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Narrando os encontros com as intensidades dos dossiês

4 UMA CARTOGRAFIA DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

4.2 Dossiês Nacionais

4.2.1 Narrando os encontros com as intensidades dos dossiês

Guacira Lopes Louro ao fomentar outros discursos que favoreceram a emergência de corpos outros em suas produções: ―O corpo Educado: pedagogias da sexualidade‖ (1999) e ‗Teoria Queer: uma perspectiva pós-identitária para a Educação‘ em 2001 e ‗Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e Teoria Queer‘ (2004) contribuiu, no campo acadêmico – área da Educação no Brasil, para a emergência de pensar a existência e travestis e transexuais nos contextos escolares, começando a ganhar contornos importantes na investigação educacional a partir da primeira década do século XXI, conforme já assinalado por Maria Rita César (2009).

A introdução dos estudos Queer permitiu um estranhamento dos regimes de normalização, disciplinarização e controles identitários, fazendo emergir ―[...] questões, práticas, experiências que ousam subverter modos de vida e noções consagradas‖. (LOURO, 2012, p. 364). Eles colocaram em movimento múltiplas posições de gênero e sexuais, admitindo que pessoas escapam, atravessam as fronteiras dos esquemas binários de gênero e/ou vivem exatamente na fronteira. Com isso, o queer coloca ―[...] em movimento o subversivo, arriscar o impensável, fazer balançar estabilidades e certezas – processos geralmente estranhos ou incômodos aos currículos, às práticas e às teorias pedagógicas‖. (LOURO, 2004, p. 7). Nessa perspectiva é possível dizer que ―[...]

mesmo que existam regras, que se tracem planos e sejam criadas estratégias e técnicas, haverá aqueles e aquelas que rompem as regras e transgridem os arranjos‖. (LOURO, 2004, p. 16).

Louro (2006, p. 8)61 no trabalho, encomendado pela 29a Reunião Anual da ANPED para o GT 23, Gênero, Sexualidade e Educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas, indicou uma consolidação, vitalidade e contemporaneidade desse campo que ela considera teórico, político e plural. Destacou a referência aos estudos de Michel Foucault, em especial à sua obra História da Sexualidade, e aos campos de estudos Feministas, de Gênero, de estudos Gays e Lésbicos e estudos queer como os referenciais que permitiram ―novas políticas de conhecimento‖, e articulações entre sujeitos e objetos de conhecimento.

[...] esses campos têm promovido novas políticas de conhecimento, novas articulações entre sujeitos e objetos de conhecimento. Isso significa que implicam o privilegiamento de um modo de conhecer, o que envolve, por sua vez, decisões sobre o que conhecer, e como, porque ou para que conhecer. (LOURO, 2006, p. 8).

A autora apontou que embora as tecnologias e teorizações pós-modernas provocassem abalos nas compreensões de corpo, do gênero e da sexualidade, a perspectiva do fundacionalismo biológico, no qual ‗dados da biologia‘ instalam-se como uma espécie fundamento para o social, permanecia fortemente arraigada nos modos de pensar e viver, nos modos de produção do conhecimento. Assume-se, nessa perspectiva, que haveria algumas ‗constantes da natureza‘. Isso significaria ―[...] colocar em questão a existência de um corpo a priori, quer dizer, um corpo que existiria antes ou fora da cultura‖. (p. 6). No âmbito da sexualidade a ancoragem biológica

[...] costuma ser mais resistente do que em relação ao gênero. A aceitação da existência de uma matriz biológica, de algum atributo ou impulso comum como se constituindo na origem da sexualidade humana persiste em algumas teorias. Quando isso ocorre, opera-se com uma noção universal e trans-histórica da sexualidade e, muitas vezes, remete-se ao determinismo biológico. (LOURO, 2006, p. 7). A autora destaca que a perspectiva pós-estruturalista, em especial as teorizações de Michel Foucault, contribuem para as pesquisas da área educação, porque possibilitam que se explore a sexualidade como dispositivo histórico, permitem pensar nas fissuras, nas instabilidades, nas potencialidades, multiplicidades e provisoriedade dos corpos, dos gêneros e das sexualidades. Com isso,

Novas questões vêm sendo colocadas a partir das experiências e das histórias dos grupos considerados ‗minoritários‘; áreas e temáticas vistas, até alguns anos atrás, como pouco ‗dignas‘ ocupam agora o espaço e o tempo da academia passam a ser objeto de centros universitários e núcleos de pesquisa. (p. 9).

