da leitura, teremos, naturalmente, de lembrar que ―O conhecimento do princípio alfabético é fundamental‖ para a aprendizagem da leitura numa língua de escrita alfabética como é o português (Carvalho, 2011).

Será fundamental dizer aqui que ―todas as formas de escrita inventadas pela humanidade se baseiam em dois princípios, o princípio semasiográfico e o princípio fonográfico‖ (Castro & Gomes, 2000, p. 110), para além de que ―Qualquer que seja o sistema de escrita, para ler fluentemente, são indispensáveis, pelo menos, duas aquisições: (a) o reconhecimento dos sinais gráficos (…) e (b) o conhecimento prévio de como os sinais gráficos se organizam no papel‖ (p. 114).

Teremos, contudo, de recuar, sob pena de coarctarmos a compreensão do que terá falhado para que os nossos alunos tenham passado por tantas dificuldades de leitura – e permaneçam com elas, agora de uma outra forma.

Carvalho (2011) escreve que, quando inicia a aprendizagem da leitura, a criança possui já um conjunto de componentes de que irá necessitar, a saber: (i) capacidades de análise auditiva, (ii) um sistema de reconhecimento de palavras, (iii) um léxico fonológico (conjunto memorizado de representações da forma sonora da palavra) e (iv) capacidades implícitas de análise sintáctica. Para além disso, afirma a autora, outras estruturas estão a ser desenvolvidas, como o sistema semântico, na medida em que a criança vai desenvolvendo o conhecimento dos significados das palavras faladas e das

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relações de sentido que estabelecem entre si. A investigadora recorda que ―Estes sistemas de tratamento da linguagem não são específicos da leitura, mas intervêm no processo de leitura‖ (p. 37).

Autores há que, influenciados por Jean Piaget, defendem um conjunto de estádios percorridos pela criança que aprende a ler (Carvalho, 2011). Muito embora, sobretudo a partir dos anos 90, se tenham questionado estes estádios ou fases pré- determinadas, uma vez que os mesmos são ―incapazes de explicar de forma satisfatória uma aprendizagem cuja dinâmica deve ter em consideração o facto de que os diferentes procedimentos (…) possam existir (Carvalho, 2011, p. 44), iremos apresentar o modelo de Uta Frith.

Lopes et al. (2004) dão conta que o modelo apresentado por Uta Frith, em 1985, parte do princípio de que a leitura se desenvolve em três etapas: logográfica, alfabética e ortográfica, ―conforme a estratégia dominante que a criança utiliza para ler‖ (p. 111).

Na primeira etapa, as crianças fazem um reconhecimento global de algumas palavras através da forma do vocábulo ou de alguma marca gráfica mais saliente. Curiosamente, a escrita poderá ser efectuada por duas fases: inicialmente, simbólica e, numa fase posterior, utiliza estratégias logográficas.

Na fase seguinte, a alfabética, a criança realiza correspondências grafema- -fonema, altura em que necessita de aprender as letras, a dividir palavras, a aplicar as correspondências grafema-fonema e a aglutinar sons de forma a construir palavras. A utilização desta estratégia aplica-se, numa primeira fase, apenas à escrita, altura em que, na leitura, as estratégias continuam a ser logográficas. Numa segunda fase, as estratégias alfabéticas passam a ser utilizadas na escrita e na leitura.

Na etapa ortográfica, a criança reconhece as palavras de forma directa, ―pois a prática da leitura permite às crianças reconhecer imediatamente os padrões ortográficos da sua língua‖ (p. 112). Esta estratégia verifica-se, inicialmente, na leitura, e, posteriormente, na escrita.

Lopes et al. (2004) referem que muitos estudos posteriores têm vindo dar razão a Uta Frith (Ehri, 1996; Mason, 1980), informando ainda que há autores (Spear-Swerling & Sternberg, 1998) que admitem a existência de uma fase entre a logográfica e a alfabética caracterizada por utilizar ―pistas fonéticas‖ (p. 113). Os autores afirmam que

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a transição entre os estádios realiza-se por acomodação, ou seja, ―pela reestruturação de conhecimentos e habilidades‖ (p. 116).

