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Composição do substrato fermentado

2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.3 PRODUÇÃO DE POLIHIDROXIALCANOATOS (PHA) A PARTIR DE SUBSTRATOS

2.3.7 Factores que influenciam a selecção de culturas no regime de “fartura-fome”

2.3.7.1 Composição do substrato fermentado

As culturas mistas não conseguem incorporar directamente substratos complexos em PHA, canalizando-os preferencialmente para a síntese de glicogénio. Como tal, é necessário um processo preliminar de fermentação acidogénica para conversão dos substratos complexos em AOV (Dircks et al., 2001; Albuquerque et al., 2007). Os fermentados resultantes deste processo de acidificação anaeróbia de efluentes complexos são normalmente constituídos por diferentes misturas de AOV, consoante a natureza dos substratos iniciais, da cultura anaeróbia e das condições

operacionais do processo, cuja análise foi revista anteriormente (Secção 2.2). A compreensão dos mecanismos metabólicos de utilização dos diferentes AOV para incorporação em PHA é da maior importância para um dimensionamento adequado de processos que permitam valorizar os substratos orgânicos através de culturas microbianas mistas.

Quando se usam efluentes fermentados na selecção de culturas, as características do consórcio microbiano enriquecido dependem largamente da composição do substrato utilizado. Por sua vez, a composição do polímero produzido depende da proporção relativa dos AOV presentes no fermentado e da cultura seleccionada. Foi demonstrado por Dionisi et al. (2004) que uma cultura microbiana mista enriquecida com uma mistura de acetato, propionato e lactato produziu um homopolímero com apenas HV quando foi alimentada apenas com propionato. Também Takabatake et al. (2000) demonstraram que uma cultura mista enriquecida com acetato e propionato produziu um copolímero de HB e HV, no qual a proporção molar de HV tendeu a aumentar com o aumento da proporção de propionato presente. Quando foi alimentado apenas propionato a esta cultura, o copolímero resultante apresentou uma fracção molar de 84% de HV.

A obtenção de diferentes polímeros foi também demonstrada por Lemos et al. (2006) num estudo com duas culturas mistas seleccionadas distintamente com acetato e propionato. O acetato alimentado à biomassa enriquecida com propionato resultou na produção de HB e HV numa composição molar respectiva de 83:17, enquanto a alimentação constituída por propionato resultou numa maior proporção de HV no polímero (composição molar 15:85). Por outro lado, a alimentação de propionato à biomassa enriquecida com acetato resultou num polímero contendo HB, HV e hidroximetilvalerato (HMV) na proporção respectiva 6:58:24. No mesmo estudo, a alimentação constituída por uma mistura equimolar dos dois AOV resultou em diferentes polímeros nas duas culturas distintas: a biomassa enriquecida com propionato produziu HB e HV, enquanto a biomassa enriquecida com acetato produziu HB, HV e HMV.

Embora o metabolismo de síntese se encontre relativamente bem caracterizado para culturas puras, tal não acontece com culturas mistas. A hipótese mais consensual é a de que as vias metabólicas de consumo de carbono e de acumulação de polímero sejam idênticas às que se encontram descritas para culturas puras (Dias et

al., 2006), mas no entanto poderão eventualmente ser induzidas por mecanismos diferentes (Dionisi et al., 2005a). Diversos modelos metabólicos têm sido desenvolvidos para elucidar a produção de PHA por culturas mistas a partir de AOV distintos. Para o caso de um regime de alimentação dinâmica constituída unicamente por acetato, o qual resulta numa produção exclusiva de PHB, Dias et al. (2005) propuseram um modelo de seis reacções básicas para descrever o metabolismo (consumo de acetato, crescimento a partir de acetil-CoA, catabolismo, fosforilação oxidativa, manutenção e produção de PHB). Com base neste modelo, pode ser esperado um rendimento máximo teórico de 0,74 Cmol PHB Cmol-1 acetato.

