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Embora comumente se faça associação ao metano, seu componente mais importante, o biogás, na verdade, é uma mistura de gases de composição variada, de acordo com o tipo e a concentração de matéria orgânica submetida à digestão anaeróbia, bem como

dependente das condições físico-químicas do biodigestor – comentadas no item 3.2 – e das comunidades de organismos presentes nele (NOYOLA et al., 2006). Por exemplo, em se tratando do biogás gerado por reatores UASB, especificamente, Van Haandel e Lettinga (1994) e Chernicharo (2016) afirmam que se podem encontrar teores elevados de CH4 (70-

80%), complementados por CO2 em menor concentração, uma vez que a solubilidade do

dióxido de carbono em água é bem maior (devido à formação de íons bicarbonato) do que a do metano, o qual rapidamente se desprende da fase líquida e é liberado sob a forma de bolhas de gás.

Por outro lado, para Balat e Balat (2009), o teor de metano em reatores anaeróbios tratando efluente doméstico atingiria valores máximos em torno de 55 a 65% em volume, enquanto que o teor de CH4 no gás natural atinge 90 a 95%, o que fez os autores concluírem

que o biogás pode ser considerado um gás natural de qualidade inferior. Logo, faz-se necessária a determinação do percentual de metano como importante parâmetro de análise, pois é esse componente que configura, ao biogás, seu poder calorífico, isto é, o valor energético do biogás é diretamente proporcional ao teor de CH4 (METCALF e EDDY, 2016),

como pode ser analisado na Tabela 3, a qual, além de comparar o Poder Calorífico Inferior (PCI) do biogás a outros combustíveis, também analisa a influência do teor de metano e gás carbônico no peso específico deles.

Tabela 3 – Comparação do poder calorífico de alguns combustíveis. Combustível Peso Específico (kg/Nm³) PCI (kcal/kg)

Biogás (40% CH4, 60% CO2) 1,4643 2.338,52

Biogás (60% CH4, 40% CO2) 1,2143 4.229,98

Biogás (75% CH4, 25% CO2) 1,0268 6.253,01

Biogás (95% CH4, 5% CO2) 0,7768 10.469,60

GLP 552(líq.) 2,29(gás) 11.026

Propano Não disponível 22.000

Gás Natural Não disponível 8.554

Lenha 390 2.530

Fonte: O AUTOR (2019), adaptado de ALVES (2000); AVELLAR (2001), apud COSTA (2006).

Entretanto, é consenso que há outros gases na composição do biogás que, mesmo em menores porcentagens, não deixam de ser menos importantes devido aos efeitos adversos que eles provocam à qualidade do biogás destinado à produção de energia renovável, e.g., monóxido de carbono (CO), amônia (NH3), nitrogênio gasoso (N2), hidrogênio gasoso (H2),

gás sulfídrico ou sulfeto de hidrogênio (H2S), vapor de água, argônio (Ar), mercaptanas de

baixo peso molecular (R-SH), siloxanos (H(OSiH2)n) e demais compostos orgânicos voláteis

(COVs) (LISOWYJ e WRIGHT, 2018; BALAT e BALAT, 2009; METCALF e EDDY, 2016; CABRAL, 2016; LOBATO, 2011). Embora o H2S seja o gás odorante mais característico de

ETEs anaeróbias e o mais associado ao biogás, fato que o leva a ser, muitas vezes, o único parâmetro utilizado por especialistas quanto ao tratamento de odores, outros potenciais compostos odorantes achados frequentemente em estações de esgoto são: sulfeto óxido de enxofre (COS), dissulfeto de carbono (CS2), tiofenos (C4H4S), dimetiltrissulfeto ((CH3)2S3),

aminas orgânicas e inorgânicas, ácidos orgânicos, aldeídos e cetonas (ALLEN e PLANK, 1993, apud NOYOLA et al., 2006). A Tabela 4 compara a composição de biogás de diferentes fontes, incluindo os gases mais comumente encontrados.

Tabela 4 – Composição do biogás originário de diferentes fontes. Componente Unidade

Composição volumétrica típica por fonte de biogás Reatores UASB Aterro sanitário Agropecuário Biodigestor de lodo CH4 % 60 a 85 45 a 50 50 a 80 60 a 70 CO2 % 5 a 15 30 a 45 30 a 50 20 a 40 CO % 0 a 0,3 0 a 0,2 - - N2 % 10 a 25 0 a 15 - < 2 H2 % 0 a 3 Traços a > 1 0 a 2 - H2S ppmv 1000 a 2000 10 a 200 100 a 700 Até 1000 O2 % Traços 0,8 - -

NH3 % Traços Traços Traços Traços

Fonte: O AUTOR (2019), adaptado de BEN et al. (2013); DEUBLEIN e STEINHAUSER (2011); CABRAL (2016).

