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Compondo a gramática normativa: Scientia sexualis e o dispositivo da sexualidade

5 POVOANDO OS TERRITÓRIOS DO ENSINO DE BIOLOGIA: CONEXÕES,

5.2 Compondo a gramática normativa: Scientia sexualis e o dispositivo da sexualidade

A pesquisa histórica rigorosa e vasta de Thomas Laqueur (2001) sobre a produção científica que se apropriava do imperativo da Biologia para explicar a ordem moral nos conta que até o século XVIII, no modelo do sexo único, o corpo era menos restrito por categorias da diferença biológica e, por isso, trânsitos e variações de experiências ―[...] de homens que amamentavam [...] meninas podiam tornar-se meninos [...] homens maduros sentiam-se sexualmente atraídos por meninos [...] homens que se associavam intensamente com mulheres [...]; a menina que corria atrás de um porco e de repente põe mostra um pênis e um escroto externo [...]‖ (LAQUEUR, 2001, p. 19), não eram considerados uma questão problemática, diagnóstica e nem de estranhamento.

No modelo do isomorfismo sexual, um sexo e dois gêneros, considerava-se que as mulheres possuíam todas as partes anatômicas do homem. Nesse sentido, parecia não ter fronteiras que poderiam servir para definir a condição social. Os órgãos que ―[...] estão dentro da mulher estão para fora nos homens; o que é o prepúcio nos homens é a parte pudenda da mulher [...] o que se vê como uma espécie de abertura na entrada da vulva nas mulheres, na verdade encontra-se no prepúcio da parte pudenda do homem‖ (LAQUEUR, 2001, p. 168), ―[...] o útero da mulher nada mais é que o escroto e o pênis do homem invertidos‖. (p. 89).

Thomas Laqueur (2001) deixou bastante marcado que ―[...] durante grande parte do século XVII, ser homem ou mulher era manter uma posição social, assumir um papel cultural, e não pertencer organicamente a um sexo ou a outro‖. (p. 177, destaque do autor).

A leitura que orientava o posicionamento do masculino e do feminino não estava condicionada ou vetorializada à genitália. Tais interpretações eram permeadas mais por significações culturais do que em termos corpóreos da ordem social. Nenhum sexo ontológico, apenas órgãos com determinado status legal e social, ou seja, ―[...] os membros que se conformam ao sexo não são causas que constituem o masculino ou o feminino, ou que os distinguem‖. (LAQUEUR, 2001, p. 175). A compreensão do corpo não era fundante na Biologia. As diferenciações de gênero precederam as diferenciações de sexo. Em outras palavras ―o sexo antes do século XVII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica‖. (p. 19).

Dessa forma, nesse momento havia a sustentação do discurso de que ―na construção do corpo de sexo único os limites entre sangue, sêmen, outros resíduos e o alimento, entre os órgãos de reprodução e outros órgãos, entre o calor da paixão e o calor da vida, eram indistintos‖. (LAQUEUR, 2001, p. 57).

Naquele contexto social, as fronteiras entre masculino e feminino eram ―[...] de grau e não de espécie, e onde os órgãos reprodutivos são apenas um sinal entre muitos do lugar do corpo em uma ordem cósmica e cultural que transcende a Biologia‖. (LAQUEUR, 2001, p. 42). Esse modelo de sexo único/‘carne única‘ dominou desde a antiguidade clássica até o final do século XVII.

Aqui se revela toda a fecundidade inerente da antiguidade a tomar o corpo em uma concepção de unidade, fonte constante de potência e do múltiplo. Sem aviltamento, abjeções, monstruosidades, depreciações, base de negação ou moralidades. Não sendo recusado a ele a dignidade de se prestar à admiração e experimentação.

Quando, no final do século XVIII ―[...] os anatomistas produziram pela primeira vez ilustrações detalhadas de um esqueleto explicitamente feminino para documentar o fato de que a diferença sexual ser muito evidente‖, (LAQUEUR, 2001, p. 197), eles provocaram e participaram da invenção de que ―[...] há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis de gênero, são de certa forma baseados nesses ‗fatos‘‖. (p. 18).