No empreendimento da pesquisa com essas novas questões, há implicações com a problematização das dicotomias e com a efetivação das conexões na produção do conhecimento, de modo a se buscar superar ―[...] o raciocínio do tipo ou isso ou aquilo e ensaiamos a produtividades de pensar que algo pode ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo‖. (LOURO, 2006, p. 12). As identidades sexuais e de gênero, nessas perspectivas, ―[...] admitem e supõem deslizamentos e, dificilmente, podem se ‗encaixar‘ com exclusividade num único registro‖. (p. 12). Os campos do gênero, da sexualidade e do corpo são recorrentemente assaltados e tomados em meio e por meio dos jogos de poder. Jogos que instituem as referências de normalidade e de diferença. Por isso Louro (2006), ancorada em Michel Foucault, afirma que devemos ‗tomar as coisas pelo meio‘ para pensarmos nos modos como funcionam as instâncias de poder e resistências.

Se de um lado, encontramos em Louro (1999; 2004; 2006 e 2012) as referências de incursão e circulação de trabalhos de estudiosos da matriz pós-estruturalista no Brasil, de outro, no dossiê ―Gênero, Sexualidade e educação: novas cartografias, velhos problemas‖ organizado por Maria Rita de Assis César e Helena Altmann (2009) está apresentando um mapa sobre as reflexões brasileiras produzidas nesse campo, de modo que é possível afirmar que ao final da primera década do século XXI, o campo dos estudos de gênero, sexualidade, e educação se encontrava expandido, maduro e consolidado no Brasil. Para sustentar essa afirmação, César e Altmann (2009) sinalizaram para o grande número de grupos de pesquisa registrados no Diretório de Pesquisa do CNPq, a quantidade significativa de dissertações e teses, artigos científicos, congressos, colóquios e seminários sobre o tema, além da considação do Grupo de Trabalho (GT 23) – Gênero, sexualidade e Educação da ANPED – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação.

Tal expansão já era sinalizada por Jane Felipe (2007)62 quando, em uma investigação do levantamento de pesquisas no campo da Educação sobre gênero e sexualidade, ela aponta para a ampliação, em vários campos disciplinares, das linhas de

62 FELIPE, Jane. Gênero, sexualidade e a produção de pesquisas no campo da educação: possibilidades, limites e a formulação de políticas públicas. Pro-posições, v. 18, n.2, mai./ago. 2007, p. 77-87.

pesquisas, grupos, ainda da participação desses grupos e investigadores na formulação de ações e programas articulados a políticas públicas, em nosso país, particulamente, nas áreas da Educação e Saúde, e, na criação de linhas de funcionamento a pesquisa, implementadas por alguns órgãos, nacionais e internacionais, de fomento à pesquisa.

Ultrapassados os primeiros dez anos do século XXI, são publicados vários dossiês que vão apresentando trabalhos, pesquisadores/as e consolidados/as e novos/as pesquisadores/as nos distintos campos de conhecimento. Alguns deles, apresentando em seus títulos as questões da população trans, como o dossiê ―Vivências Trans: desafios, dissidências e conformações‖63, organizado por Berenice Bento e Larissa Pelúcio na revista Estudos Feministas (UFSC). Esse dossiê, embora não seja da área da educação, apresenta o que as organizadoras apontam como discussões que

[...] buscam fazer enfrentamentos a discursos fortemente instituídos que, historicamente, têm tratado travestis, transexuais e intersexo no marco da patologização ou de um reducionismo biológico no qual todo um léxico médico-fisicalista tem sido acionado para regular e normalizar corpos e subjetividades. (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 488).

Os trabalhos que compõem o dossiê são oriundos das áreas da Psicologia, da Antropologia, do Direito, da História e suas articulações com a Saúde Coletiva, Ciências Sociais, Saúde Pública e Assistência Social. Nele, encontra-se como autor Guilherme Almeida que discute ‗novos matizes na aquarela das masculinidades‘.

