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CAPÍTULO II – DISLEXIA

2.3. Dislexia: abordagem conceptual

Atentemos, agora, na dificuldade de aprendizagem propriamente dita, a Dislexia, à volta da qual foi construído este documento.

Muito embora Davis e Braun (2010) queiram ver o outro lado da dislexia, também conhecido, mas mais esquecido, o que nos motivou esta focagem na dislexia foi um dos problemas vividos pelos alunos disléxicos, o da leitura e, mais concretamente, da compreensão da leitura.

Abramos aqui um parêntese para dizer que, quando queremos introduzir uma possível definição de dislexia – e tal está imbuído de forte contestação (Snowling, 2008) -, hesitamos entre «problema», «patologia», «situação»… «doença» (muito embora todos os autores que lemos afirmem que não o é, porque não tem cura, lembramos, na sequência do que nos disse uma colega e amiga um dia, que também há doenças crónicas). Miles (2008) propõe o termo «síndrome», porque ―‗Syndrome‘ is a term implying a cluster of manifestations or symptoms, not necessarily identical in different individuals but showing an identifiable pattern‖ (pp. 3-4). Adoptaremos também esta proposta.

O que caracteriza, então, este problema inesperado de leitura (Snowling, 2008)?

Antes de mais, dizemos que grande parte dos autores afirma coexistir com um grau de inteligência dentro, no mínimo, dos parâmetros «normais» (critério de discrepância), mas teremos de salvaguardar aqui posições alternativas, a que já fizemos alusão no início deste ponto, fora da corrente maior, que afirmam que ―there is no reason why the IQ of dyslexics should not be low‖ (Beaton, 2004, p. 11). Esta questão, aliás, da independência entre Dislexia e QI começa a ganhar forma, como já deixámos no ponto 2.1. do presente capítulo.

Shaywitz (2008) lembra que a leitura é uma aptidão extraordinária do ser humano, mas é uma aptidão não natural. ―Trata-se de um processo que tem de ser adquirido e ensinado‖ (p. 19). A autora diz que é comum pensar-se que, caso na infância haja uma

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motivação para a leitura, a aprendizagem daquela competência será facilmente alcançada, mas tal…

simplesmente não corresponde à verdade. (…) A maior parte das crianças deseja aprender a ler e, de facto, fá-lo rapidamente. Para as crianças disléxicas, no entanto, a experiência é muito diferente. A leitura, que envolve tão pouco esforço para todos os outros, é, para elas, algo que parece fora do seu alcance. Estas crianças que compreendem a palavra falada e que adoram ouvir histórias não conseguem decifrar essas mesmas palavras quando elas se apresentam sob a forma escrita. Sentem-se frustradas e desapontadas. (…) Tão devastadora como qualquer vírus que afecta tecidos e órgãos, a dislexia consegue infiltrar-se em cada um dos aspectos da vida do indivíduo. É frequentemente descrita como uma deficiência escondida porque se acreditava não apresentar sinais visíveis. No entanto, a dislexia só está escondida para aqueles que não têm de viver com ela e de sofrer os seus efeitos. (Shaywitz, 2008, pp. 13-14).

Falamos, portanto, de dificuldades específicas de leitura, ou seja, de uma dificuldade para desenvolver competências de leitura adequadas à idade, apesar de uma inteligência normal e de adequadas oportunidades de instrução leitora (Pugh et al., 2004). Falamos de uma em cada cinco crianças (Shaywtitz, 2008), ou de uma taxa de 5 a 17.5 % (Teles, 2004, Dezembro) – talvez esta discrepância de valores se deva àquilo a que Everatt e Elbeheri (2008, citados por Reid, 2009) chamam de variabilidade na ortografia, ou seja, dizemos nós, à maior ou menor transparência da língua.

No seguimento do que ficou, acresce dizer que, tal como escreve Snowling (2008, citando Vellutino, 1979), ―a dislexia pode ser considerada parte do contínuo das desordens da linguagem e é um déficit no processamento verbal‖ (p. 11). Stackhouse (2008), por outro lado, considera que os problemas de linguagem podem surgir nestas crianças como um factor associado, como, diremos nós, uma comorbilidade.