Adicionalmente, o Quadro 1 fornece compostos indesejados e comuns em biogás de reatores UASB, bem como os potenciais efeitos negativos dessas substâncias. Logo, faz-se necessária a identificação prévia dessas substâncias, para que a melhor tecnologia de purificação do biogás seja implementada, potencializando a remoção dos compostos sulfurosos e vapor de água e diminuindo a diluição do biogás em outros gases inertes, como o N2. Dessa forma, será possível obter um biocombustível mais aperfeiçoado e com uma

Quadro 1 – Contaminantes comumente presentes no biogás e suas adversidades. Impurezas Efeitos negativos para o aproveitamento energético do biogás Dióxido de

carbono

Formação de ácido carbônico, causando degradação de peças mecânicas do gerador elétrico.

Água Favorece a corrosão nos sistemas de digestão anaeróbia. Sulfeto de

hidrogênio

Produção de ácido sulfúrico (H2SO4), o qual, além de tóxico, também é

corrosivo. Oxigênio

Presente no biogás quando há inadequada estanqueidade no sistema de digestão anaeróbia, podendo resultar em uma mistura gasosa CH4/O2

inflamável. Compostos

orgânicos voláteis

Presentes sob a forma de hidrocarbonetos halogenados, alifáticos e aromáticos, além de compostos oriundos da redução de enxofre, promovem a precipitação de compostos insolúveis, causando depósitos no biodigestor e obstrução nas peças do sistema anaeróbio.

Fonte: O AUTOR (2019), adaptado de LISOWYJ e WRIGHT (2009).

Como já previamente discutido, a proporção de cada gás é um produto multifatorial. Portanto, para Metcalf e Eddy (2016), as Equações 1 a 6 demonstram certa importância, já que têm o intuito de correlacionar as concentrações de carga orgânica do esgoto degradado anaerobiamente em razão do volume produzido de cada composto dessa mistura gasosa, para melhor estimativa da qualidade e do potencial energético do biogás, estabelecendo uma relação molar estequiométrica que visa a descrever a conversão do carbono da matéria orgânica em CH4 e CO2, do nitrogênio em NH3 e do enxofre em H2S,

como verificado primeiramente por Buswell e Mueller (1952), apud Metcalf e Eddy (2016) – que contabilizaram, originalmente, apenas o carbono, hidrogênio e oxigênio presentes com o volume de metano e dióxido de carbono produzidos anaerobiamente – e, posteriormente, Parkin e Owen (1986) e Tchonobanoglous et al. (2003), apud Metcalf e Eddy (2016), complementaram essa reação ao incluírem o nitrogênio e o enxofre presentes na matéria orgânica para contabilização dos volumes de amônia e gás sulfídrico produzido.

De acordo com Chernicharo (2016), existem duas formas de se quantificar a geração de metano em um reator UASB: a partir da composição química do despejo ou a partir da DQO degradada ou removida. Esta, por sua vez, corresponde a uma parcela da DQO total (ou aplicada) que entra no sistema, sendo a outra parcela correspondente à DQO não degradada (ou não removida) e que, portanto, permanece no reator ou é perdida no efluente. Logo, partindo do princípio de que um mol de metano reage com dois mols de oxigênio para que ocorra sua completa oxidação a gás carbônico e água ( ), é necessária haver a degradação de 64g de DQO para que sejam formados 16g de CH4, ou

e Pressão (CNTP), há a formação de 350 mL de metano para cada grama de DQO degradada. O Quadro 2 resume as equações essenciais para o cômputo teórico da geração de metano no tratamento anaeróbio de esgoto.

Quadro 2 – Estimativa de produção de metano e potencial elétrico do biogás.

Processo Equação Observações

Degradação de

DQO 𝑫𝑸 𝒓𝒆𝒎𝒐𝒗= 𝑸 × (𝑺𝟎− 𝑺)

DQOremov = carga de DQO removida

no reator (kgDQO.dia-1) Q = vazão afluente (m³.dia-1) S0 = concentração de DQO afluente

ao sistema (kgDQO.m-³)

S = concentração de DQO efluente ao sistema (kgDQO.m-³)

Produção de

metano 𝑸 =

𝑫𝑸

𝑲(𝑻)

QCH4 = vazão de metano produzido

(m³.dia-1)

DQOCH4 = carga de DQO removida

no reator e convertida em metano (kgDQO.dia-1)

K(T) = fator de correção para a temperatura operacional do reator

Determinação do

fator de correção 𝑲(𝑻) =

𝑷 × 𝑲 𝑹 × ( 𝟕 , 𝟏𝟓 𝑻)

P = pressão atmosférica (1 atm) K = concentração de oxigênio dissolvido (COD) para remoção de um mol de CH4 (64 gDQO.mol-1)