Em 2016-2017 temos a publicação de quatro dossiês64 em que pesquisadores/as debatem questões que explodem desde 2013, compondo a cena de um contexto político desafiador e de acirradas disputas/tensões que marcam as agendas dos direitos humanos, das noções de igualdade de gênero e da diversidade sexual nas políticas educacionais brasileiras, e na cena mundial. Tais questões estão replicando o discurso, como afirmam Cardoso e Ferrari (2016, p. 365), que se organiza ―[...] em torno dos significados dos conceitos de gênero e sexualidades como problema‖. Temos portanto, no tempo presente (2017), os Estudos de Gênero, Sexualidade e Educação como um campo científico profícuo com a manutenção viva do debate e o fomento de investigações,

63 In: Estudos Feministas, v.20, n.2, Florianópolis, mai./ago. 2012.

64Diversidade na escola: gênero e sexualidade (2015)‟, ‗Gêneros e sexualidades: desafios e potencialidade para a educação em tempos de conservadorismos‘ (2016) ‗Gênero, Sexualidades, Política e Educação‟ (2017) e ‗Educação, Sexualidade e Gênero‘ (2017).

65 Apresentação do dossiê ―Gêneros e sexualidades: desafios e potencialidade para a educação em tempos de conservadorismos” – Frederico Cardoso; Anderson Ferrari (Organizadores). In: Revista Artemis. Vol. XXII no 1; jul./dez. 2016.

sobre as relações de gênero e sexualidades, e, ao mesmo tempo, está em curso uma empreitada do conservadorismo religioso e político, pautas fundamentalistas e reacionárias e de movimentos ultraconservadores dentro e fora da academia que tomam os estudos de gênero, os movimentos feministas e LGBTI como alvo para seus ataques.

Nesse processo, destaca-se a retirada da questão de gênero dos Planos de Educação e documentos educacionais (PEREIRA; CARVALHO, 201666; GOMES, 201767) e o movimento Escola Sem Partido (AMORIN; SALEG, 201668; SILVA, 201769; SEPULVEDA; MATTOS, 201770) que tem conquistado espaço no Congresso Nacional e nas Câmaras Municipais Estaduais brasileiras, somado a ―[...] propagada ideologia de gênero; expressão ganha força desde 2014, quando passou a circular nos debates que envolvia a elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE) em todo o Brasil‖. (CARDOSO; FERRARI, 2016, p. 1).

Tolomeotti e Carvalho (2016) afirmam que desde 2008 há inúmeras tentativas de interferência e anulação da inserção de políticas públicas para gênero e diversidade nos Planos e Documentos educacionais. Essas têm ganhado força desde o ano de 2013 com a construção de um dispositivo que denominaram ‗Ideologia de Gênero‘, marcando a força da imposição da retirada da palavra gênero nos Planos de Educação e o deslocamento da categoria de gênero que ―[...] tem sido (des)apropriada por esses discursos que, por efeitos e representações, transformam as sexualidades diferenciadas, as políticas públicas e educacionais contra violência de gênero e a favor da alteridade em ameaças à família e à constituição do Estado‖. (p. 79).

Com isso há a reiteração dos argumentos em prol da família e da moral; do alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade-desejo-prática sexual; da imposição cisheteronormativa aos corpos como a possibilidades cultural inteligível de se viver a sexualidade.

A exclusão das palavras gênero e orientação sexual dos Planos de Educação potencializou uma situação de invisibilidade social, cultural, política e econômica, bem como um esvaziamento contundente das políticas contrárias às violências simbólicas, psíquicas e físicas a que

66 ―Um currículo degenerado: os Planos de Educação e a questão de gênero nos documentos educacionais‖. In: Revista Artemis. Vol. XXII no 1; jul./dez. 2016, p. 73-84.

67 ―A questão de Gênero nos Planos Nacionais de Educação‖. In: Revista Café com Sociologia, v.6, n.1, jan./abr. 2017, p. 31-52.

68O conservadorismo saiu do armário!: A luta contra a ideologia de gênero do Movimento Escola Sem Partido‖. In: Revista Artemis. Vol. XXII no 1; jul./dez. 2016, p. 32-42.

69 ―Educação, Gênero e Sexualidade: algumas reflexões sobre o Programa Escola Sem Partido”. In: Revista Café com Sociologia, v.6, n.1, jan./abr. 2017, p. 158-172.

70 Apresentação do dossiê ―Gênero, Sexualidades, Política e Educação” – Denize Sepulveda; Amana Mattos (Organizadoras). In: Revista Artes de Educar, v.3, n.1, 2017.

estão submetidas/os as mulheres e os corpos diferenciados, ao menos, em termos de metas, objetivos e cumprimentos educacionais. (TOLOMEOTTI; CARVALHO, 2016, p. 82).