Nesse sentido, ―[...] a ‗colocação do sexo em discurso‘, [...] foi [...] submetida a um mecanismo de crescente incitação [...] que se obstinou [...] em constituir uma

ciência da sexualidade‖ (FOUCAULT, 1988, p. 18), que tomou forma na Medicina, na Biologia, na Moral, na Demografia, na Psiquiatria, na Psicologia e na crítica política como empreendimentos de dizer a verdade do sexo - Scientia sexualis - na forma de saber-poder.

[...] é no sexo que devemos procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo; que é nele que se pode melhor descobrir o que ele é e aquilo que o determina; e se durante séculos acreditamos que fosse necessário esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabemos agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de seus fantasmas, as raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo, está a verdade. (FOUCAULT, 1982, p. 4).

Nos procedimentos para a produção da verdade sobre o sexo, Michel Foucault (1988) destaca que a confissão154 e a formação regular da discursividade científica - Scientia sexualis, no século XIX, tornaram-se um dos rituais mais relevantes na produção da verdade, por meio da codificação clínica, da causalidade geral, da latência intrínseca da sexualidade; do método da interpretação e da medicalização dos efeitos da confissão, ou seja, confissão às regras do discurso científico. O que significa, inicialmente, a retirada do sexo do domínio do registro do pecado e da culpa e a circunscrição no regime do normal e do patológico. É através desse mecanismo que aparece a sexualidade enquanto a verdade do sexo e de seus prazeres.

[...] a sexualidade foi definida como sendo, ‗por natureza‘, um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização; um campo de significações a decifrar; um lugar de processos ocultos por mecanismos específicos; um foco de relações causais infinitas, uma palavra obscura que é preciso, ao mesmo tempo, desencavar e escutar. (FOUCAULT, 1988, p. 67).

Segundo Foucault (1982): ―As teorias biológicas da sexualidade, as concepções jurídicas [...] as formas de controle administrativo nos Estados Modernos, acarretaram [...] a recusa da idéia de mistura dos dois sexos em um só corpo e [...] a partir de então, um só sexo para cada um‖. (p. 2). Nas teorias biológicas, não há espaço ―[...] para

154 ―A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros‖. (FOUCAULT, 1988, p. 59).

alguém com os dois sexos/gêneros, apenas pessoas com um sexo e seu pressuposto gênero correspondente‖. (LEITE-JÚNIOR, 2011, p. 64).

Desse modo, ―[...] é no corpo das pessoas com algum tipo de ambiguidade sexual ou que deixam margens para este tipo de dúvida que a medicina vai focar sua atenção e criar uma nova maneira de interpretar os sexos‖. (LEITE-JÚNIOR, 2011, p. 73). Foucault (1982) proõe que a centralidade do debate, em torno dos hermafroditas, passa a ser na genitalidade e nos caracteres sexuais orgânicos, começando a abrir o espaço para corpos sexuados e sexualizados. O hermafrodita era considerado um complexo jurídico natural, pois trazia na sua disposição anatômica ―[...] a transgressão natural, a mistura das esp(é)cies, o embaralhamento dos limites e dos caracteres‖. (FOUCAULT, 2001, p. 82).

Foucault (1982) nos aponta que foram inúmeros testemunhos de condenações à morte aos hermafroditas e complementa que eles, por muito tempo foram queimados, executados, e, suas cinzas jogadas ao vento por serem considerados falsos já que ―[...] embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção‖. (FOUCAULT, 1988, p. 39).