Uma actualização do modelo anterior acrescentou a presença de propionato no substrato e permitiu aumentar a compreensão dos fenómenos de acumulação de PHA por culturas mistas (Dias et al., 2008). Este modelo mais detalhado considera treze reacções (consumo de acetato, consumo de propionato, conversão de propionil-CoA a acetil-CoA, crescimento a partir de acetil-CoA, crescimento a partir de propionil-CoA, catabolismo, manutenção, fosforilação oxidativa, produção de monómeros HB, produção de monómeros HV, produção de PHB, produção de PHV e produção de polihidroximetilvalerato, PHMV). A validação deste modelo foi realizada em diferentes cenários experimentais: no caso de uma cultura enriquecida com acetato, foram obtidos rendimentos respectivos de PHB, PHV e PHMV de 0,76 Cmol PHB Cmol-1, 0 Cmol PHV Cmol-1 e 0 Cmol PHMV Cmol-1 para uma alimentação exclusiva

de acetato, de 0,75 Cmol PHB Cmol-1, 0,73 Cmol PHV Cmol-1 e 0,72 Cmol PHMV

Cmol-1 para uma alimentação exclusiva de propionato, e de 0,84 Cmol PHB Cmol-1,

0,80 Cmol PHV Cmol-1 e 0,78 Cmol PHMV Cmol-1 para uma alimentação constituída

por uma mistura dos dois AOV. Por outro lado, os resultados obtidos com estas condições de alimentação para uma cultura enriquecida por propionato revelaram valores ligeiramente mais baixos para todos os rendimentos.

O modelo de Dias et al. (2008) não abrange as reacções metabólicas que ocorrem durante a fase de “fome”, e a sua inclusão foi realizada por Jiang et al. (2011a) a posteriori. Na validação experimental, estes autores não observaram a produção de PHMV e obtiveram rendimentos mais baixos na sua cultura mista para uma alimentação exclusivamente constituída por propionato (0,43 Cmol PHA Cmol-1

propionato), quando comparada com uma alimentação constituída por acetato (0,61 Cmol PHA Cmol-1 acetato). Adicionalmente, a taxa de consumo de substrato foi mais

baixa na cultura alimentada com propionato, a qual também revelou uma maior taxa de crescimento. Os teores de PHA acumulado por culturas mistas enriquecidas com propionato são habitualmente mais baixos e, apesar de as razões não serem ainda muito claras, uma possível explicação terá a ver com o facto de a síntese e a degradação de PHA ocorrerem em simultâneo: com o aumento da acumulação de polímero durante a fase de “fartura”, a velocidade de produção de PHA é limitada pela inibição devido aos produtos, enquanto a velocidade de degradação de PHA aumenta. A acumulação máxima de PHA ocorre quando os valores de ambas as velocidades são iguais. Uma vez que a velocidade de consumo de propionato é mais baixa do que a do acetato, a síntese de PHA é realizada mais lentamente e a sua velocidade iguala a taxa de degradação a uma concentração mais baixa de PHA (Ren et al., 2009; Jiang et al., 2011a).

Mais recentemente foi realizada uma tentativa de antecipar a composição dos PHA produzidos a partir de misturas contendo mais do que duas espécies de AOV (Pardelha et al., 2012). Este modelo (Figura 2-17) utiliza as formulações do modelo de Dias et al. (2008), e assume adicionalmente que os AOV com cadeia carboxílica mais longa do que o propionato são submetidos à β-oxidação. Neste pressuposto, os ácidos contendo um número par de átomos de carbono são convertidos a moléculas de acetil- CoA enquanto os ácidos contendo um número ímpar de átomos de carbono são convertidos a acetil-CoA mais uma molécula de propionil-CoA. Este agrupamento dos diferentes ácidos em função dos seus precursores para a síntese de PHA é bastante útil quando se lida com efluentes acidificados para produção de PHA, e permite designar uma variável que facilita a previsão da composição do polímero produzido – o rácio ímpar-par (RIP), que se encontra definido adiante na Secção 3.3.3. No entanto, este modelo apenas se reporta aos AOV de cadeia linear, não sendo claro sobre o que acontece com os AOV de cadeia ramificada, nomeadamente o ácido iso-butírico e o ácido iso-valérico. Uma consideração sobre esta matéria será discutida adiante aquando da definição do RIP (Secção 3.3.3).

Figura 2-17: Diagrama do modelo metabólico para produção de PHA a partir de efluentes fermentados [adaptado de: Pardelha et al. (2012)]