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3 A HOMOSSEXUALIDADE E O ENSINO DE CIÊNCIAS

3.2 Compreendendo a pedagogia dos manuais médicos

Jackson Ronie Sá da Silva (2012), em sua tese de doutorado, analisou os discursos sobre a homossexualidade veiculados em livros de Medicina, Psicologia e Educação publicados entre as décadas de 1920 e 1970. Os diversos livros apontavam (apontam) possíveis causas da homossexualidade (hereditária, hormonal, problemas relacionados ao desenvolvimento da criança, adquirida por fatores ambientais diversos, causas psicológicas etc) e traziam (trazem) informações e orientações sobre tratamento e prevenção dessa “patologia”. Os livros eram (são) destinados principalmente a médicos e psicólogos, mas também a educadores e pais. Ao conjunto de orientações para “solucionar o problema” da homossexualidade ou “preveni-la”, Sá-Silva (2012) denominou pedagogia dos manuais médicos, uma vez que os efeitos de tal pedagogia foram observados quando analisados os livros de Educação – destinados a pais e professores – que não somente incorporaram o discurso médico sobre as causas, tratamentos e prevenções da homossexualidade, mas também o reproduzem com eficiência. Pedagogia que ainda se manifesta através das décadas e que pode ser observada no trecho citado da PLS 193/2016, onde se tenta prevenir a alteração da sexualidade “natural” dos alunos. Pedagogia que existe desde a classificação das “sexualidades periféricas” no século XIX, como uma forma de disciplinar a sexualidade, produzindo “discursos carregados da autoridade da ciência. Discursos que se confrontam ou se combinam com os da igreja, da moral e da lei” (LOURO, 2015, p.81-82). Pedagogia que ainda tem seus adeptos e é solicitada quando a sexualidade “natural” se sente ameaçada. Pedagogia que normaliza, que exercita a norma, que se respalda no saber-poder da Medicina, para sustentar a identidade heterossexual como a correta, a ideal, a saudável, a normal, a natural, pois, segundo a ciência médica, é inata. Pedagogia que ainda exercita “a vontade de saber” (FOUCAULT, 2015).

Para Michel Foucault (2015), ao contrário do que se pensa, fala-se cada vez mais sobre sexo e sexualidade. A vontade de saber a respeito suscita que se fale mais sobre ela de forma insistente para que, ao final, seja produzido um saber que gere mais saberes. A sexualidade não tem sido silenciada. Tem sido produzida e divulgada a partir de saberes e poderes situados e parciais. Por exemplo: o deferimento da liminar que autoriza o atendimento àqueles/as que desejam a reorientação sexual demonstra que a vontade de saber sobre a homossexualidade persiste. Produzir um saber a partir da instância de uma Psicologia posicionada e fundada nos cânones da heteronormatividade – neste caso opera para readequar e heterossexualizar aqueles e aquelas que procuram (ou são coagidos a procurar) tratamento. Quais seriam as intenções em saber mais sobre a terapêutica da homossexualidade? O juiz deferiu o pedido da ação popular

que considerou o fato de a Resolução CFP, Nº 001/1999 não possibilitar a realização de pesquisas científicas sobre a homossexualidade. O que querem esses/as psicólogos/as no final das contas? Querem inventar novas formas de dizer sobre o homossexual e a partir disso operar com outras formas de controle? Novos saberes seriam produzidos para atuar na causa e resolver o “problema” e novas metodologias corretivas participariam do arsenal de controle já existente e, dessa forma, alimentar ainda mais a pedagogia dos manuais médicos, como lembra Sá-Silva (2012).

As dúvidas sobre a homossexualidade atravessaram todo o século XX e, apesar dos esforços da ciência biomédica em querer desvendar suas verdadeiras causas, o que prevaleceu (e ainda prevalece) foi a incerteza dos/as médicos/as frente ao tema. Dúvidas, muitas dúvidas. Dúvidas que levavam médicos/as e psicólogos/as a buscarem mais. Saberem mais (SÁ-SILVA, 2012, p. 75, grifos meus).

