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Primeiros traços no cenário investigativo

4 UMA CARTOGRAFIA DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

4.1 Primeiros traços no cenário investigativo

Na tentativa de reunir elementos para compor a temática da tese, realizei um caminhar entre os emaranhados discursivos das investigações que se ocupavam com as experiências de pessoas trans no âmbito da Educação Escolar e do Ensino de Biologia. Mostro alguns caminhos percorridos, movimentos efetuados e algumas linhas estendidas por estudos realizados nesses campos. Esbocei um mapa dos movimentos, rastros, dos encontros, desencontros, das linhas e traçados efetuados.

Ao realizar o rastreamento da produção, fiquei imerso numa massa documental composta por vários trabalhos (APÊNDICES: IV, V, VI, VII e VIII) e tentei conhecer

os que eles podem (o que há de potência) como pistas para o desenho da investigação, partindo daquilo que mais me afetou. Uma proposta de movimentos do pensamento por afetações.

O caminhar foi marcado pela imprevisibilidade, sem destino prefixado ou lugar seguro de chegada. Conforme Oliveira e Paraíso (2014) ―Se for para a invenção cartográfica mostrar aquilo que se encontra demasiadamente estriado em um território de pesquisa educacional, os movimentos dos/as cartógrafos/as se dão a partir do que se definiu como próprio daquele território‖. (p. 298).

Um dos primeiros trabalhos que se ocupou51 do entrelaçamento pessoas trans e educação escolar, encontrado foi a dissertação de mestrado produzida pelo antropólogo Marcos Renato Benedetti, uma etnografia intitulada ―Toda feita: o corpo e o gênero das travestis‖ (2000)52. Ele aponta que na vida de uma travesti há inúmeros acontecimentos e processos que requerem sanidade mental para serem vivenciados. Dentre eles, o autor destaca frequentar escolas e instituições de ensino.

50 Ao acionar a Cartografia como modo de operação na composição do campo de produção científica, me interessei pelas movimentações de constituição de novos caminhos sem nos fixarmos em n(ó)s.

51 No artigo “Biossociabilidade contemporânea e a expressão travesti” de Wiliam Siqueira Peres (2002) na Revista de Psicologia da UNESP, há uma indicação, talvez uma das primeiras pesquisas sobre etnografia com travestis de Florianópolis em 1984 do antropólogo Marcelo José Oliveira, mencionando uma situação em que a diretora de uma escola aceita travestis em suas dependências, desde que elas tenham um bom comportamento. Possivelmente um dos registros pioneiros entre a relação de pessoas trans e espaço escolar.

52 A dissertação foi publicada no ano de 2005 no formato de livro com o mesmo título, e, foi ao livro que tive acesso.

A tese de doutorado em Sociologia da antropóloga Berenice Bento, intitulada ‗A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual‘ (2003)53, aponta como a escola emerge nos relatos das suas entrevistadas. As lembranças das pessoas que vivem a experiência transexual, relatas no texto de Bento, são permeadas de histórias de terror, discriminação, angústia e silenciamento de professores/as diante destas.

Berenice Bento apontou as múltiplas violências, respostas e os limites que a instituição escolar tem dado às pessoas transexuais brasileiras no texto ‗Na escola se aprende que a diferença faz a diferença‘ (2008)54, tais como: reiteradas agressões e insultos na hora do recreio; dificuldades de concentrar nos conteúdos transmitidos; uma produção incessante de anormalidade ―[...] Ou você é mulher ou é homem. Ou você é masculino ou feminino, mas sejamos todos heterossexuais. Nada de ambiguidade, um horror a indeterminação‖. (BENTO, 2011, p. 558); ―[...] um sistema de gênero e sexualidade assentado no império do biológico‖ (p. 559) e uma ―[...] genitalização das relações sociais‖. (p. 559). No entanto, a autora destaca que há uma produção incessante de contradiscursos e resistências pelas pessoas transexuais que habitam as frestas das normas escolares.

