• Nenhum resultado encontrado

Complicadores à escrita: aspectos relativos à formulação das primeiras

2 Ensinar a escrever e a pesquisar: as

N. Comentário Localização Complicadores à escrita

2.4 Complicadores à escrita: aspectos relativos à formulação das primeiras

versões

Ao ler as primeiras versões dos textos das informantes, foi possível detectar seis dificuldades comuns. Na sequência, elencaremos cada uma delas e, posteriormente, a partir de dois exemplos, um retirado do corpus da informante Pietra e outro dos dados de Bridget Jones, mostraremos como essas dificuldades se materializaram nos textos. Ressalte-se que algumas dessas dificuldades já foram destacadas por nós em excertos analisados anteriormente.

1. Repetições de paráfrases de um mesmo conteúdo

Dada a natural dificuldade de sair do discurso comum e construir o espírito científico, nas versões iniciais dos capítulos é recorrente encontrar um mesmo conteúdo dito várias vezes, mas de forma diferente. Trata-se da dificuldade do pesquisador de avançar na elaboração do pensamento. Frente a ela, o mestrando repete as ideias como se, por acumulação, elas o levassem a entender o que não tinha entendido ou, ainda, precisassem ser retomadas a cada nova elaboração. A repetição de algo que o pesquisador já sabe também é uma das formas de o pesquisador se defender do “não saber”. Às vezes, com medo de o outro perceber uma elaboração ainda frágil ou inexistente, o pesquisador apega-se ao que já sabe.

2. Utilização de argumentos pautados no senso comum para sustentação de ideias

Como colocado por Bachelard (1996), um dos obstáculos à construção do espírito científico é o apego ao senso comum em detrimento da construção de verdades científicas, que podem ser comprovadas dentro de uma comunidade. Assim, essa dificuldade se relaciona aos momentos em que os pesquisadores sustentavam seus argumentos ou análises no senso comum da área em que estavam inseridos ou em sua vivência pessoal.

3. Utilização de um registro escrito que não inclui a audiência

Principalmente em momentos de dúvida com relação a um conceito ou hipótese na parte de análise dos dados, o pesquisador utiliza a escrita como um instrumento para a elaboração pessoal. Assim, escreve como se dialogasse com um colega em momentos muito informais ou fazia formulações cuja função é o registro de alguma ideia para posterior refinamento.

Entretanto, dada a dificuldade de separar a escrita privativa daquela que se torna pública, habilidade que pressupõe um cálculo de um leitor externo, muitas dessas formulações foram entregues ao orientador. Sem a ajuda desse leitor em potencial,

dificilmente as orientandas conseguiriam fazer esse tipo de ajuste na linguagem, conforme colocado por Bachelard (1996), como requisito para a formação do espírito científico.

4. Parágrafos que não apresentam coerência lógica

Trata-se da relação inexistente entre um parágrafo e outro, a ponto de o texto dar vários saltos, como se tratasse de diferentes assuntos. Frente à dificuldade de cálculo da lógica argumentativa do texto, o pesquisador inicialmente muda muito bruscamente de assunto a outro, sem a necessária relação entre as partes do texto.

5. Imprecisão lexical

Uso de uma palavra cujo significado não se relacionava com o conteúdo a ser tratado, tornando-se imprópria no contexto da frase, muitas vezes, inclusive, confundindo o leitor.

6. Falta de propriedade na recuperação das principais ideias do texto lido

Trata-se de um problema de leitura. Diante de um texto considerado pelo pesquisador como “difícil”, em geral o pesquisador recupera elementos soltos do texto, sem conseguir parafraseá-lo, recuperando os principais pontos defendidos pelo autor.

7. Uso de exemplos ou citações mesmo sem entendê-los

Consiste no uso, pelo pesquisador, de exemplos, citações, trechos poéticos que julgava relevante para o seu trabalho, sem, contudo, conseguir elaborar textualmente o significado dos trechos selecionados por ele ou a relação que pretendia estabelecer com o objeto de pesquisa.

Feita essa descrição geral, vejamos como algumas dessas dificuldades podem ser localizadas nos textos. No primeiro exemplo, retirado do manuscrito 104 do conjunto de

dados da informante Pietra, pode-se identificar a dificuldade de superação do obstáculo de sustentar suas ideias no senso comum. O manuscrito é a décima quinta versão de um do capítulo de análise dos dados da informante. Apesar de esse capítulo ter sido reescrito várias vezes, as linhas que se seguem compõem uma parte nova que foi inserida posteriormente. Trata-se, portanto, de uma das primeiras versões dessa elaboração. As linhas 01 e 02 são as primeiras de uma subseção em que se discute o ensino de escrita no Brasil. Na sequência, em fonte vermelha, temos a parte que Jacqueline escreveu após a leitura:

Excerto 17

01 A prática do ensino da escrita a partir de modelos é ainda bastante usual nas

02 salas de aula brasileiras. DIZ DE ONDE VOCÊ TIROU ISSO!!!! TEM MUITO TRABALHO A

ESTE RESPEITO. É ESTRANHO A CRÍTICA VIR ASSIM COMO SE VC ESTIVESSE INVENTANDO A RODA... Dê UM EXEMPLO, OU DIÁRIO DE CAMPO, OU LIVRO DIDÁTICO. NÃO DEIXA NO ABSTRATO.