Foi em torno dos hermafroditas que se começou a elaborar a figura do monstro, ―[...] que vai aparecer no fim do século XVIII e que vai funcionar no início do século XIX‖. (FOUCAULT, 2001, p. 83). Na compreensão dos monstros em sua natureza de ser vivo, as suas existências eram apresentadas como:

Exceção às normas biológicas, instabilidades do processo vital, falhas da geração; irregularidade das formas humanas, precariedade da sua estrutura física, fragilidade de seus envoltórios: os curiosos que acorriam para fazerem a experiência do monstro viam surgir diante de si o inventário de uma desordem radical do corpo humano e assistiam [...] ao drama da ordem diante da vida. (COURTINE, 2011, p. 273). Segundo Cohen (2000), os monstros policiam as fronteiras do possível, delimitando o território social do qual os corpos podem se movimentar e interditando comportamentos, ações e reiterando outros. ―Dar um passo fora dessa geografia oficial significa arriscar sermos atacados por alguma monstruosa patrulha de fronteira ou – o que é pior – tornar-mo-nos [...] monstruosos‖. (p. 41).

A autora Ieda Tucherman em A breve história do corpo e de seus monstros (2012) aponta que o monstro não está fora do humano, mas no seu limite que é ―[...] produtor de figuras estranhas em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são

efectivamente humanas, já que nos surgem como ‗desfiguração‘ do Mesmo no outro‖. (p. 100).

A figura da monstruosidade exerceu uma função simbólica fundamental. Perturbando os sentidos, especificamente a visão, o monstro foi pensado como uma aberração, uma folia do corpo, introduzindo, como oposição lógica, a crença na necessidade da existência da ‗normalidade‘ humana, do corpo lógico. (TUCHERMAN, 2012, p. 101).

Nesse contexto, o monstro se prestará a ensinar a norma, que colonizará além dos corpos, o universo dos signos. Isso constituirá uma das formas nevrálgicas ―[...] da formação do poder de normalização, uma imposição e [...] extensão do domínio da norma se realizou através de um conjunto de dispositivos de exibição de seu contrário, de apresentação da imagem invertida‖. (COURTINE, 2011, p. 261).

Instalavam-se assim limites para esses corpos, que eram constantemente e rigidamente mantidos, disciplinados e vigiados:

[...] eram chamados de hermafroditas aqueles em que se justapunham, segundo proporções que podiam ser variáveis, os dois sexos. Nesse caso era papel do pai ou do padrinho (os que ‗nomeavam‘ a criança) fixar, no momento do batismo, o sexo que deveria ser mantido. Se fosse o caso, aconselhava-se escolher dentre os dois sexos o que parecesse dominar, o que tivesse ‗maior vigor‘ ou ‗maior calor‘. [...] O único imperativo era que, uma vez escolhido seu sexo, ele não mais o poderia trocar, e o que havia então declarado deveria ser mantido até o fim de sua vida [...]. (FOUCAULT, 1982, p. 1-2).

A figura do hermafrodita vai sendo constantemente capturada e tendo os seus traços vagos sitiados ―[...] num código para harmonizá-la, colmata as suas fugas, subordina as suas diferenças às identidades, impõe às suas inumeráveis conexões todo um regime de conjunções e conjugações convencionadas‖. (CORAZZA; SILVA, 2003, p. 27). Podemos considerar que marcam o fazer do hermafrodita em um conjunto de clichês para ―[...] localizá-lo, controlá-lo, submetê-lo a decalques, cópias ou regras, impor uma ordem de razões as suas ablações, julgar as suas variações [...]‖. (CORAZZA; SILVA, 2003, p. 29).

As marcas do fazer hermafrodita ajudaram na construção do conceito de norma sexual e, consequentemente, dos anormais. O conceito de ‗anormal‘ surge durante o século XIX por meio de embates entre os saberes jurídicos e penais, e, já no final desse mesmo século, o conceito passa a ser encaminhado para uma psiquiatrização do desejo e da sexualidade, emergindo como ciência dos anormais e das condutas anormais. (FOUCAULT, 2001).