A psicóloga Elisabete Franco Cruz (2008) no artigo ‗A identidade no banheiro: travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola‘ já apontava as dificuldades e desassossegos da presença de travestis no cotidiano da escola, na fala de gestores/as escolares, que emergiram na realização de um curso de formação em gestão educacional da rede estadual de São Paulo no ano 2005-2006.

Em uma das primeiras turmas, uma aluna/diretora trouxe um relato sobre a presença na escola de Joana/João (nomes fictícios), uma travesti que gera uma confusão: qual banheiro ela/ele deve usar? O dos meninos ou o das meninas? As meninas não querem que ele/a use o banheiro delas, os meninos também não. A solução que encontraram foi o uso do banheiro da diretora. Após as aulas do módulo ‗o cotidiano da escola‘ a diretora se fez uma questão: Será que demos o melhor encaminhamento? (p. 1).

53 BENTO, Berenice Alves de Melo. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. 2003. 300f. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília. 2003. Posteriormente, em 2006, a tese foi publicada em formato de livro. BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Coleção Sexualidade, Gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

54 Outra versão desse texto foi publicada em: BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos Feministas – Dossiê Gênero e Sexualidade no espaço escolar, Florianópolis, v. 19, n.2, mai./ago. 2011, p. 549-559.

A escola já vem lidando, convivendo e constituindo as pessoas travestis e transexuais com/no seu cotidiano, num jogo constante de disputas que fortalecem entre mecanismos de controle e potencializam resistências pelas pessoas transexuais.

Cartografias existenciais de travestis no território da Saúde Coletiva tecidas por Peres (200455; 2005a; 2005b), apontaram, também, a escola como uma das instâncias que atravessam, compõem e atuam nos processos de subjetivação, da vulnerabilidade, estigmatização à construção da cidadania das pessoas trans. As cenas de exclusões anunciadas na construção das subjetividades das travestis que fizeram atualizar, dentre outras, a instituição escolar, compuseram a pesquisa de doutorado de Peres, intitulada ‗Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania‟. (2005b)56. A partir dessa investigação, o estudioso publicou os artigos: Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transexuais e transgêneros e a escola brasileira (2009) e Travestis, escolas e processos de subjetivação (2010), textos fundamentais para os estudos posteriores ao dele no campo. A primeira publicação, em 2009, no volume de número 32 da coleção ―Educação para Todos‖57 intitulada Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas‘ organizada pelo sociólogo Rogério Diniz Junqueira. Esse volume propunha reflexões sobre a re-produção da homofobia na educação, sobretudo no contexto da escola e nos espaços ligado a ela. Nesse material Junqueira (2009a) destaca que travestis e transexuais ―[...] nas escolas, não raro, enfrentam obstáculos para se matricularem, participarem das atividades pedagógicas, terem suas identidades minimamente respeitadas, fazerem uso das estruturas das escolas (os banheiros, por exemplo) e conseguirem preservar sua integridade física‖. (p. 25). Para o autor a homofobia

[...] diz respeito a valores, mecanismos de exclusão, disposições e estruturas hierarquizantes, relações de poder, sistemas de crenças e de representação, padrões relacionais e identitários, todos voltados a naturalizar, impor, sancionar e legitimar uma única seqüência sexo- gênero-sexualidade, centrada na heterossexualidade e rigorosamente regulada pelas normas de gênero. (JUNQUEIRA, 2009b, p. 375). Um sistema ―[...] binário, disciplinador, normatizador e normalizador em que apens a heterossexualidade poderia ganhar expressão social mediante o gênero

55 Em 2004, Wiliam Siqueira Peres realizou um levantamento das produções teóricas que se debruçaram sobre o público travesti brasileiro indicando poucas referências, sendo as mesmas voltadas às investigações etnográficas antropológicas, sobretudo, focadas nas análises da cultura travesti, construções de gênero e identidades a partir de modificações corporais.