R = constante dos gases (0,08206 atm.L.mol-1.K-1)

T = temperatura operacional do reator (ºC)

Total de DQO removida

𝑫𝑸 𝒓𝒆𝒎𝒐𝒗= 𝑫𝑸 𝑫𝑸 𝒍𝒐𝒅𝒐

Entende-se que a DQO removida corresponde ao somatório da DQO transformada em metano e DQO convertida em biomassa

DQO convertida em biomassa

𝑫𝑸 𝒍𝒐𝒅𝒐= 𝒀𝒐𝒃𝒔× 𝑫𝑸 𝒂𝒑𝒍

Yobs = coeficiente observado de

produção de sólidos no sistema, variando, no Brasil, entre 0,11 a 0,23 kgDQOlodo.kgDQOapl-1

DQOapl = carga de DQO total

aplicada ao sistema (kgDQO.dia-1)

Vazão estimada

de biogás 𝑸𝒃𝒊𝒐𝒈á𝒔 =

𝑸 %

Qbiogás = vazão estimada de produção

de biogás (m³.dia-1)

%CH4 = teor de metano presente no

biogás produzido no reator

Fonte: CHERNICHARO (2016).

Embora, na teoria, existam equações que descrevam a composição final do biogás baseadas no teor da matéria orgânica presente no efluente a ser tratado anaerobiamente; na prática, a realidade é diferente. Para que seja possível estimar a produção de CH4 e, portanto,

o potencial de recuperação energética, faz-se necessário conhecer as diversas rotas pelas quais pode ocorrer a conversão da matéria orgânica (DQO) em metano, como apresentado na

Figura 4. Dessas rotas de oxidação da DQO, Souza et al. (2011) e Lobato et al. (2012)

enfatizaram as três mais importantes, sugerindo onde haveria as principais perdas de metano e, consequentemente, os maiores desperdícios do potencial energético do biogás. São elas:

a. A utilização da DQO na redução de sulfato (menor perda das três rotas, devido às geralmente baixas concentrações de SO42-);

b. A conversão da DQO em CH4 que permanece dissolvido no meio líquido e, portanto, perdido no efluente final (de 36 a 41% das perdas, dependendo do tempo de detenção hidráulica no reator);

c. A perda de CH4 na superfície livre da zona de sedimentação do reator UASB como gás residual (cerca de 4% das perdas).

Há também uma fração orgânica da DQO que dificilmente conseguirá ser processada pelos microrganismos responsáveis pela digestão anaeróbia e, consequentemente, não será transformada em biogás, não configurando potencial energético ao substrato. A essa parcela, dá-se o nome de DQO recalcitrante, pois ela é composta por substâncias de baixa biodegradabilidade, como lignina, celulose, hemi-celulose, entre outras substâncias que persistem resistentes no interior dos reatores anaeróbios (BRASIL, 2016b).

Figura 4 – Rotas de conversão de DQO e fluxo do metano em reatores UASB.

Fonte: O AUTOR (2019), adaptado de LOBATO et al. (2012).

Mantendo o menor número de dados possível, a fim de facilitar a aplicação do modelo matemático desenvolvido para o balanço de massa a considerar todas as rotas de oxidação da DQO e fluxos de metano, Lobato et al. (2012) traçaram três cenários (pior, intermediário e melhor cenário) e os aplicou em uma ETE em escala piloto, uma ETE em escala de bancada e em duas estações em escala real, cujos resultados podem ser observados na Tabela 5, com ênfase para ambas as linhas referentes à média de produção de biogás e ao valor médio do potencial de recuperação energética. Essa mesma metodologia foi empregada no trabalho de Lobato (2011), em que a pior situação consistia em valores de potencial energético menores, ou seja, em que havia maior diluição do efluente, maiores concentrações de sulfato, menor eficiência de remoção de DQO e maiores índices de perda de CH4; por

outro lado, a melhor situação incluía ETEs com potencial energético mais elevado, consequência de sistemas operando com esgoto mais concentrado, menores concentrações de sulfato, maior eficiência de remoção de DQO e menores índices de perda de metano. Por fim, a situação típica referia-se àqueles cenários com tais valores de parâmetros intermediários.

Além disso, a Figura 5 ilustra o balanço de massa quanto à conversão da DQO no processo de digestão anaeróbia, no pior cenário estipulado (menor potencial energético, efluente mais diluído, alta concentração de sulfato dissolvido, baixa eficiência de remoção de DQO pelo reator UASB e altas taxas de perdas de metano).

Figura 5 – Simulação do balanço de massa de DQO, no pior cenário.

Fonte: O AUTOR (2019), adaptado de LOBATO et al. (2012).