Os autores continuam a sua exposição mencionando que a primeira etapa é o estádio 0. E o que será preciso para que se transite do 0 para o 1? Ou seja, qual será a acomodação necessária? A aprendizagem das correspondências grafema-fonema. A transição do estádio 1 para o 2 precisa que se realize a adaptação a textos com forma e conteúdo ―próximos da linguagem natural do leitor‖ (p. 116). Daquele para o terceiro, a acomodação requerida é o retorno a uma atitude mais analítica (próxima do estádio 1 e mais distante do 2). Depois, acrescenta mais dois estádios: um quarto, que ― será o mínimo necessário a uma sociedade de conhecimento, em que a habilidade de ler materiais complexos e contendo múltiplos pontos de vista é considerada essencial a todo o cidadão‖ (p. 116), e um quinto, cujo acesso está dependente das capacidades cognitivas, conhecimento adquirido, motivação e de uma envolvência ambiental estimulante.

Os autores chamam a atenção para o facto de que a permanência excessiva num determinado estádio poderá comprometer, mesmo definitivamente, a passagem para o estádio seguinte. Alerta ainda para o facto de que ―o conhecimento do estádio de leitura em que se encontra o leitor poderá fornecer importantes informações para a intervenção‖ (p. 116).

Uma última questão se impõe: haverá sistemas ortográficos mais propensos a criar leitores mais hábeis? Apesar de haver métodos de ensino diferentes que poderão concorrer para a existência, de facto, de leitores mais competentes, Goswami (2002, citado por Carvalho, 2011) aventou duas hipóteses sobre o que poderá também contribuir para leituras mais hábeis:

―i) nos sistemas ortográficos mais transparentes a fase inicial da aprendizagem da leitura é acompanhada por um desenvolvimento muito rápido da consciência fonológica; ii) as crianças que aprendem a ler em ortografias mais consistentes [a um grafema corresponde apenas um fonema] desenvolvem mais rapidamente competências de descodificação grafema-fonema‖ (p. 46).

Um estudo realizado em 14 línguas europeias, de que Carvalho (2011) dá conta, aponta para o facto de que ―a complexidade silábica exerce um efeito selectivo no desenvolvimento do processo de descodificação, e que a opacidade/transparência do

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sistema de escrita explica os diferentes desempenhos das crianças tanto na leitura de palavras como de pseudopalavras‖ (p. 49). Os investigadores puderam constatar que as crianças inglesas necessitam de mais dois anos e meio, comparativamente com as restantes crianças europeias, para atingirem o mesmo nível de literacia. Há autores que puderam verificar que as dificuldades dos alunos disléxicos variam consoante o grau de transparência e opacidade da língua (Capovilla, Machalous e Capovilla, 2003); apesar desse facto, Carvalho (2008) escreve que

i) tanto em ortografias regulares como não regulares as crianças disléxicas lêem muito mais devagar do que as não disléxicas e do que as crianças de igual nível de leitura (crianças mais novas mas com desempenho semelhante na leitura); ii) o défice na velocidade é semelhante nas duas ortografias; iii) o défice de leitura de não-palavras está presente nos disléxicos de ambos países e a sua magnitude é semelhante; iv) há um efeito marcante da extensão das palavras em disléxicos de ambos países, isto é, o tempo de processamento aumenta dramaticamente por cada letra a mais; v) a existência de palavras que partilham várias letras com uma outra palavra (vários vizinhos ortográficos) facilita a leitura tanto nas crianças disléxicas como não disléxicas, mas é um factor de menor peso nas crianças alemãs do que nas inglesas (o que é consistente com outras investigações que mostram que as crianças alemãs se fixam em unidades mais pequenas da palavra do que as inglesas) (p. 56).

Vieira (2010) refere que ―as estimativas da prevalência da dislexia diferem de país para país e esta questão prende-se com a própria língua, o seu cunho pessoal, o seu carácter, o seu grau de transparência ou de opacidade‖ (p. 30). O que parece ser incontestável é que a dislexia existe em todas as línguas e culturas (Matos, n.d.).

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Capítulo II