Davis e Braun (2010) acreditam que falar em dificuldades no caso da dislexia é estreitar a amplitude deste nome. Aqueles autores pretendem, de facto, mudar a ―perspectiva em relação à dislexia – de transtorno para dom‖ (p. 27). Afirmam que ―A mesma função mental que produz um génio pode também produzir esses problemas. Muito embora saibamos que existe um rol considerável de disléxicos famosos, quando usamos aquele nome, prevalece o lado da dificuldade. Por este facto, gostaríamos de deixar aqui o outro lado da dislexia, as qualidades que permitem a existência de tantas pessoas famosas apesar da dislexia, ou, como afirmam os autores, por causa da dislexia,

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lembrando, contudo, que ―duas pessoas disléxicas nunca exibem exactamente os mesmos sintomas‖ (p. 126):

O DOM DA DISLEXIA

Pensamento por imagens ou pensamento não verbal

―ocorre à velocidade de trinta e duas imagens por segundo. (…) O pensamento em imagens é mais completo, mais profundo e mais abrangente‖ (pp. 109-110). Utiliza ―imagens de conceitos e ideias, com pouco ou nenhum monólogo interno‖ (p. 133).

Pensamento intuitivo A pessoa torna-se consciente dos resultados do processo de pensamento, mas não tem consciência do processo.

Pensamento multidimensional O pensamento do disléxico utiliza todos os sentidos.

Pensamento tridimensional Capacidade de vivenciar a imaginação como realidade. Pensamento curioso e criativo

―Se «a necessidade é a mãe da criatividade», então o pensamento multidimensional deve ser o seu pai‖ (p. 114).

“o dom do domínio” (p. 122)

quando os disléxicos realmente aprendem alguma coisa, passam a dominá-la, altura em que será já ―provavelmente impossível esquecê- la‖ (p. 123).

―a capacidade de aceder intencionalmente à função, do cérebro, de distorção da percepção” (p. 133).

Quadro 1 - Características do pensamento da pessoa com dislexia

Shaywitz (2008) concorda, grosso modo, com esta visão, afirmando estarem os disléxicos despropositadamente representados nos escalões mais elevados da criatividade e no seio das pessoas, que, nas mais diversas áreas, ―romperam uma fronteira e fizeram a verdadeira diferença na sociedade‖ (p. 70). A autora justifica este facto com a necessidade de a pessoa disléxica ter de chegar bem ao fundo do conceito e de o compreender a um nível fundamental. Esta necessidade leva a uma compreensão mais profunda e a uma perspectiva diferente da de alguns indivíduos para quem tudo é mais fácil, porque podem memorizar e repetir – ―sem nunca terem de compreender algo a fundo e exaustivamente‖. É talvez por causa de argumentos similares que a Adult Dyslexia Organisation (citada por Miles, Westcomb & Ditchfield, 2008) propõe o termo ―differently abled‖ (Miles, Westcomb & Ditchfield, 2008, p. 3) para caracterizar as pessoas disléxicas.

Se, contudo, se começarem a incluir na designação dislexia pessoas com um QI abaixo do esperado, aquela relação poderá ter de ser reequacionada…

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A dislexia é, independentemente do que dissemos atrás, ―um problema complexo que tem as suas origens em sistemas cerebrais básicos que permitem ao indivíduo compreender e usar a linguagem‖ (Shaywitz, 2008, p.14).