As autoras nos conduzem a pensar, que cabem aos corpos, sexualidades e gêneros silenciados ―[...] subverter os afetos tradicionais e normativos, fraturar os regimes de Estado, presentes na construção de saberes escolares, e a possibilidade de um campo de resistências ainda impensável dentro das escolas‖. (p. 83).

Vera Lucia Marques da Silva (2017)71 assinala que os projetos-leis que instituem o Programa ‗Escola sem Partido‘72 defendem uma percepção da sexualidade subordinada a uma certa moralidade/normativa religiosa; valores familiares tem precedência sobre a educação formal; a preocupação com um suposto alto grau de contaminação político-ideológica nas escolas por parte dos/as professores e dos/as autores/as de livros didáticos; a evidencia da constituição de homens ou mulheres heterossexuais, de acordo com seu sexo biológico, excluindo as homossexualidades e as transexualidades como experiências legítimas; a neutralidade exigida pelo professor de Ciências73; o medo social de que a informação sobre sexualidade possa ‗contaminar‘ as crianças; preocupação com a incitação dos/as alunos/as no engajamento político por meio de manifestações; a criação de um canal de denúncias anônimas de práticas que desrespeitem as convicções religiosas, morais e políticas herdadas da família; as discussões que se relacionam às diversidades de gênero e sexual tornam se na escola proibitivas; a defesa de liberdade de expressão dos pais e alunos/as, negada claramente aos/as professores/as. (SILVA, 2017).

A imersão nos trabalhos publicados e nos dossiês visibilizou algumas pistas como as indicadas a seguir:

a) a reflexão e problematização das vidas das pessoas trans na escola emergem de estudos realizados em áreas como a Antropologia e a

71 In: Revista Café com Sociologia. Educação, Gênero e Sexualidade: algumas reflexões sobre o Programa Escola Sem Partido, v.6, n.1, jan./abr. 2017, p. 158-172.

72 O Programa Escola sem Partido é coordenado pelo procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib e delineado pelos seguintes projetos: PL 7180 e 7181, ambos de 2014, de autoria do deputado Erivelton Santana do Partido Ecológico Nacional (PEN), representante da Bahia, e PL 867 de 2015 de autoria do deputado Izalci do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), eleito pelo Distrito Federal. Além destes, inclui-se também o projeto de lei 193 de 2016 do senador Magno Malta do Partido da República (PR), representante do Espírito Santo. Vale ressaltar que os projetos 7181/14 e 867/15 tramitam apensados ao PL 7180/14. (SILVA, 2017, p. 164).

73 O conteúdo exigido passa pela defesa de um ―[...] ensino da diferença sexual entre homens e mulheres, bem como de suas funções reprodutivas, de forma que pareça que ―naturalmente‖ homens e mulheres se complementem, o que reforça as crenças de uma única sexualidade possível – a heterossexual‖. (p. 166).

Psicologia e a escola é apontada como espaço de acontecimentos na vida destas pessoas;

b) o silenciamento da área de educação sobre as experiências de pessoas trans e educação escolar está marcado até o final do século XX, havendo, a partir da primeira metade da década do século XXI, a quebra do silêncio com o aparecimento de estudos envolvendo estas pessoas;

c) as linhas que enredam os espaços escolares centradas na heterossexualidade e rigorosamente reguladas pelas normas de gênero, compõem o traçado das pesquisas;

d) a autorização da circulação, na escola, das normas de gênero binárias, marcadas pela heterossexualidade, é regulada pelo alinhamento de gênero, sexo e sexualidade assentado no império do biológico que genitaliza as relações escolares e sanciona a legitimidade de tais normas;

e) as pesquisas permitem traçar o jogo de disputas que fortalecem mecanismos de controle de corpos, gêneros, sexualidades e potencializa negociações/contradiscursos das diferenças e pensamentos sobre a existência de si e a produção do outro;

f) o campo político, social e religioso disputam a Escola como lugar de demarcação dos corpos, dos gêneros e das sexualidades permitidas e admitidas, ela é, assim, lugar de consolidação de projetos de Sociedade e de modos particulares de pensamento.

Mas o que é possível encontrar, nos dossiês mapeados, sobre as experiências de pessoas trans nas escolas brasileiras?

4.2.2 As experiências de pessoas trans nas escolas brasileiras nos