Tabela 5 – Características das ETEs, produção de biogás e potencial de recuperação energética obtidos da validação do modelo matemático desenvolvido.

Escala bancada Escala piloto ETE Onça ETE Laboreaux

População (hab) 8 140 330.000 30.000 Vazão média afluente (L.s-1) 0,02 0,32 660 70 Número de unidades 1 1 24 8 Dimensões (m) D = 0,3 D = 2,0 38,4 x 6,4 21,7 x 6,2 Produção de biogás (m³.d-1) 0,12 2,1 3.900 390 Potencial de recuperação energética (MJ.d-1) 2,7 55,8 105.000 11.000

Fonte: LOBATO et al. (2012).

Outro estudo considerou todos os gastos energéticos da ETE Laboreaux, na cidade de Itabira (MG) – incluindo setores como iluminação, demanda administrativa e laboratorial, operação do filtro prensa da estação, bombas das estações elevatórias, entre outros equipamentos –, e concluiu que a média de consumo de energia elétrica na ETE, durante o período da pesquisa (de outubro de 2010 a outubro de 2011), foi de 1.586 kWh.d-1, isto é, 5.709 MJ.d-1 (ROSA et al., 2016).

Dessa forma, cruzando os resultados de Rosa et al. (2016) e Lobato et al. (2012), para a ETE Laboreaux, o potencial de recuperação energética da estação excederia toda a sua demanda em, aproximadamente, 48%, demonstrando, assim, a importância do gerenciamento das perdas de metano, bem como a necessidade de investimento em tecnologias que

DQO convertida em biomassa (lodo) 13% DQO usada na redução de sulfato 7% Outras perdas 3% DQO transformada em metano dissolvido no efluente 17% DQO convertida em metano presente no biogás 20% DQO não convertida em metano e perdida no efluente 40%

promovam sua recuperação energética para fins lucrativos e de minimização das emissões de gases de efeito estufa mais agressivos. Nos casos de micro e minigeração distribuída, ou seja, quando a produção não ultrapassa 5 MW de potência instalada para cogeração qualificada e demais fontes renováveis de energia (ou 3 MW para fontes hídricas), esse excedente poderia ser redirecionado para abatimento na conta de energia de outros empreendimentos da concessionária, como estações de tratamento de água, prédios administrativos ou demais ETEs que não possuem tecnologia para coleta de biogás, por meio da reinjeção dessa energia extra na rede elétrica da concessionária local de energia, conforme prevê os incisos III e VI, Art. 7º da Resolução Normativa nº 482, de 17 de abril de 2012, segundo redação alterada pelo Art. 6º da Resolução Normativa nº 687, de 24 de novembro de 2015, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

III – para o caso de unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída a que se refere o inciso II do art. 6º, o faturamento deve considerar a energia consumida, deduzidos o percentual de energia excedente alocado a essa unidade consumidora e eventual crédito de energia acumulado em ciclos de faturamentos anteriores, por posto tarifário, quando for o caso, sobre os quais deverão incidir todas as componentes de tarifa em R$/MWh;

[...]

VI – o excedente de energia que não tenha sido compensado na própria unidade consumidora pode ser utilizado para compensar o consumo de outras unidades consumidoras, observando o enquadramento como empreendimento com múltiplas unidades consumidoras, geração compartilhada ou autoconsumo remoto.

Os geradores de energia com potência instalada superior a 5 MW podem participar da comercialização dessa produção energética por meio de duas esferas de mercado: o Ambiente de Contratação Regulada (ACR) e o Ambiente de Contratação Livre (ACL), em que geradores, comercializadores, distribuidores e consumidores livres ou especiais de energia são capazes de – por meio de acordos livremente estabelecidos entre as partes ou por meio de leilões de compra e venda regulados pela ANEEL, sob a forma de Contrato de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Regulado (CCEAR) – negociar energia com qualquer outra entidade, independentemente das restrições físicas de geração e transmissão, desde que sejam membros do Sistema Interligado Nacional (SIN) (CCEE, 2019).

Metcalf e Eddy (2016) compararam o balanço de energia entre os processos aeróbio (lodos ativados) e anaeróbio (reator anaeróbio), considerando um afluente à temperatura de 20ºC, com vazão de 100 m³.d-1 e DQO igual a 10.000 g.m-3. Os autores, então, concluíram que os gastos energéticos no sistema de lodos ativados foi de 1,9*106 kJ.d-1 e, como não houve produção de metano, a produção líquida de energia resultou em -1,9*106

kJ.d-1. Em contrapartida, no sistema utilizando reator anaeróbio com aproveitamento da energia do biogás, embora tenha havido consumo de 5,3*106 kJ.d-1 para elevação da temperatura do esgoto de 20 até 30ºC, a produção de metano convertida em valores