Saberem mais para tratar a homossexualidade. Eliminar o sintoma, a enfermidade, o contagioso da homossexualidade. Assim como a Medicina posicionada na heteronormatividade, a Psicologia heteronormativa também quer tratar o sujeito “doente” e livrá-lo da patologia homossexual. Transformar o homossexual num “sujeito higienizado”, mas marcá-lo como tal para sempre lembrar que ele é o problema e a terapêutica (médica ou psicológica) é a solução. Como lembra Sá-Silva (2012, p. 66-67), a Medicina heterossexualizadora produziu (e produz) estigmas e preconceitos que são atualizados a todo o momento:

A higiene é importante para as pessoas e não nego sua tecnologia. Os feitos médicos sobre o controle de doenças infecciosas e parasitárias, a criação de inúmeros medicamentos e vacinas, a viabilização de tratamentos na minimização ou cura de doenças degenerativas e graves, a invenção de novas técnicas cirúrgicas e de inúmeras terapias, enfim a viabilização de todo um aparato tecnológico visando à saúde dos sujeitos são ações fundamentais. Fazem parte da vida e de nosso consumo. Não é disso que estou tratando e não constitui foco de minha problematização. O que aponto são as estratégias de saber-poder operadas por uma política que não se preocupou apenas com o bem-estar e saúde da população. Refiro-me ao exercício de um poder que operou também para posicionar sujeitos visando sua desqualificação e desvalorização. Quero apontar o outro lado, aquele que em alguns momentos não aparece. Minha preocupação é expor as estratégias de saber-poder que produziram diferenças estigmatizantes e preconceituosas. Diferenças que também nasceram de discursos médicos e que vêm se arrastando até hoje e culminando, em alguns casos, em homofobias configuradas a partir de ideias históricas da biomedicina, dentre outras.

Em relação à homossexualidade, o higienismo pretende limpá-la. Convertê-la em heterossexualidade: modelo considerado ideal, exclusivo e único pela lógica heteronormativa. Louro (2015, p. 15), ao usar a estratégia metafórica para comparar a vida (desde o nascimento) a uma longa viagem, descreve o momento da “partida” com “a declaração ‘É uma menina!’ ou ‘É um menino!’” e, a partir daí, a viagem deve seguir em uma direção determinada. Judith Butler (2016) chama a atenção para o fato de tal momento iniciar a construção de um ser, de um corpo masculino ou feminino; fica afirmada uma sequência construída por significados culturais, em que a atribuição do sexo implica a de um determinado gênero e, consequentemente, de uma sexualidade específica (BUTLER, 2016).

Consideremos a interpelação médica que, apesar da emergência recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser "neutro" em um "ele ou em uma "ela": nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma (BUTLER, 2016, p. 161, grifo meu).

Norma? Que norma seria essa? Quem a determinou? É possível entender de forma aqui simplificada, de acordo com Silva (2014), o que isso significa: a classificação tem um papel central na vida social ao dividir o mundo entre nós e eles, homem e mulher, masculino e feminino, heterossexual e homossexual, ou seja, modelos de classificação baseados em oposições binárias, que refletem em uma hierarquização, em que um dos opostos – entendido como “melhor” do que o outro – se torna uma identidade em oposição a uma diferença. A forma de hierarquizar fixa a identidade como uma norma a qual são atribuídas as características positivas (SILVA, 2014). Nesse entendimento, o binarismo hetero/homo se constitui, e aqueles que se enquadram na norma (identidade; heterossexual) seriam considerados os sujeitos legítimos. Já aqueles que não se enquadram seriam considerados anormais (diferença; homossexual). Fica estabelecida a heteronormatividade.

A heteronormatividade se sente ameaçada e, para se manter como norma hegemônica, recorre a instrumentos como a PLS 193/2016 e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Entendo que a BNCC quer utilizar esses instrumentos normalizadores para pedagogizar as crianças e adolescentes e impedir que se desviem da norma heterossexual estabelecida hegemonicamente. Assim, vem tentando silenciar os professores com a PLS 193/2016 ao retirar do currículo os termos “orientação sexual” e “homofobia”.