Segundo Foucault (2001):

Não será mais simplesmente nessa figura excepcional do monstro que o distúrbio da natureza vai perturbar e questionar o logo da lei. Será

em toda parte, o tempo todo, até nas condutas mais ínfimas, mais comuns, mais cotidianas, no objeto mais familiar da psiquiatria, que esta encarará algo que terá, de um lado, estatuto de irregularidade em relação a uma norma e que deverá ter, ao mesmo tempo, estatuto de disfunção patológica em relação ao normal. (p. 205).

Foucault (1966) fala da instalação de uma episteme155 moderna assentada numa

disposição binária de um regime de signos que terá como objetivo de dizer o que é, e, ―[...] as figuras que oscilavam indefinitivamente entre um e três termos vão fixar-se numa forma binária que as tornará estáveis [...]‖. (FOUCAULT, 1966, p. 67), estabelecendo um campo de práticas discursivas que torna possível o aparecimento da ideia de um dimorfismo sexual e ―[...] a partir dos quais se pode definir o que são as coisas e situar o uso das palavras‖. (FOUCAULT, 2008, p. 149). O regime discursivo produz o dimorfismo sexual ou diferença sexual a partir do qual somos posicionados em uma matriz de inteligibilidade na sociedade contemporânea.

Nessa esteira, a Medicina promoveu a medicalização do corpo individual e social com a invenção de ―[...] toda uma patologia orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas sexuais ‗incompletas‘; classificou com desvelo todas as formas de prazeres anexos; integrou-os ao ‗desenvolvimento‘ e s ‗perturbações‘ do instinto; empreendeu a gestão de todos eles‖. (FOUCAULT, 1988, p. 41). É preciso considerar que, ao lado da Medicina, da família, da igreja e das instituições psiquiátricas e das instituições escolares com os/as guardiões fiscalizadores, as hierarquizações e organizações espaciais, distribuem o jogo dos poderes e prazeres.

Para além da verdade regulada sobre o sexo, o autor também destaca ―[...] a presença de uma verdadeira ‗tecnologia‘ do sexo muito mais complexa, e, sobretudo mais positiva do que o efeito excludente da proibição‖. (FOUCAULT, 1988, p. 87). Com isso, ―[...] os processos da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los‖. (p. 134). O poder assumiu a função de gerar a vida, garantir, sustentar, reforçar, multiplicá-la, pô-la em ordem ‗um poder de causar a vida‘, ―agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder

155 Termo utilizado por Foucault para referir a ―[...] uma ordem específica do saber; é a configuração, a disposição que o saber assume em determinada época e que lhe confere uma positividade enquanto saber, em outras palavras, um conjunto de condições, de princípios, de enunciados e regras que regem sua distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado numa determinada época‖. (FOUCAULT, 1966, p. 148-149).

estabelece seus pontos de fixação‖. (FOUCAULT, 1988, p. 130). Apresenta-se um poder que exerce e empreende positivamente na administração dos corpos e na gestão calculista da vida: sua majoração, multiplicação, exercício com controles precisos e regulações de conjunto. Abre-se a era do que ele denominará de biopoder assegurado por duas tecnologias: disciplinas – anátomo-política do corpo humano e controles reguladores – uma biopolítica da população, utilizadas pelas instituições escolares, médicas, policiais, religiosas, psiquiátricas, familiares, dentre outras.

Desse modo ―[...] pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete- se no político; o fato de viver [...] cai, em parte, o campo de controle do saber e da intervenção do poder‖. (FOUCAULT, 1988, p. 134).

Nesse regime, o poder atua por meio de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos, operando distribuições de qualificação, mensuração, avaliação e hierarquização em torno da norma. ―Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida‖. (FOUCAULT, 1988, p. 135).

Foucault (1988) destaca que toda essa articulação, sustentação de regimes de verdade, reforços dos controles e armação de uma teoria geral do sexo, nesse determinado momento histórico, configurou a produção do dispositivo156 histórico da sexualidade.

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à uma realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam- se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 100).