03 São oferecidos aos alunos modelos de textos que devem ser reproduzidos por eles, 04 como exercício para que os mesmos alcem uma escrita correta e de qualidade.

Ao ler as duas primeiras linhas, nota-se que Pietra escreveu uma afirmação assertiva acerca da prática de ensino de escrita na escola brasileira. Segundo ela, esse ensino é feito a partir de moldes. Na sequência, (linhas 03 e 04) descreveu como essa prática é feita na escola. Note-se que o parágrafo que começa na linha 03 se inicia sem nenhuma modalização a respeito de que lugar a informante fala para fazer tal afirmação.

O problema, como bem pontuado por Jacqueline, é que o texto, como está escrito, induz o leitor a entender que é a primeira vez que alguém trata desse assunto. Escrever asserções sem fazer uma pesquisa prévia do estado da arte do assunto corresponde a reproduzir um senso comum. O sujeito se identifica com algo que ele não é, nesse caso, um especialista e, por isso, autoriza-se a legislar sobre algo que não pesquisou.

O que Jacqueline fez diante dessa dificuldade? 1) solicitou que a orientanda escrevesse o lugar de onde tirou a informação, um autor, enfim, um dado que comprovasse a veracidade da frase da mestranda; 2) informou que não eram poucos os trabalhos a respeito do tema, o que pressupõe uma indicação por parte da orientadora de que Pietra deveria pesquisar acerca do assunto; 3) reforçou o problema do parágrafo ao qualificar como estranho o fato da crítica feita pela mestranda ter sido feita como se tratasse de algo original e valioso (inventando a roda), finalmente; e 4) deu exemplos de

como Pietra poderia resolver o problema, indicando recursos que poderia recorrer para sair da abstração para uma frase que se sustentasse entre os pares da área.

Ainda com o objetivo de sustentar nossa argumentação a respeito dos aspectos relativos à formulação das primeiras versões, analisaremos os dez primeiros comentários de Jacqueline feitos no manuscrito 421, que é a versão 14, de 23 produzidas, das considerações finais da informante Bridget Jones. O grande número de versões dessa parte do trabalho já indicia a dificuldade de escrita dessa informante e, ao mesmo tempo, a atitude insistente em reescrever seu trabalho. Ao acompanhar o percurso de escrita das quatro informantes, inclusive, um aspecto que se destacou é que não se pode pensar em uma lógica de escrita contínua que avançava progressivamente.

Dada a importante função que a escrita exercia na informante, essa escrevia em vários lugares: casa, faculdade, casa de amigos, lan house, de forma manuscrita onde estivesse. Por causa dessa disposição geográfica móvel, somada à sua desorganização, muitas vezes perdia as versões dos capítulos, não gravava a versão mais atual de um texto, esquecia-se de um texto que já havia escrito etc.

Por essa razão, ainda que, inicialmente, a décima quarta versão não pareça poder ser vista como “primeiras versões”, pode ser assim considerada ao olharmos as versões anteriores, sendo que duas delas eram formadas por frases soltas e letras de músicas que a orientanda inicialmente pensou em colocar no seu trabalho, e outras versões em que fez pequenas modificações de formatação e de revisão gramatical.

O trecho que analisaremos compõe uma das versões das considerações finais, constituída por oito páginas digitadas, com espaçamento entre as linhas de 1,5. Trata-se de um texto formatado de acordo com as normas da instituição, inclusive com epígrafe, notas de rodapé e exemplos do corpus de pesquisa da informante. A versão final também foi composta por oito páginas. Depois dessa versão comentada pela orientadora, o texto foi modificado, de modo que Bridget acatou as sugestões em mais dez versões até a finalização dessa parte do seu trabalho.

Jacqueline, ao receber esse texto, fez várias intervenções que foram marcadas por ela com quatro cores: pintou parágrafos em amarelo, um em vermelho – entende-se que esse é para ser cortado, outros em azul e os sete últimos foram pintados de verde.

A parte final do arquivo veio precedida do seguinte bilhete: “O PEDAÇO QUE SE SEGUE, QUE PINTEI DE VERDE, É CENTRAL NO TRABALHO. NÃO DÁ PRA FICAR CONFUSO NEM PRA VIR SEM DESTAQUE. ANUNCIE DIREITO E ARTICULE DIREITO”.

Após os parágrafos finais, escreveu um bilhete final: UMA BOA IDÉIA TALVEZ SEJA PARTIR DESTE TEXTO NA PARTE VERDE E, DEPOIS, FAZER AS EXTRAPOLAÇÕES. MAS, QUE LEGAL, VC MANDOU MUITO BEM!!!! Nota- se, por esses dois bilhetes, que Jacqueline validou, por duas vezes, as ideias escritas por Bridget nessa versão trabalho – afirmou que se tratava de um pedaço central e que a orientanda tinha “mandado muito bem”, de modo que as dificuldades que foram alvo de investimento incidiram em aspectos de elaboração textual. Vejamos, no Quadro 10, abaixo, quais foram essas dificuldades, a partir da observação dos dez primeiros comentários da orientadora no texto.

N. Formulação da pesquisadora e

Outline

Documentos relacionados