A relevância desta temática parece-nos clara:

A leitura é, com frequência, a chave para atingir os sonhos que os pais têm para os respectivos filhos. (…) Na sala de aula, a leitura é a actividade dominante, essencial para o sucesso académico. As dificuldades de leitura têm consequências em todo o desenvolvimento, incluindo na idade adulta (Shaywitz, 2008, p. )

Reid (2009, citando Everatt and Reid, 2009) enumera o conjunto de aspectos comummente associados a esta síndrome:

ASPECTOS COMUMMENTE ASSOCIADOS À DISLEXIA

 Factores relacionadas com as estruturas e funções do cérebro (Galaburda and Rosen, 2001; Hynd et al., 1995);

 Os factores genéticos que afectam a migração de desenvolvimento de magnocélulas no útero e influenciam a sua função posterior (Stein, 2008);

 Correlações genéticas (Gilger, 2008);

 Momento processual das sequências no que respeita à realização das tarefas (Fawcett and Nicolson, 2008);

 Velocidade de processamento (Wolf and Bowers, 1999);  A transferência entre os hemisférios (Breznitz, 2008);

 Dificuldade na automaização das habilidades (Fawcett and Nicolson, 1992);  Dificuldades na memória de trabalho (Jeffries and Everatt, 2004);  Défices fonológicos (Snowling, 2000);

 Características da linguagem-transparência ortográfica (Wimmer, 1993; Share, 2008; Everatt and Elbeheri, 2008);

 Comorbilidade entre dificuldades de aprendizagem (Bishop and Snowling, 2004; Visser, 2003);

 Níveis de aquisição de literacia e o papel do QI no diagnóstico (Siegel and Lipka, 2008; Joshi and Aaron, 2008; Wagner, 2008).

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Todos quantos encontram nas suas salas de aulas, no ensino pós primário, alunos disléxicos poderão testemunhar que estes mantêm um conjunto grande de dificuldades. Muitas delas são descritas por Teles (2004, Dezembro):

O OUTRO LADO DO DOM

Na leitura

 História pessoal de dificuldades na leitura e escrita;

 Dificuldades de leitura persistentes: a correcção leitora melhora ao longo dos anos, mas a leitura continua a ser lenta, esforçada e cansativa7.

 Dificuldades em ler e pronunciar palavras pouco comuns, estranhas, ou únicas como nomes de pessoas, de ruas, de lugares, dos pratos, na lista do restaurante...

 Não reconhecer palavras que leu ou ouviu quando as lê ou ouve no dia seguinte.

 Preferência por livros com poucas palavras por página e com muitos espaços em branco.

 Longas horas na realização dos trabalhos escolares.

 Penalização nos testes de escolha múltipla.

 A ortografia mantém-se desastrosa preferindo utilizar palavras menos complexas, mais fáceis de escrever.

 Falta de apetência para a leitura recreativa.

 Sacrifício frequente da vida social para estudar as matérias curriculares.

 Sentimentos de embaraço e desconforto quando tem que ler algo oralmente com tendência a evitar essas situações.

Na linguagem

 Persistência das dificuldades na linguagem oral.

 Pronúncia incorrecta de nomes de pessoas e lugares, saltar por cima de partes de palavras.

 Dificuldade em recordar datas, números de telefone, nomes de pessoas, de lugares...

 Confusão de palavras com pronúncias semelhantes.

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Defendemos que estas dificuldades na automatização da leitura, que, por isso, continua a ser lenta, esforçada e cansativa, se devem também – talvez até sobretudo - às dificuldades que se mantêm no que respeita à consciência fonológica. Cf. ponto 3.2.1.1. (Precisão leitora – Fonologia).

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 Dificuldade em recordar as palavras, ―está mesmo na ponta da língua‖.

 Vocabulário expressivo inferior ao vocabulário compreensivo.

 Evita utilizar palavras que teme pronunciar mal.

Quadro 3 - Algumas das dificuldades associadas à Dislexia

A Dislexia, como veremos noutro ponto, ―is often characterised by phonological processing problems including difficulties with phonological awareness and automatic retrieval of phonological information from memory‖ (Woods, 2001, p. 27). E reiteramos algo, referenciado por muitos autores: se a dislexia não tem cura e tem como base um défice fonológico, não será lógico que esse défice fonológico persista até à idade adulta? Defendemos, neste trabalho, uma resposta afirmativa a esta questão.

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