É o dispositivo da sexualidade que tem como razão de ser ―(...) proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global‖. (FOUCAULT, 1988, p. 101).

156 Michel Foucault (1979) demarca o dispositivo em primeiro lugar enquanto ―[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também pode ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como principal função estratégia dominante‖. (p. 244).

Esse dispositivo vinculou-se com uma intensificação do corpo e a sua ocupação como objeto do saber e como elemento nas relações de poder.

A explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX provocou um movimento na centralidade da relação heterossexual monogâmica, concebendo, para reger o sexo, a lei da aliança e a ordem dos desejos. Estas encontram ressonâncias nos discursos do campo da Biologia que institucionaliza ―[...] as características básicas do que constitui a masculinidade e a feminilidade normais, vistas como características distintas dos homens e das mulheres biológicos [...] e estritamente ligada ao intercurso genital da escolha do objeto heterossexual [...]‖. (WEEKS, 2013, p. 63).

Podemos observar que a construção da gramática normativa da coerência binária entre os sexos tem como um de seus aparatos a matriz de gênero na naturalização das noções do masculino e do feminino. Segundo Butler (2015) ―o gênero é o aparato através do qual tem lugar a produção e a normalização do masculino e do feminino junto com as formas intersticiais hormonais, cromossômicas, psíquicas e performativas que o gênero assume‖. (p. 70).

Nas normas regulatórias do gênero há produção de feitos que uniformizam a identidade do gênero por via da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2015). As noções naturalizadas e reificadas do gênero dão suporte à hegemonia masculina e ao poder heterossexista.

A univocidade do sexo, a coerência interna do gênero e a estrutura binária para o sexo e o gênero são sempre consideradas como ficções reguladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de opressão masculina e heterossexista. (BUTLER, 2015, p. 70).

Há uma institucionalização de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada, que regulamente o gênero como uma relação binária de diferenciação entre o masculino e o feminino, por meio das práticas do desejo heterossexual. ―O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura binária resulta numa consolidação de cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do gênero e do desejo‖. (BUTLER, 2015, p. 53). Nessa seara, o gênero foi amarrado em um código de herança genética de natureza biológica e na presença de um órgão genital específico no corpo da pessoa. (LANZ, 2017).

Diante dessas convenções, o corpo sexuado e a ideia de complementaridade inexorável ganha inteligibilidade na heterossexualidade, ―o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens‖.

(BENTO, 2008, p. 31). As marcas instituídas pela diferença sexual ficam amarradas na lógica dicotômica. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre o gênero e o sexo‖. (BUTLER, 2015, p. 26).

No entanto, a distinção entre sexo e gênero foi concebida inicialmente para problematizar a formulação da Biologia como destino, atendendo ―(...) tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído157‖. (BUTLER, 2013, p. 26).

Em oposição a essa falsa ideia de sexo como dado biológico, consideramos que o sexo é uma produção política e cultural do corpo. O sexo deve se compreendido para além de uma condição estática, pois apresenta uma norma constitutiva ―[...] pelas quais o ‗alguém‘ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio de inteligibilidade cultural‖ (BUTLER, 2013, p. 155), ou seja, uma norma cultural que governa a materialização dos corpos. A formação de um sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo. (BUTLER, 2013).

Ainda pensando na materialidade do sexo podemos destacar que ―o regime da heterossexualidade atua para circunscrever e contornar a ‗materialidade‘ do sexo e esta ‗materialidade‘ é formada e sustentada através de – e como – uma materialização de normas regulatórias que são, em parte, aquelas da hegemonia sexual‖. (BUTLER, 2013, p. 170).

Para Butler (2015), gêneros inteligíveis ―[...] são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo‖. (p. 43). Além disso, essa autora compreende o gênero como uma prática performativa em que o discurso que efetua ou produz aquilo que nomeia. ―A performatividade não é, assim, um ‗ato‘ singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. E na medida em que ela adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição‖.