56 Publicado em formato de livro cujo título é Travestis brasileiras: dos estigmas à cidadania, Juruá Editora: Curitiba, 2015.

considerado naturalmente correspondente a determinado sexo‖ (p. 375) que historicamente fez parte da constituição do espaço escolar que discrimina e investe simbolicamente e socialmente, sobretudo travestis e transexuais. Nesse sentido, Junqueira (2009b) questiona: ―Quais as chances das travestis e transexuais nesse cenário? Elas seriam pensadas como população-alvo de iniciativas voltadas à inclusão educacional e inserção nas demais esferas sociais?‖. (p. 422-423).

Peres (2009), assinala para a intensidade da discriminação e do desrespeito aos quais as travestis são expostas no espaço escolar,

[...] na maioria das vezes, a reações de agressividade e revolta, ocasionando o abandono dos estudos ou a expulsão da escola, o que consequentemente contribui para a marginalização, pois bem sabemos da importância dada aos estudos e à profissionalização em nossa sociedade. (PERES, 2009, p.245). A segunda publicação de Peres (2010) foi apresentada no periódico ‗Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação‘ do Colégio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) em uma edição especial ‗Gênero, Sexualidade e Educação‘. Nela, o autor mapeia processos de estigmatização e de resistências, por meio de observações etnográficas e entrevistas das histórias de vida de travestis.

Na publicação, o pesquisador, em contra partida ao que indicava no artigo de 2009, no campo da Educação, sinalizava, a partir de alguns relatos de pessoas trans a respeito de suas experiências no espaço escolar, que apesar das dificuldades em permanecer e concluir seus estudos, é possível localizar alguns operadores educacionais em que as mesmas se sentem acolhidas e respeitadas. (PERES, 2010).

Significados contraditórios do espaço escola a partir da exploração das experiências sócio espaciais de um grupo de treze travestis foram localizadas nas pesquisa realizada por Iván Jairo Junckes e Joseli Maria Silva (2009), ele sociólogo político e ela geógrafa política. A pesquisa aponta uma reflexão acerca das experiências de inclusão/exclusão de travestis no espaço escolar, evidenciando que ―[...] a escola é representada como local de sofrimento, preconceito e violência, bastante diferente dos nobres objetivos de desenvolvimento da cidadania e do acesso universal ao conhecimento‖ (p. 149). As travestis são ―[...] culpabilizadas pela sua própria exclusão do direito escola‖. (p. 164). O autor e a autora destacam a utilização do banheiro no espaço escolar, afirmam que este é um espaço fundamental da reprodução de corpos

generificados, e apontam os desafios para o espaço escolar com a diversidade sexual e para as políticas educacionais no Brasil.

No campo da sociologia encontramos o trabalho ‗Gênero, Educação e Diversidade: sociabilidade das travestis nos ambientes educacionais na cidade de Maceió/AL‘58 de autoria da socióloga Manuella Paiva de Holanda Cavalcanti (2011) discute a inclusão/exclusão das travestis no ambiente escolar, nos apontando que os desrespeitos e insultos provocam a desistência e desinteresse desse grupo da/pela escola. No entanto, o texto assinala para o fato de que, no enfrentamento a eles (insultos e desrespeitos), por meio de propostas de inserção do respeito às diferenças no espaço escolar, possiblita-se a valorização da autoestima que se desdobra na permanência das travestis no processo da formação escolar.

Estes trabalhos nos mostram, como sugere Maria Rita de Assis César, como as existências e as trajetórias escolares das pessoas trans passam a serem visibilizadas, ante o ruidoso silêncio do campo educacional, a partir da primeira década do século XXI, momento em que ―[...] o tema da exclusão de pessoas transexuais e travestis nas escolas brasileiras começa a tomar contornos importantes na investigação educacional‖. (CÉSAR, 2009, p. 1). E é sobre os trabalhos produzidos nesse campo que passo aos movimentos seguintes em que apresento aqueles publicados em dôssies nacionais, os localizados nos bancos de teses e dissertações da CAPES e da BDTD e os trabalhos publicados nos anais das Reuniões Nacionais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPED), no GT 23 – Gênero, Sexualidade e Educação.